OPINIÃO
Boaventura Sousa Santos |
Estamos a entrar em Portugal na segunda fase da implantação global do neoliberalismo. A nível global, este modelo económico, social e político tem estas características: prioridade da lógica de mercado na regulação não só da economia como da sociedade no seu conjunto; privatização da economia e liberalização do comércio internacional; diabolização do Estado enquanto regulador da economia e promotor de políticas sociais; concentração da regulação económica global em duas instituições multilaterais, ambas dominadas pelo capitalismo euro-norte-americano (o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional) em detrimento das agências da ONU que antes supervisionavam a situação global; desregulação dos mercados financeiros; substituição da regulação económica estatal (hard law) pela autoregulação controlada pelas empresas multinacionais (soft law). A partir da queda do Muro de Berlim, este modelo assumiu-se como a única alternativa possível de regulação social e económica. A partir daí, o objectivo foi transformar a dominação em hegemonia, ou seja, fazer com que mesmo os grupos sociais prejudicados por este modelo fossem levados a pensar que era o melhor para eles. E, de facto, este modelo conseguiu nos últimos trinta anos grandes êxitos, um dos quais foi ter sido adoptado na Europa por dois importantes partidos sociais-democratas (o partido trabalhista inglês com Tony Blair e o partido social-democrata alemão com Gerhard Schröder) e ter conseguido dominar a lógica das instituições europeias (Comissão e BCE).
Mas como qualquer modelo social, também este está sujeito a contradições e resistências, e a sua consolidação tem tido alguns reveses. O modelo não está plenamente consolidado. Por exemplo, ainda não se concretizou a Parceria Transatlântica, e a Parceria Transpacífico pode não se concretizar. Perante a constatação de que o modelo não está ainda plenamente consolidado, os seus protagonistas (por detrás de todos eles, o capital financeiro) tendem a reagir brutalmente ou não consoante a sua avaliação do perigo iminente. Alguns exemplos. Surgiram os BRICS (Brasil, Rússia, India, China e Africa do Sul) com a intenção de introduzir algumas nuances no modelo de globalização económica. A reacção está a ser violenta e sobretudo o Brasil e a Rússia estão sujeitos a intensa política de neutralização. A crise na Grécia, que antes de este modelo ter dominado a Europa teria sido uma crise menor, foi considerada uma ameaça pela possibilidade de propagação a outros países. A humilhação da Grécia foi o princípio do fim da UE tal como a conhecemos. A possibilidade de um candidato presidencial nos EUA que se autodeclara como socialista (ou seja, um social-democrata europeu), Bernie Sanders, não representa, por agora, qualquer perigo sério e o mesmo se pode dizer com a eleição de Jeremy Corbyn para secretário-geral do Labour Party. Enquanto não forem perigo, não serão objecto de reação violenta.
E Portugal? A reação destemperada do Presidente da República a um qualquer governo de esquerda parece indicar que o modelo neoliberal, que intensificou a sua implantação no nosso país nos últimos quatro anos, vê em tal alternativa política um perigo sério, e por isso reage violentamente. É preciso ter em mente que só na aparência estamos perante uma polarização ideológica. O Partido Socialista é um dos mais moderados partidos sociais-democratas da Europa. Do que se trata é de uma defesa por todos os meios de interesses instalados ou em processo de instalação. O modelo neoliberal só é anti-estatal enquanto não captura o Estado, pois precisa decisivamente dele para garantir a concentração da riqueza e para captar as oportunidades de negócios altamente rentáveis que o Estado lhe proporciona. Devemos ter em mente que neste modelo os políticos são agentes económicos e que a sua passagem pela política é decisiva para cuidar dos seus próprios interesses económicos.
Mas a procura da captura do Estado vai muito além do sistema político. Tem de abarcar o conjunto das instituições. Por exemplo, há instituições que assumem uma importância decisiva, como o Tribunal de Contas, porque estão sob a sua supervisão negócios multimilionários. Tal como é decisivo capturar o sistema de justiça e fazer com que ele actue com dois pesos e duas medidas: dureza na investigação e punição dos crimes supostamente cometidos por políticos de esquerda e negligência benévola no que respeita aos crimes cometidos pelos políticos de direita. Esta captura tem precedentes históricos. Escrevi há cerca de vinte anos: “ Ao longo do nosso século, os tribunais sempre foram, de tempos a tempos, polémicos e objeto de acesso escrutínio público. Basta recordar os tribunais da República de Weimar logo depois da revolução alemã (1918) e os seus critérios duplos na punição da violência política da extrema-direita e da extrema-esquerda. (Santos et al., Os Tribunais nas Sociedades Contemporâneas - O caso português. Porto. Edições Afrontamento, 1996, página 19). Nessa altura, estavam em causa crimes políticos, hoje estão em causa crimes económicos.
Acontece que, no contexto europeu, esta reacção violenta a um revés pode ela própria enfrentar alguns reveses. A instabilidade conscientemente provocada pelo Presidente da República (incitando os deputados socialistas à desobediência) assenta no pressuposto de que a União Europeia está preparada para uma defenestração final de toda a sua tradição social democrática, tendo em mente que o que se passa hoje num país pequeno pode amanhã acontecer em Espanha ou Itália. É um pressuposto arriscado, pois a União Europeia pode estar a mudar no centro mais do que a periferia imagina. Sobretudo porque se trata por agora de uma mudança subterrânea que só se pode vislumbrar nos relatórios cifrados dos conselheiros de Angela Merkel. A pressão que a crise dos refugiados está a causar sobre o tecido europeu e o crescimento da extrema-direita não recomendará alguma flexibilidade que legitime o sistema europeu junto de maiorias mais amplas, como a que nas últimas eleições votou em Portugal nos partidos de esquerda? Não será preferível viabilizar um governo dirigido por um partido inequivocamente europeísta e moderado a correr riscos de ingovernabilidade que se podem estender a outros países? Não será de levar a crédito dos portugueses o facto de estarem a procurar uma solução longe da crispação e evolução errática da “solução” grega? E os jovens, que encheram há uns anos as ruas e as praças com a sua indignação, como reagirão à posição afrontosamente parcial do Presidente e à pulsão anti-institucional que a anima? Será que a direita pensa que esta pulsão é um monopólio seu?
Na resposta a estas perguntas está o futuro próximo do nosso país. Para já, uma coisa é certa. O desnorte do Presidente da República estabeleceu o teste decisivo a que os portugueses vão submeter os candidatos nas próximas eleições presidenciais. Se for eleito(a), considera ou não que todos os partidos democráticos fazem parte do sistema democrático em pé de igualdade? Se em próximas eleições legislativas se vier a formar no quadro parlamentar uma coligação de partidos de esquerda com maioria e apresentar uma proposta de governo, dar-lhe-á ou não posse?
Director do Centro de Estudos Sociais, Laboratório Associado, da Universidade de Coimbra
in:Jornal Público
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