terça-feira, 30 de julho de 2019

Gavetas onde se guardam pedaços de vida

Dele, pouco ou nada me lembro. Ao longo da vida trabalhei uma memória que de tanto voltar a ela, tornei-a verdadeira. Teria eu três ou quatro anos. Ao seu colo, passeava pelo jardim da sua casa no Bairro da Estação. Nas minhas pequenas mãos, um raio de Sol fazia cintilar uma moeda que ele me tinha dado. Foi desse gesto, do colo e da moeda, que estará lá por casa numa daquelas gavetas onde se guardam pedaços de vida, foi desse gesto que alimentei a tal memória. Da segurança dos seus braços, pude ver as primeiras cerejas de cerdeiro de cima e sentir o ar enroseirado que pairava no seu jardim. Do meu avô Mário Péricles, lembro-me que trazia chapéu e que me falava baixinho sempre que eu apontava para os pardais que nos queriam comer as cerejas. O meu avô Mário Péricles, em 1938 abriu uma Livraria em Bragança que esteve aberta 66 anos. 
O resto da memória construiu-se ao longo dos anos. Em muitos dias, tantos que foram anos, que foram décadas. Nos dias em que fazia da Rua Direita o meu recreio de brincar. Nos dias em que ouvia as conversas dos mais velhos nas tertúlias de fim de tarde lá na Livraria. Nos dias à volta da mesa de família quando uma das suas filhas, minha mãe, falava do meu avô Péricles com aquele carinho que só os filhos sentem. Naqueles outros dias, tantos, em que o Sr. Vasconcelos me dizia vezes sem conta que o meu avô era um bom homem, como já não havia, dizia ele. Nos dias em que correndo o nosso mundo transmontano, ouvi testemunhos que realçavam a importância do voto de confiança naqueles que procuravam Bragança para estudar permitindo que se pagasse quando fosse possível: quando se vendesse a castanha, a azeitona ou a amêndoa. Era o tempo das relações de confiança na nobre gente de parcos recursos mas de enormes qualidades. Foi assim de 1938 até 2004. Poderia dizer que foram muitos, mas não digo, porque não foram. Deveriam ter sido mais. Passaram 12 anos desde o seu encerramento. Tem sido um luto difícil. Durante vários anos guardei essa memória numa das tais gavetas, onde se guardam os pedaços de vida. Hoje tudo é tão efémero e volátil que me conforta abrir algumas gavetas de saudade. Desde sempre me lembro de entrar na Livraria e sentir aquele cheiro característico a papel velho, impresso. Ao transpor as velhas portas verdes, entrava-se numa espécie de Babilónia, numa confusão com sentido, mas também se entrava numa espécie de “Porta de Deus” no sentido que ali se encontravam mundos novos, todos os mundos e muita gente boa, a que estava mas sobretudo, a que entrava. Na boa senda do comércio tradicional, recebia-se com gosto e sabia-se o nome de toda a gente. Os métodos de venda não eram os mais agressivos e na verdade muita da clientela procurava apenas dois dedos de conversa.
Quem ali entrava perdia-se numa imensidão de lombadas alinhadas verticalmente, num suave caos que convidava à descoberta. Os livros, aos milhares, aguardavam que um olhar mais atento se fixasse nos seus títulos ou nas suas capas mais ou menos atrativas. Sem nada poderem fazer, aguardavam a sua vez de poderem ser folheados, de se entregarem nas mãos do leitor que os elegera.
O resto era vida. Era o chegar das encomendas muito bem embrulhadas em papel ferro. Era o carteiro de muitos anos que se justificava se não houvesse correspondência para entregar. Era a cabeleireira mais afoita a perguntar se já tinha vindo a Crónica Feminina, a Maria ou, pelo Natal, a Eva. Era o estudante menos empenhado à procura dos auxiliares das obras obrigatórias. Era a professora primária que considerava a sugestão da D. Celeste. Era o senhor da agência que comprava o papel azul de 25 linhas, o papel e os valores selados, numa lógica muito certinha de fazer as coisas. Era o cabo da GNR que vinha levantar a encomenda do economato. Era um corrupio de gente de todos os quadrantes e credos.
Mas o sangue da Livraria jorrava dos seus clientes leitores. Era ali que se oxigenavam lendo a Coleção Vampiro e os casos complexos de Agatha Christie dos Livros do Brasil; As obras de Eça, de Virgílio Ferreira, de Camilo Castelo Branco, de Fernando Pessoa, de Sophia de Mello Breyner Andressen, de Florbela Espanca, de Miguel Torga; Todos os poetas da Assírio & Alvim; A Banda Desenhada da Meribérica; Os vinte e tal volumes da Luso Brasileira da Verbo Editora; A nossa história contada por Oliveira Marques ou José Mattoso; A coleção toda do nosso Saramago, Prémio Nobel; Aqueles que não gostávamos de vender como as entrevistas ao ditador, a cartilha ideológica do nazi sanguinário e ainda o Grande Livro de S. Cipriano que alguns compravam para fazer mal ao vizinho ou à amante do marido; Os romances de cordel de Corín Tellado e aquela Coleção Azul da Romano Torres para as aspirantes a nubentes, ofegantes e desejosas…
Numa outra gaveta, há também espaço para recordar os viajantes que traziam as novidades e sotaques de outras paragens e que faziam centenas de quilómetros em estradas cheias de curvas e sem túneis só para fornecerem a Mário Péricles de Bragança. Traziam no mostruário as últimas levadas à estampa da Dom Quixote, das Publicações Europa-América, da Verbo, das Edições 70, dos Livros do Brasil, da Almedina de Coimbra e da Figueirinhas ou dos Livros Horizonte. Traziam Pessoa da Ática Editora. Traziam Florbela Espanca da Bertrand Editora.
Nas estantes da Livraria Mário Péricles também havia as letras de outras línguas, de outros olhares e pensares. Havia Isabel Allende, Hemingway, Kafka, Milan Kundera, Mário Vargas Llosa, Gabriel Garcia Marquez, Umberto Eco…
Havia tudo. Quase tudo. Se não houvesse, o Sr. Luís escrevia um bilhete postal com uma letra pequenina, letra de poeta, para pedir à editora. Mais tarde dizia-se ao cliente:
- Chega para a semana; Deve estar para chegar ou penso que esteja esgotado. – Mas chegava, sempre chegava.
Os anos passaram e a história da Livraria fez o seu caminho marcando várias gerações, banhando-as de letras, muitas letras. A sua maior marca não será mensurável, essa estará gravada de forma indelével no carácter daqueles que beberam na sua nascente, não o precioso líquido indispensável à vida, mas a não menos dispensável sabedoria que se colhe nas relações humanas de quem gosta, compra e lê um bom livro.





Rui Machado

1 comentário:

  1. Texto maravilhoso. Sublime e verdadeiro. Era assim naqueles tempos. Parabéns. Emocionante.

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