De Norte a Sul, as recriações históricas sucedem-se. Com o calor do Verão chega a Portugal a febre das feiras e festas medievais. Um passeio pelo país na máquina do tempo.
Os celtas reapareceram em Lagoa, o imperador Adriano passou por Alter do Chão mas foi em Tróia que se serviu o garum (o molho de peixe produzido no que é o maior complexo de salga de peixe do Império Romano que chegou até hoje), reafirmou-se a fundação da nacionalidade em Arcos de Valdevez, D. Dinis e D. Isabel já visitaram Coimbra e preparam-se para passar 10 dias em Santa Maria da Feira (estes monarcas tiveram, têm, várias aparições este ano), piratas atacaram Matosinhos, em Leça do Balio assistir-se-á ao casamento de D. Fernando com D. Leonor Teles, já terminou a primeira invasão napoleónica no Vimeiro e em Agosto começará a terceira, em Almeida. Portugal entrou, novamente, numa máquina do tempo e o Verão é feito de recriações históricas – de norte a sul, com predominância a norte do Tejo.
Não é novidade, mas é uma tendência que se vem acentuando nos últimos anos. Começou com a Idade Média (em Coimbra) e tem-se alargado a outras épocas históricas: de Roma ao oitocentos, Portugal revisita a sua história. Contudo, parecem existir poucas dúvidas: aparentemente, não há período de que o país mais goste do que o medievo – há mais de 120 feiras, mercados, medievais no país, desde a capital à mais remota vila. Os motivos são vários, mas um sobressai: temos os cenários para isso. “Muitas pequenas vilas/cidades em que aparecem estas recriações têm o espaço cénico medieval, o território medieval, a matriz medieval de ruas estreitas e tipologias arquitectónicas”, afirma Fernanda Cravidão, professora catedrática da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, coordenadora do doutoramento em Turismo, Lazer e Património e que faz questão de fazer um ponto prévio referindo não ser “conhecedora, sob o ponto de vista científico, do modo de fazer recriações históricas”, a sua área, diz, “é o turismo cultural, os centro históricos”. “O que falta?”, continua, “meter os personagens”.
Mário Ribeiro, da Associação Portuguesa de Recriações Históricas (APRH), que faz recriações que abrangem o período entre II a.C. e o século XIX, concorda: “A nossa maior procura é para o mundo medieval e acho que é porque temos estruturas medievais em excelentes condições. Qualquer sítio onde haja um castelo, o visitante aceita bem, porque estão no espaço físico real”. No ano em que a Feira Medieval de Coimbra comemora 25 anos, que a tornam na mais antiga do país, e em que a Viagem Medieval de Santa Maria da Feira celebra 20 edições, que a transformaram no maior evento deste tipo na Península Ibérica, pode falar-se de um boom de recriações históricas?
Legiões romanas, reis e rainhas, cavaleiros e damas, exércitos portugueses, castelhanos e franceses; taberneiros e artífices, bobos e jograis, mendigos e cuspidores de fogo, malabaristas e acrobatas; oficiais, nobres e até piratas; e, nesta cosmogonia, muita “arraia-miúda”, ou seja, o povo, de ontem e de hoje: os figurantes e os visitantes que circulam nestes mundos como se vivessem num filme ou num livro. Porque muito do imaginário destas épocas é construído através desses meios – e bastante teatralizado, tal como no grande ecrã, mas esse é como que um pacto implícito entre organizações e multidões que se deslocam a estes eventos. Mário Ribeiro, da APRH, fundada em 2001 aglutinando pessoas que já se dedicavam às recriações, não tem dúvidas de que “o que vemos mais, sobretudo nas feiras, é a teatralização, na qual o compromisso é mais com quem vem do que com quem faz, porque há necessidade de o público sentir uma ligação com o que vê”.
Talvez seja esse lado teatral que leva Fernanda Cravidão a falar de quase caricaturas, em alguns casos. Dá o exemplo do mendigo, personagem sobrevalorizado, omnipresente em todas as feiras medievais, de preferência leproso e desdentado. Noutros casos, há tentativas de “desmistificação”: “Nós nunca fazemos feiras medievais, porque estamos mais virados para a pedagogia e explicações técnicas: por que usavam armas diferentes em determinados contextos, como se faziam as armas”, explica Mário Ribeiro. “O nosso métier é mais técnico”, por isso o ambiente natural da APRH é mais museológico. “Quem vai a uma feira medieval espera ver algo que não é coerente com a realidade”, defende, “e não se pode defraudar as expectativas do público. É um produto que vende. Nós afastamo-nos e convidamos membros do público a envergar uma armadura de 20 quilos, juntando-lhe uma espada de 1,5 quilos e ver que não é possível combater com a velocidade a que os filmes nos habituaram”.
Romanos e medievais
Se o nosso tempo está marcado por estas imagens, a verdade é que as recriações históricas começaram muito antes das imagens em movimento fazerem parte do nosso quotidiano. A história lembra que os romanos recriavam cenas das suas batalhas mais famosas nos anfiteatros e na Idade Média revisitava-se o Império Romano. No século XVII, tornaram-se populares em Londres a recriação de batalhas e a partir daí as recriações históricas começaram em crescendo nesse país, que com o Romantismo oitocentista redescobre a Idade Média – e os torneios medievais tornaram-se um “hábito”.
Já no século XX, “os anos 60 e 70 são de descoberta deste nicho de actividade de turismo cultural no resto Europa”, explica Roberto Reis, doutorando em Turismo, Lazer e Cultura na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e professor convidado de Cultura, Turismo e Desenvolvimento na Universidad Rey Juan Carlos (Madrid), sobretudo “em França, Espanha e Escandinávia”. Em Portugal, “o interesse despertou nos anos de 1990, com o trabalho da Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses”, nota Roberto Reis, depois do “trabalho interessante da APOM [Associação Portuguesa de Museologia], sobretudo no incentivo para que as escolas começassem a trabalhar a vertente histórica”. Foi em 1986 que a APOM trouxe para Portugal a técnica da “história viva” colocando-a ao serviço do turismo cultural e do lazer – mas também da museologia e da educação. Agora, turismo cultural, lazer, educação e até museologia, caminham muitas vezes juntos na revisitação da nossa memória histórica.
Boom e banalização?
E voltamos ao país onde há recriações feitas por escolas, por autarquias, por associações locais e por associações de entusiastas, um modelo muito anglo-saxónico (é este o caso da APRH, criada por “haver uma massa crítica de pessoas com a mesma visão do que é a recriação e como deve ser implantada”). Há, realmente, um boom de recriações históricas e tal demonstra, na opinião Roberto Reis, “interesse na história”. “Quando pegamos em adultos e crianças e os conduzimos pela história percebemos que eles querem conhecer o seu passado.” No entanto, há um risco, grave, nesta explosão de recriações, o da banalização, avisa Fernanda Cravidão. “É, de certa maneira comum a fenómenos, diria epifenómenos, que muitas vezes têm sucesso em determinado território. Por questões ligadas a este ou meramente circunstanciais.” “Como teve êxito”, prossegue, “outros lugares, e aqui está parte da justificação para o boom, tentam copiar de alguma maneira o modelo, adaptar ao seu território”. Mário Ribeiro concorda com a banalização e acrescenta-lhe a “perda de qualidade”. “Se imaginarmos que há, digamos, cinco grupos de recriação histórica em Portugal de grande qualidade, eles não podem estar em todo o lado”, exemplifica, sublinhando, porém, que “esta não é uma questão só desta actividade. A qualidade sofre com a massificação”.
E os meses de Verão são o pico desta actividade, em que “grandes eventos se sobrepõem a mais pequenos”, assinala Roberto Reis. No dia em que falámos com o responsável da Velha Lamparina – União de Artes e Ofícios e Recreações Históricas, Manuel Santos, a associação estava a organizar duas recriações: uma feira à moda antiga em Amarante e uma feira medieval em Campo de Ourique (Lisboa) – e no fim-de-semana passado, por exemplo, dividiu-se entre a feira quinhentista de Viana do Alentejo e o mercado oitocentista do Vimeiro (que acompanha a Batalha do Vimeiro). “Para nós, quanto mais destes eventos melhor, porque podemos vender directamente ao consumidor, prescindindo dos intermediários, as lojas.” A associação de artesãos com muitos anos de experiência em vários tipos de recriações – medievais, muitas, romanas cada vez mais, mas que abraça qualquer período histórico desde os primeiros povos da península até ao século XX – considera que a banalização não é um peso, “o que prejudica são os mercadores”. Ou seja, aqueles que se limitam a vender produtos que vão comprar a armazéns. Este foi, aliás, o motivo que levou à criação da associação, “proteger os artesãos”.
Realidade vs ficção
Mas a Lamparina Velha, sendo uma associação de artesãos, também assegura animação à época – monta toda uma recriação. “Temos equipa de animação, à parte, que nos orgulha muito. São mais de 50 animadores, sempre a mesma equipa, que inclui alguns com formação em teatro.” Sempre que há “pouco contexto histórico na terra”, entra mais a parte teatral, explica, e outras animações paralelas, desde passeios de burro, espectáculos (de rua e de palco) relacionados com a história portuguesa (“fazemos pesquisa”) a engolidores de fogo.
Voltamos à questão da ligação do território com os eventos. Nem sempre há “âncoras”, é certo, e em alguns locais os eventos parecem um pouco “artificiais”, “mas cada vez menos”, considera Roberto Reis. “Começa a haver preocupação em encontrar temática relacionada com o território”, afirma. E o “respeito pela identidade local” aliada a alguma “autenticidade” podem ajudar a combater “a banalização que arrisca tornar efémeras algumas dessas manifestações”, defende Fernanda Cravidão.
Aqui entra a questão do rigor histórico, ou ausência dele. “Acho que o rigor histórico é importante na atracção dos públicos, as pessoas sentem-no. Agora se as pessoas vão pelo rigor histórico ou lúdico... Não sei se há muita gente que se interesse ou tenha conhecimento histórico para avaliar com exactidão”, nota Fernanda Cravidão. “Sei que há académicos que trabalham para o rigor histórico de algumas feiras e se calhar essas mantêm-se, percebe-se que não são iguais a todas as outras.” “A maioria das pessoas não tem noção da história, daí a importância do rigor científico das recriações”, afirma Roberto Reis, “quando não existe desaparecem. Foi o que aconteceu com o Festival Erótico Medieval dos Carvalhos [Vila Nova de Gaia]”. Afinal, diz Fernanda Cravidão, se as recriações tiverem esse rigor podem ter uma função educativa, até para as escolas que têm oportunidade de levar os alunos a visitar.
Porém, avisa, “temos de pensar no mercado mais geral”. “Imaginemos uma pequena vila do país: tem o cenário ideal para recriação, mas provavelmente não tem capacidade financeira para mandar fazer artefactos, não tem capacidade humana para assegurar tudo”, descreve, “e assim é mais operacional e mais rápido encomendar feira. Não estamos na Idade Média, estamos a fazer evento para o século XXI e isso traz outras formas de organizar”. Mário Ribeiro volta a usar a analogia do cinema e da televisão para falar do rigor histórico: “há um equilíbrio”, diz, “que tem de ser gerido e que passa não só por aquilo que acontecia na realidade mas por aquilo que o público espera ver, o mesmo que vemos no ecrã e esperamos que seja realidade”.
Agora, não se podem fazer é o que Fernanda Cravidão chama de “recriações descartáveis”, porque, por exemplo, a Coimbra medieval não era igual a Guimarães medieval ou às regiões transfronteiriças: os produtos, as roupas, o artesanato, a alimentação, as actividades eram diferentes de lugar para lugar. “E o que vemos é que por detrás de tudo parece estar uma organização quase fordista de duas ou três empresas que geram esses eventos”, refere “e acabamos por encontrar o mesmo mendigo em Braga e em Coimbra”. A Lamparina Velha “tenta ter o máximo de rigor histórico”, assinala Manuel Santos, “mas nem sempre é conseguido”. “A parte comercial manda mais do que rigor histórico”, reconhece. “O nosso objectivo é lúdico, de lazer, queremos que as pessoas saiam contentes”, justifica e a Lamparina Velha é uma associação de “recreação” não “recriação”.
Legado económico
E agora vários lugares de Portugal revisitam vários períodos históricos, criando um puzzle histórico onde outras eras são trazidas à vida no mesmo território. Por exemplo, Marco de Canaveses tem um mercado romano (nas ruínas de Tongobriga) e uma feira medieval; Braga alinha pelo mesmo diapasão; Matosinhos recria a lenda de Cayo Carpo (época romana), é atacada por piratas do século XIV e tem feira medieval. “O período medieval deu resultado, vamos em busca de outro tempo histórico: romano, quinhentista... É um querer buscar mais gente, mas provavelmente pode alienar público”, avalia Fernanda Cravidão. Actualmente, há “uma preocupação muito grande em fazer com que os lugares sejam visitados. Por motivos diferentes: financeiros, renovar lugares, trazer gente onde não existe (quase) gente, mapear esses lugares. Mas é evidente que cansa.” São formas de marketing territorial ou branding territorial, “que é mais abrangente”. “Buscam-se os grandes ciclos da história nacional como forma de valorizar territórios, é tão simples quanto isso”.
Não há dúvidas, assegura Roberto Reis, de que as recriações históricas deixam “um importante legado económico nas comunidades e, em alguns casos, humano”, pelo envolvimento de colectividades locais, pelo voluntariado e até pela formação de novos grupos. Por isso, acredita que “quando os eventos estão consolidados não se desagregam” e para assegurar tal defende a criação de uma federação portuguesa de recriações históricas que permitiria “chegar a um rigor histórico mais aprofundado, com partilha de experiências e envolvimento de universidades”. Tudo para que os visitantes consigam o que buscam: opinião de Mário Ribeiro, “fugir da realidade”, uma “imersão noutro mundo”. Aliás, cita dois trabalhos do Instituto Politécnico de Leiria em que, além do impacto na economia local que as recriações proporcionam, se estudaram as motivações do público – resumidamente, “sentir-se noutro ambiente” e “comer e beber”. Recorrendo ao latim, uma espécie de panis et circenses benévolo.
Na Feira, a Viagem Medieval
Há um regresso ao passado da própria Viagem Medieval em Terra de Santa Maria nesta sua 20ª edição: um regresso ao reinado de D. Dinis, que protagonizou a segunda, em 1997 e a 12ª. Depois de um primeiro ano mais “generalista” em que se pretendeu recriar a feira do século XIII que acabou por dar nome à localidade, Santa Maria da Feira (mas nunca deu ao evento – “foi sempre ‘viagem’ porque fazemos uma viagem no tempo”, esclarece o administrador da empresa municipal Feira Viva Paulo Sérgio Pais, habituado à permanente confusão), o segundo ano celebrou o monarca que confirmou a feira franca nestas terras, sua propriedade (depois do casamento doadas à mulher, a rainha Santa Isabel), aos seis dias do mês de Setembro e com duração de dois dias.
Assim se fez nesse ano: nos dias 6 e 7 de Setembro, a praça de armas do castelo de Santa Maria da Feira foi o final de um cortejo com os vários produtos que foram depois aí vendidos, banquete, bobos, malabaristas, ciganos, mendigos, sarau, torneio, bailarico; de 11 dos 13 concelhos das antigas Terras de Santa Maria vieram 280 figurantes, não há números de visitantes. A partir da próxima quarta-feira, 27 de Julho, D. Dinis e D. Isabel regressarão a Terra de Santa Maria, mas tudo o resto está a “séculos” de distância. Vejam-se alguns números: 12 dias de animação e recriações históricas, que se espalham por 33 hectares com 28 áreas temáticas; 23 tabernas e oito restaurantes; 60 grupos de animação, 240 artesãos, mercadores e regatões, 350 voluntários, 1500 performances de animação circulante e 16 espectáculos inéditos (260 apresentações); um total de duas mil pessoas a trabalhar diariamente. É, seguramente, a maior recriação histórica da Península Ibérica, há quem se atreva a afirmar que é a maior da Europa. Quanto viajou a Viagem Medieval para aqui chegar?
Voltamos ao início, improvável, a esse ano de 1996 quando duas alunas de mestrado em Turismo na Universidade de Aveiro tiveram a ideia de fazer um mercado medieval em Santa Maria da Feira como projecto final. “Procuraram uma entidade-suporte da iniciativa e chegaram à federação”, recorda o presidente da Federação das Colectividades de Cultura e Recreio do Concelho de Santa Maria da Feira (Fecofeira).
Joaquim Tavares, que na altura ainda não ocupava o cargo mas acompanhou todo o processo. Para a Fecofeira esta foi a oportunidade, explica, de “criar um grande evento de recriação histórica no concelho onde as associações tivessem um papel predominante”. Assim foi nas três primeiras edições, em 1996, 97 e 99 – o interregno em 1998 deveu-se “a questões de ordem financeira” – até que em 2000 a conjuntura foi a ideal para dar o passo seguinte: começar o envolvimento da população e “das forças vivas do concelho, tanto a nível de autarquia como de instituições privadas”. Joaquim Tavares assumiu a presidência neste momento-chave em que Santa Maria da Feira recebeu uma cimeira de chefes de Estado da União Europeia (UE), no âmbito da presidência portuguesa da UE. “Sabíamos que ia ter grande impacto, nacional e internacionalmente.” A câmara municipal assumiu-se como parceira da organização, a viagem transpôs as muralhas do castelo, chegou ao centro histórico da cidade e passou a durar 10 dias.
Se até aqui a animação era providenciada pelas associações locais com “algumas excepções”, a filosofia muda, assume Joaquim Tavares. “Fomos buscar o melhor do país e da Europa e durante cinco anos, mais ou menos, tivemos uma grande componente de grupos [animação e artesãos] estrangeiros.” A câmara, entretanto, passa as suas transferências para a empresa municipal Feira Viva, e começa a grande aposta que acaba por marcar o resto da vida da Viagem Medieval: a formação de grupos locais que visava, a médio prazo, assegurar a animação – uma estratégia de sustentabilidade.
Durante algum tempo, reconhece Joaquim Tavares uma das grandes críticas que se ouvia era que “havia muitos espanhóis e italianos”. Contudo, ao longo dos anos, houve um turn-over quase completo, explica Paulo Sérgio Pais: os grupos estrangeiros não deixaram de vir, mas, desde há alguns anos, cerca de 80 por cento da animação é, outra vez, garantida por grupos locais. Agora com outro nível de qualidade – e até profissionalização. Afinal, repete Joaquim Tavares, “o nosso ponto de honra sempre foi fazer o melhor que se faz na Europa”. E isso foi conseguido, inclusive aproveitando a presença dos grupos estrangeiros para a realização de “workshops de todos os níveis: teatro, dança, música, arte circense”.
Esta foi a evolução logística da Viagem Medieval, no entanto, em termos artísticos também foram sendo superadas etapas. “Um dos momentos mais significativos”, assinala Paulo Sérgio Pais, foi “o salto para o grande formato”. Começou em 2009, com o Assalto ao Castro, e este ano vai duplicar o número desses espectáculos, serão quatro “todos para públicos diferentes e com conceitos diferentes”. Antes, já havia ocorrido “uma das mudanças mais relevantes”. “A viagem andou oito ou nove anos sem grandes referências históricas, sem contextualização, até que em 2010 decidimos começar com a fundação da nacionalidade e seguir a cronologia”, aponta, “foi uma vantagem brutal”. Agora, “todos os anos há novos conteúdos, todos os espectáculos são novos”. Será assim até a Viagem Medieval chegar ao ano 1500. “Nunca sairá do registo medieval”, sublinha Paulo Sérgio Pais, “depois voltaremos ao início”. E será sempre “viagem” e não “feira”.
As viagens desejadas
Voltará a fundação, a sucessão de monarcas e o “ângulo nacional”, o “maior”, que poderá, em algum reinado, “ter âncora territorial”. Na verdade, assume Paulo Sérgio Pais, o que o “fascina” é o seu território e, sabendo que não é possível “ter viagem todos os dias”, crê que “é possível que a Viagem tenha mais presença efectiva durante todo o ano a alimentar o seu diferencial”. “Para que tenha mais benefícios no meu território.” Na sua opinião, a viagem teria duas possibilidades: crescer para cima, que é como quem diz, fazer-se durante mais dias, ou para o lado, com apontamentos ao longo do ano. “Mais viagem dentro da viagem é difícil, seria brutal para os moradores”, reconhece; ter uma rua, como aquela em que estamos, em pleno centro histórico, “mais homogénea [medieval] durante todo o ano” é outra das ideias que lhe dançam na cabeça, “mas isso depende da convergência de muitas vontades diferentes”.
Mais consistente parece ser a hipótese de um “parque temático sazonal” à imagem de Puy du Fou, em França, que visitou há alguns anos e que foi uma espécie de revelação: daí imaginou os espectáculos de grande formato e daí sonha uma réplica à escala nacional (necessariamente “reduzida”) – é a “Viagem desejada”, como escreveu no livro em que faz a revisitação de todas as edições da Viagem Medieval em Terra de Santa Maria (a que queria fazer e a que quer que a Viagem Medieval faça).
Joaquim Tavares tem outra perspectiva. “Qualificar, qualificar, qualificar”, repete. Acredita que o caminho é olhar para cada sector da viagem, quer do ponto de vista da estrutura quer do conteúdo, e “atingir a excelência”.
Já estiveram mais longe. Quando se começou a apostar na criação de espectáculos de grande formato próprios na Viagem Medieval, Paulo Sérgio Pais, que até escreveu o primeiro numa folha de Excel, conta, lembra-se de andar de megafone na mão a coordenar ensaios: “Isto é a sério ou a brincar?”, gritava. Actualmente, todos sabem que é a sério. “Há uma grande consciência na maioria das associações de que a Viagem é um palco tremendo, cheio de oportunidades”, sublinha Joaquim Tavares. As acções de formação (dança, teatro, esgrima...) começam várias semanas antes da abertura. E, entretanto, foram surgindo novas associações e grupos dentro da própria viagem – “funcionou como uma espécie de incubadora” –, que se profissionalizaram e vendem o seu produto, “até para fora”. “O que se faz em Santa Maria da Feira já é uma referência em termos de qualidade de performance”, afirmam os responsáveis. Pode até falar-se da existência de uma indústria cultural de recriação histórica, que vai desde os espectáculos de grande formato a performances de rua, e é uma das portas abertas para a internacionalização, “levando sempre o nome da Viagem”, explica Joaquim Tavares e ligando esse “fazer bem” ao tecido económico do concelho. Nesta grande aventura colectiva, não ficam de fora nem as escolas com envolvimento dos alunos – os do 1º ciclo fazem o espectáculo “Pequenos Guerreiros” – e até das associações de pais.
Um estudo do IPAM calcula que o impacto económico da Viagem Medieval no território é superior a 10 milhões de euros. “Mais significativo”, contudo, realça Paulo Sérgio Pais, “é o reinvestimento permanente”. “É fascinante: permite um upgrade no movimento associativo e cria um ciclo virtuoso.” Joaquim Tavares confirma: “Uma das grandes virtudes é que os benefícios financeiros são devolvidos à população ao longo do ano, seja com música, teatro...”. E já que falamos em finanças, o orçamento da Viagem, um milhão de euros nos últimos anos, é integralmente gerado por receitas próprias (bilheteira, merchandising, patrocínios). “É um case study”, defendem os responsáveis.
A história espectacular
Por estes dias, o palco – e, lembramos, são 33 hectares – já está quase terminado; os ensaios já se realizam in situ, os pendões já estarão a adornar muitas das fachadas da cidade (esta foi mais uma iniciativa de aproximação à população) e os pórticos já estarão montados. Começaram a ser colocados antes mesmo do início da cobrança de entradas (medida “muito polémica”, recorda Paulo Sérgio Pais, que este ano tem alterações numa tentativa de contornar a concentração de visitantes à sexta-feira e sábado) para assinalar a fronteira entre a cidade a moderna e a medieval. O regresso ao passado tem o rigor científico e o aspecto lúdico em equilíbrio pensado. “Como a viagem tem muitas áreas temáticas, é possível termos umas de rigor puro, como o povoado, e outras de recriação mais lúdica, com jogos para miúdos, por exemplo”, explica Paulo Sérgio Pais. Reconhece, contudo, que “é preciso, de certa forma, dar espectacularidade à história”. Recorda a introdução de bandas sonoras, “gradual, porque os mais puristas não queriam”. “Mas se podíamos exponenciar as experiências, as emoções...” O conceito é cinematográfico, assume, com referências como Braveheart.
Não veremos William Wallace, mas D. Dinis e D. Isabel andarão a partir do próximo dia 27 (quarta-feira) por Santa Maria da Feira, como se estivessem na transição dos séculos XIII para o XIV. Viver-se-ão os momentos mais significativos do reinado do “plantador de naus” desde o casamento (em que ofereceu o castelo da Feira à noiva) às guerras com o filho, das conspirações à poesia e claro, os milagres que valeram a santificação de D. Isabel (um dos quais em Terra de Santa Maria). Acompanhar-se-á o quotidiano medieval, entre a corte e o povo. E assistir-se-á ao nascimento de novos infantes de Terra de Santa Maria: todos os bebés que nasçam no Centro Hospitalar de Entre Douro e Vouga (Hospital de S. Sebastião), em Santa Maria da Feira, entre 27 de Julho e 7 de Agosto de 2016, vão receber o “título” e um “salvo-conduto” que os isenta de “portagens” sempre que, no futuro, acedam ao recinto do evento.
AGENDA
Mercado Medieval de Óbidos
ÓBIDOS, 14 de Julho a 7 de Agosto (de quinta-feira a domingo)
Arouca – Uma recriação histórica
AROUCA, 22 a 24 de Julho
Galaicofolia
CASTRO DE S. Lourenço, Vila Chã (Esposende), 22 a 24 de Julho
Mercado Medieval D. João I, rei dos portugueses
LEIRIA, 22 a 24 de Julho
Viagem Medieval em Terra de Santa Maria
- D. Dinis, plantador de naus
SANTA MARIA DA FEIRA, 27 de Julho a 7 de Agosto
Pirate Week
ARMAÇÃO DE PERA, Baía, 4 a 10 de Agosto
Aljubarrota Medieval
ALJUBARROTA, 12 a 15 de Agosto
Feira Medieval de Belmonte
BELMONTE, 12 a 15 de Agosto
Feira Medieval de Silves
- Ibn Qasí: O mestre errante que o destino venceu.
SILVES, 12 a 22 de Agosto
Feira Quinhentista de Amares
AMARES, 12 a 15 de Agosto
Festa da História
- Reinado de D. Sancho I
BRAGANÇA, 12 a 15 de Agosto
Feira Romana de Lamalonga
MACEDO DE CAVALEIROS, 13 e 14 de Agosto
Festa dos Povos de Aquae Flavie
- Mercado galaico-romano no reinado do imperador Tito Flávio Vespasiano.
CHAVES, 19 a 22 de Agosto
Dias Medievais de Castro Marim
CASTRO MARIM, 24 a 28 de Agosto
Mercado Medieval
- Recriação da época de D. Mafalda, primeira rainha de Portugal
MARCO DE CANAVESES, 2 a 4 de Setembro
Vindouro – Festa pombalina
SÃO JOÃO DA PESQUEIRA, 3 e 4 de Setembro
Feira Quinhentista de Aldeia Galega
MONTIJO, 9 a 11 de Setembro
Fafe dos Brasileiros
FAFE, 16 a 18 de Setembro
Braga Barroca
BRAGA, 21 a 25 de Setembro
Feira Medieval de Palmela
- A sede da Ordem de Santiago vem para Palmela
PALMELA, 23 a 25 de Setembro
Feira Tradicional Maria da Fonte
PÓVOA DE LANHOSO, 24 e 25 de Setembro
Ceyceyra Medieval
ASSEICEIRA (Tomar), 8 e 9 de Outubro
Felgueiras Romana
FELGUEIRAS, 15 e 16 de Outubro
Por: Andreia Marques Pereira
Jornal Público
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