A lenda da Cabeça do Mouro
Versão A:
Nam há documento por que conste sua fundação [igreja de São Salvador, no concelho de Torre de Moncorvo], e só huma vulgar tradiçam de que fora feita no lamentavel tempo em que os mouros dominavão esta terra por um christão em competência de hum mouro que ao mesmo tempo fazia uma mesquita no sítio da Portella, termo da villa de Moncorvo no fundo das Fragas dos Estevais, que convertida em templo de christãos, he hoje da invocaçam de Sam Mamede e ainda que no presente se ache arruinada, comtudo mostra a admirável forma da sua fundação.
He da mesma tradiçam que estes dois oficiaes christão e mouro nesta sua competência contratarão que aquele que milhor fizesse a sua obra mataria o outro, e que acabando primeiro o christam a sua, e hindo ver a do mouro, e reconhecendo levar a sua vantagem, o convidara para logo vir tambem ver este a sua e vindo a isso caminho direito, descansando a huma fonte no cimo do lugar de Cabeça de Mouro termo da dita villa de Torre de Moncorvo junto da igreja della dilatando-se algum tempo a conversar dissera que se naquella ocasiam morria nam aviam de prejudicar nem fazer mal com seo veneno as muitas bichas(58) que na muita distancia de terra, que dali se ve, havia, e que se tem e teve em toda ela por certo pela conhecida experiencia havida das muitas que tem mordido muitas pessoas sem prejuizo nem damno.
E que havendo de beber na dita fonte, o christão dolosamente persuadira o mouro a que o fizesse primeiro e que fazendo-o e abaixando-se para isso, lhe cortara a cabeça com um treçado, de cujo sucesso ficara áquella fonte o nome de Fonte de Cabeça de Mouro, e que povoando-se depois o lugar, que ali há, se chamara pela mesma rezam Cabeça de Mouro. E povoando-se outro logo a elle vezinho do mesmo termo da Torre de Moncorvo se chamara Cabeça Boa per razam do dito sucesso, o prodigio de as bichas daquellas terras não prejudicarem, havendo muitas.(59)
(58) Segundo o autor da transcrição a designação de bichas corresponde a víboras.
(59) Esta transcrição conserva a ortografia do documento original, datado de 1721.
Versão B:
No concelho de Torre de Moncorvo, há um lugar conhecido por “Cabeça do Mouro” a que está associado a seguinte lenda:
Conta-se que um cavaleiro cristão, ao passar cansado e cheio de sede, encontrou uma nascente de água e logo desceu do cavalo para beber. Contudo, ao aproximar os lábios da água reparou que, dentro e fora do pequeno açude, havia víboras e escorpiões, o que o levou a dar um salto para trás e a afastar-se da água.
Nisto, ouviu atrás de si uma voz que lhe perguntou:
– Então tens sede e não bebes?
– E como? Para ser mordido por uma víbora ou um escorpião?...
O desconhecido era um mouro, que logo se aprontou a ajudar o cavaleiro cristão a matar a sede.
– Podes beber descansado – disse-lhe o mouro –, que eu, com os poderes que tenho, encantarei todas as víboras e os escorpiões para que te não façam mal enquanto bebes!
E assim aconteceu. Porém, vendo como todos os répteis estavam encantados, o cristão puxou da sua espada e cortou, no mesmo instante, a cabeça ao mouro para que este os não desencantasse.
Por isso se diz que as víboras e os escorpiões destas redondezas são inofensivos para o homem e não há notícia de que alguma vez tenham feito mal a alguém, ao contrário do que acontece noutros sítios. Também no lugar da nascente existe hoje uma fonte de água fresca e pura, muito procurada para matar a sede no Verão, que é conhecida como a fonte da “Cabeça do Mouro”.
Fonte – versão A: MORAIS, Joam Pinto de; PINTO, António de Sousa, Memorias de Anciães, 1721 – apud ALVES, Francisco M. – Memórias Arqueológico-Históricas do Distrito de Bragança, vol. IX, Porto, 1934, pp.116-117. Fonte – versão B: PARAFITA, Alexandre – O
Maravilhoso Popular – Lendas. Contos. Mitos, Plátano Editora, Lisboa, 2000, pp. 43-44.
Santo Apolinário e os mouros
Tendo-se os mouros assenhorado em 716 da cidade de Caliabria, e como Apollinário, bispo da mesma cidade, não quisesse renegar suas doutrinas, que eram as do cristianismo, nesse mesmo ano, segundo diz a lenda, os mouros o amarraram a dois touros bravos, e o levaram arrastado desde a cidade até ao lugar onde está a sua capela, atravessando o rio Douro, da parte da Beira Baixa para Trás-os-Montes. Chegado ali, ou à cidade de Ravêna(60), que ficava mais no alto, foi cruelmente martirizado.
Os cristãos, que tinham por ele muita fé e respeito, mandaram construir um lindo túmulo e meteram dentro o corpo do santo, onde ainda hoje se venera dentro da sua capela. (...) No túmulo do santo estão representados, em relevo, os touros que o arrastaram e os mouros que o acompanharam.(61)
(60) Povoação extinta, que esteve situada na coroa do Outeiro, próximo da aldeia de Urros, no concelho de Torre de Moncorvo.
(61) Pinho Leal também tornou pública esta lenda, observando que “a terra que cobria o corpo do santo tem sido quase toda tirada por um buraco, feito de propósito para isso; porque o povo acredita que, bebendo uma pitada desta terra misturada com água, é remédio infalível para curar as febres intermitentes”. E diz também que, junto à capela há um grande cipreste, o qual “nasceu de uma gota de água, que o santo ali vazara de uma cabacinha que tinha enchido quando passou o Douro”; e que também existe um chafariz, cuja água “está clara quando o Douro corre límpido e se faz turva quando o rio assim vai” (1882: 19-20). Conserva-se ainda na tradição popular o costume de “as mães prometerem
os filhos que são muito maus” ao Santo Apolinário. E dizem esta quadra:
“Santo Apolinário duro,
Que amansais os touros bravos,
Amansai-me esta criança
Que é má com’ós diabos”
[dita por António dos Santos Dias, 65 anos, em 1999, Carviçais, Torre de Moncorvo]
Fonte: PEREIRA, José Manuel Martins, As Terras de Entre Sabor e Douro, Setúbal, J.L. Santos, 1908, pp. 84-85.
O buraco dos mouros debaixo da capela
[Na freguesia de Urros, concelho de Torre de Moncorvo] está o alto chamado do Castelo, de grande elevação, e no seu cume se vê a antiga ermida de Nossa Senhora do Castelo, ou dos Prazeres. Esta capela é muito antiga.
Neste alto há também uma grande caverna feita na rocha e que passa por baixo da ermida de Nossa Senhora, a qual dizem uns ser obra dos romanos, e outros dos mouros para sua vivenda. O povo também lhe chama buraco dos mouros. Esta caverna está à entrada cheia de hera e serve hoje de habitação às aves nocturnas(62).
(62) O padre Jerónimo Contador de Argote, na sua Memória do Arcebispado de Braga, também se refere a este “Buraco dos Mouros”. E diz que “tem largura bastante para andarem cinco ou seis pessoas emparelhadas” e que “houve pessoas que intentaram investigar o comprimento e fim desta notável concavidade, mas à vista do muito que corria para o interior, desistiram da empresa; só depõem que dentro acharam largos, formados à maneira de casas” (apud LEAL, 1882: 19).
Fonte: PEREIRA, José Manuel Martins, As Terras de Entre Sabor e Douro, Setúbal, J.L. Santos, 1908, p. 85.
A Mitologia dos Mouros
Alexandre Parafita
A mitologia dos mouros
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