Nas montanhas portuguesas a paisagem está a mudar. E isso afeta um fruto cujo cultivo tem margens de lucro cada vez mais elevadas e com o qual Portugal tomou a liderança da produção europeia: a castanha. O interior do país parece ter ganho um novo balão de oxigénio com o castanheiro, mas as alterações climáticas estão a pô-lo em causa. Em Trancoso, metade dos soutos estão doentes. História da mudança do planeta, vista de uma serra beirã.
É fácil tropeçar num galho quando se caminha por um bosque de castanheiro. Mas Alfeu Magalhães costuma atravessa‑los com um tablet na mão, aprendeu a ter um olho no trilho e outro no ecrã. O engenheiro informático é desde há três anos proprietário de 14 dos 1500 hectares de souto que existem no concelho de Trancoso, distrito da Guarda – no país todo são 40 mil. Todos os dias visita o terreno munido do software que o próprio criou para monitorizar intervenções, doenças e estado de desenvolvimento de cada árvore. «Com este controlo mais apertado consegui aumentar a produção em vinte por cento. Mas, por causa das doenças que estão a aparecer, perdi vinte por cento do arvoredo. Produzo o mesmo que há cinco anos. Só que com menos um quinto das unidades e ganhando mais dinheiro.»
A frase explica bem o que está a acontecer com o castanheiro em Portugal. Há um crescimento forte no setor e, em média, as serras portuguesas (o castanheiro dá-se nas zonas de altitude dos países temperados) ganham anualmente 600 novos hectares destas árvores. Na década de 1970, aliás, não havia mais de 15 mil hectares de souto, quase um terço da área que a árvore hoje ocupa. E o que explica esta mudança é essencialmente o alto valor do fruto no mercado.
UM PRODUTOR DE CASTANHA GANHA DOIS EUROS POR QUILO DE ESPÉCIE COMUM – E O DOBRO POR ESPÉCIE CERTIFICADA. SÓ PARA SE PERCEBER AS DIFERENÇAS, O PREÇO DE UM QUILO DE MAÇÃ INDIFERENCIADA RONDA OS VINTE CÊNTIMOS.
«É provavelmente o setor agrícola que garante maiores margens de rentabilidade», diz José Laranjo, presidente da Associação Portuguesa da Castanha (APC) e professor na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD). «E isto tem‑se revelado uma janela de oportunidade incrível para áreas que antes estavam despovoadas. A recuperação e criação de novo souto cresceu como nunca nos últimos cinco anos. Porque a procura é elevada.» Segundo os números da APC, esta é uma cultura que lucra anualmente sessenta milhões de euros no mercado interno e setenta na exportação.
Alfeu Magalhães, 31 anos, percebeu a conjuntura. Depois da licenciatura em engenharia e de trabalhar dois anos como informático, viu‑se com uma de duas opções: ou ia para Lisboa ou Porto tentar arranjar emprego na sua área ou ficava na terra dos pais e reabilitava a produção agrícola. «Escolhi a segunda e nunca me arrependi. Com uma licenciatura teria de me matar a trabalhar para ganhar mil euros.» E, só no ano passado, faturou cem mil em castanha com a empresa que fundou, a AgroTamanhos.
«Mas conseguir fazer isto dá trabalho e despesa, não se pode deixar um castanheiro o ano inteiro sozinho e esperar que dê o que os meus dão. Muita gente precisa de cinquenta castanhas para encher um saco de quilo e eu consigo fazê‑lo com vinte. É preciso medir e corrigir, trabalhar todos os dias.» O mais preocupante são as pragas. «A escalada de árvores doentes é uma realidade. Um produtor hoje tem de se preocupar com uma mudança nos ecossistemas que afetam, e de que maneira, as árvores. A subida da temperatura está a alterar os soutos.»
Para 2016, a Câmara Municipal de Trancoso prevê uma quebra de cinquenta por cento da produção no concelho. A autarquia está na lista dos cinco municípios com mais castanheiro em Portugal, atrás de Bragança, Vinhais, Valpaços e Penedono. «Temos seis mil habitantes e dez por cento da população produz castanha. São três milhões de euros todos os anos, é de longe o setor mais importante da nossa economia, e o que envolve mais famílias», diz Amílcar Salvador, presidente da autarquia. «Quando a seca e as pragas nos colocam perante um cenário de quebra de metade da produção, ficamos assustados. O que queremos fazer é apostar cada vez mais nisto, converter as áreas ardidas em souto, qualificar as pessoas para desenvolverem diferenciação. E depois acontece esta ironia: a castanha cria grandes expetativas, é a luz ao fundo do túnel e, neste momento, provoca‑nos um enorme desânimo.»
O AUMENTO DE TEMPERATURA TROUXE NOVAS DOENÇAS, OS SOUTOS DE TRANCOSO ESTÃO ASSOLADOS PELO CANCRO DO CASTANHEIRO, A DOENÇA DA TINTA E SOBRETUDO A VESPA-DOS-GALHOS.
Fora da muralha da cidade, depois do recinto da feira, há um parque botânico onde se percebe a dimensão da tragédia. Quando, em meados de outubro, um tipo se coloca ao lado do tronco de um castanheiro e olha para cima, a única imagem que pode esperar é de ramadas carregadas de ouriços, prestes a caírem para ser apanhados. Mas não aqui. Os ramos foram atacados pela vespa‑das‑galhas‑do‑castanheiro, uma praga vinda da China que aqui se está a propagar a grande velocidade. O assunto é tão sério que o Ministério da Agricultura desenvolveu um Plano de Ação Nacional para combate‑lo [ver caixa na página 29]. Não se pode dizer que seja uma calamidade nacional, mas em Trancoso é. Introduzido na Europa através de Itália, o Dryocosmus kuriphilus chegou a Portugal há dois anos e está a reproduzir‑se muito rapidamente por causa da subida das temperaturas médias. Na aldeia de Souto Maior, por exemplo, há castanheiros centenários arruinados. E isso é a desgraça de Maria Pinto.
Há quatro anos, depois de mais de duas décadas a arrendar o terreno onde vivia com o marido, conseguiu finalmente comprar um pedaço de paraíso. Tem uma horta pequena, uma cerca para guardar as ovelhas e quase uma centena de castanheiros frondosos e altos, cada um deles com centenas de anos. «São menos de dois hectares, mas nos primeiros anos deram‑nos cinco toneladas de castanha. Agora, vamos ter sorte se fizermos 500 quilos.»
A VESPA‑DAS‑GALHAS‑DO‑CASTANHEIRO ATACOU FORTE NESTES TERRENOS. NA VERDADE, É UMA PEQUENA MOSCA, DE DOIS MILÍMETROS, QUE SE EVIDENCIA NO INÍCIO DO VERÃO, QUANDO AS NOVAS RAMADAS COMEÇAM A DESPONTAR.
As vespas colocam os ovos nas extremidades das árvores, comprometendo o aparecimento de ouriços. Criam bugalhos que são ninhos para cinco novos indivíduos e, nos seus dez dias de vida, conseguem pôr 100 a 150 ovos. Em dois anos, deram cabo dos castanheiros de Souto Maior. «Agora é deitá‑los abaixo e plantar outros, para os meus bisnetos», diz a dona da propriedade com um sorriso magoado. «Estes estão mortos, já não recuperam.»
Por estes dias, as autoridades agrícolas andam a tentar combater a praga através de luta biológica, mas só ao fim de uns quatro a cinco anos se verificam resultados. A vespa‑das‑galhas‑do‑castanheiro não é, porém, a única ameaça para os castanheiros em Portugal (a Trás-os-Montes, por exemplo, de onde é proveniente 85 por cento da castanha nacional, o inseto ainda não chegou). Há outras doenças que o aquecimento global está a potenciar. Como o cancro do castanheiro e a doença da tinta, que se espalham à medida que os verões se tornam mais e mais inclementes e a paisagem vai mudando em consequência dessa alteração. «Normalmente, o castanheiro dava‑se em regiões a partir dos 400 metros de altitude, mas nos vales mais baixos as árvores estão a morrer», diz António Laranjo. «Então o souto está a subir terreno, hoje já o encontramos em zonas muito mais altas, a 900 e mil metros.» É como se o bosque corresse serra acima, para fugir do calor.
Há trinta anos, Francisco Couto (que tem 60) comprou cinco hectares de terreno e plantou‑os com 500 castanheiros. A árvore pode dar fruto ao fim de uns sete a oito anos, mas a produção regular digna de nota demora bem mais do que isso a alcançar. Era o seu investimento para a reforma, quando deixasse o ofício de professor primário dedicar‑se‑ia à castanha. O souto, a 580 metros de altitude, sempre produziu boas quantidades, pelo menos uma centena de toneladas. O homem investiu num sistema de rega, potenciou ao máximo a produção.
Só que, de há sete anos para cá, as árvores começaram a morrer. «Deixou de nevar e os dias de verão com 42 graus passaram a repetir‑se. Então agora não produzo nada, nem um quilo. Gela‑se‑me o coração sempre que passo por aqui.» Atrás de si, um bosque morto, custa ver. Os planos para a reforma saíram gorados e, no mesmo local, Francisco está a construir um turismo rural de 15 quartos para compensar. «Mas não deixa de ser triste. Sempre afirmei que o turismo não podia ser a única solução para o interior do país, que é preciso trabalhar a terra, produzir. E bem tentei. Mas as alterações climáticas tramaram‑me.»
A autarquia de Trancoso está a lutar para que o desânimo não tome conta do setor. Hoje [6 de novembro] termina a Feira da Castanha de Trancoso, um certame de três dias com sessenta stands dedicados ao fruto – e que atrai sessenta mil visitantes. Realiza‑se desde 2013 e todos os anos tem crescido.
«CRIÁMOS UMA OFICINA CRIATIVA DA CASTANHA COM O OBJETIVO DE AJUDAR OS NOSSOS PRODUTORES A CRIAR PRODUTOS TRANSFORMADOS», EXPLICA O PRESIDENTE DA CÂMARA.
Se há menos castanha, é preciso engenho para ganhar mais com o que se tem. E se as doenças estão a reduzir a dimensão do fruto, e muito não tem calibre para chegar ao mercado de venda direta, pode produzir‑se farinha de castanha, licor de castanha, compota de castanha ou leite de castanha. «Temos de trabalhar com o que temos.»
André Chelim tem 24 anos e licenciou‑se em Gestão pela Universidade de Coimbra, mas também anda a tentar fazer vida com o que o souto lhe dá. «Não tenho sequer um hectare de terreno, não tenho outro remédio senão ser criativo.» É um autodidata, pôs-se a pesquisar livros e agora conseguiu criar duas bebidas à base de castanha – café e cerveja. «Quero trabalhar com este produto, para mim a castanha é a memória de a família se juntar aos fins de semana para ir aos ouriços no outono, a brincar uns com os outros.» Com farinha de castanha torrada está a desenvolver produto completamente novo. «O meu objetivo é criar uma marca forte de cerveja artesanal. E, se isso funcionar, poderei continuar a morar em Trancoso. É aqui que quero viver.» Junto à muralha do castelo de Trancoso, Lúcia Fonseca está a tentar pensar da mesma maneira. Há quatro anos, depois de terminar o curso na escola de hotelaria de Manteigas, abriu portas ao Dom Gabriel, um restaurante onde é ela a tomar conta dos tachos. «A oportunidade de cozinhar sazonalmente com produtos regionais de tão boa qualidade é um privilégio para qualquer chef», vaticina. «E, quando chega a época da castanha, as aplicações não têm limites.» Hoje vai servir uma entrada de migas de castanha com fumeiro, um prato principal de ensopado de borrego com míscaros e castanhas e terminar com um gelado de castanha com crepe do mesmo.
«O mercado hoje está mais exigente. As pessoas que nos visitam procuram cada vez mais qualidade e eu optei por fazer uma versão mais sofisticada da cozinha regional, coisa que está a correr muito bem. Nesse aspeto, a castanha é a minha maior aliada.» Para ajudar à festa, Trancoso tem uma denominação de origem protegida, a castanha dos Soutos da Lapa, de variedade martainha.
EXISTEM, NO TOTAL, 34 VARIEDADES DESTE FRUTO EM PORTUGAL, SENDO AS MAIS COMUNS A JUDIA, A CÔTA E A LONGAL. INTRODUZIDA NA PENÍNSULA IBÉRICA HÁ DOIS MIL ANOS, SEMPRE SE REVELOU UM CASO DE SUCESSO NO PAÍS.
Hoje, depois da China, Portugal ocupa o lugar cimeiro da produção de castanha. Não só pelo crescimento da área de souto como pelas doenças que arruinaram a liderança italiana. Foi este o país do continente onde a vespa atacou mais forte.
«Se aproveitarmos a área que já temos, se plantarmos mais castanheiro, facilmente conseguiremos triplicar a nossa produção. E a perspetiva de termos procura para o produto acontece a longo prazo. O mundo está a redescobrir o valor nutritivo elevado e o valor calórico baixo da castanha», diz o professor Laranjo, nos laboratórios da UTAD. Mas será essa perspetiva realista quando o aquecimento global parece ter efeitos tão diretos sobre as árvores portuguesas? A solução pode estar numa estufa em Vila Real. Por estes dias, o docente anda a testar uma série de experiências na universidade que podem resolver o problema. «São investigações que estão a mostrar resultados muito animadores. Andamos a testar adubagem com um nutriente mineral chamado cilício e constatamos que as plantas desenvolvem resistência ao calor.» É um sinal encorajador.
Nos soutos de Trancoso a ajuda não chegará a tempo da tragédia. Este vai ser um ano difícil e toda a gente parece ter consciência do facto. Alfeu Magalhães, o engenheiro informático que deixou a profissão e voltou à terra para tomar conta do souto da família, acredita que, com amor aos castanheiros, a coisa vai lá. «É preciso dar azoto ao solo na primavera e fazer as enxertias.
É preciso fazer rega no verão para as plantas aguentarem a sede. E, se a vespa atacar, deitar‑lhe parasitas. É preciso fazer podas no inverno, depois da apanha de outono. Só podes gastar 365 dias por ano numa coisa se gostares dela. Para mim, cuidar dos castanheiros é sentir que posso viver da natureza e das estações, mesmo que os ciclos da natureza estejam a mudar.» O rapaz abre um ouriço e arranca‑lhe as castanhas. Segura‑as na palma e diz: «Digam lá que isto não é a coisa mais bonita que há.»
COMBATER UM INSETO COM OUTRO
O Plano de Ação Nacional para Controlo do Inseto Dryocosmus kuriphilus passa, em grande parte, pela luta biológica levada a cabo pelas autoridades agrícolas. Mas a tarefa demora o seu tempo. «O tratamento só funciona ao fim de quatro ou cinco anos», diz António Laranjo, professor da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro. «E mesmo assim não conseguimos erradica‑lo totalmente.» O que fazem é aplicar um parasita chamado Torymus, outra mosca, que destrói a vespa. «Não tem qualquer efeito para os castanheiros, simplesmente colocam os ovos nos bugalhos onde as vespas nidificaram e destroem‑nos. Que nunca ninguém diga que as moscas não servem para nada.» Cada aplicação custa, em média, trezentos euros por cada pequena área intervencionada – Trancoso é o município onde já foram feitas mais aplicações no país.
Fonte: Notícias Magazine
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