O problema da floresta não é tanto do âmbito legislativo, mas da sua operacionalização, que depende muito mais do voluntarismo de Estado do que de compromissos para o “bom funcionamento” dos mercados.
Está em consulta pública o pacote legislativo acerca de uma reforma para a floresta. O Governo cumpriu. Depois de mais uma época tremenda de fogos, o assunto não morreu nas palavras. A floresta está na agenda política. Isso é, desde logo, positivo. Também o processo me parece estimulante: trabalho intergovernamental, discussão pública alargada, envolvimento dos agentes, procura de compromisso na Assembleia da República.
1. A dura realidade
Portugal é o único país da Europa que está a perder área florestal (segundo relatório da FAO, 2015). Os dados do Eurostat confirmam isso mesmo (menos 255 mil hectares entre 2006 e 2015, isto é, 8% numa década). Este não é um bom cartão-de-visita para um país onde a floresta é reconhecidamente importante do ponto de vista económico e de gestão territorial, tendo um impacto enorme nos domínios das alterações climáticas e na conservação dos recursos solo, água e biodiversidade (cujo valor anual estimado de produção de bens públicos é da ordem dos 220 milhões de euros). Será possível inverter esta pesada tendência de redução de área florestal com as medidas propostas? Não creio. Com a necessidade de contenção das espécies de crescimento rápido e sem mecanismos de forte compensação que permitam a expansão de outras espécies e sistemas (um programa robusto silvo-ambiental que valorize os sistemas florestais e agroflorestais) e sem instrumentos de regulação de mercados (que equilibre a relação de forças entre uma indústria poderosa e uma produção pouco organizada), é mais que provável que em 2025 teremos ainda menos floresta do que agora.
Mas podemos ter uma floresta melhor gerida? Neste domínio as políticas públicas têm um efeito de alavanca, mas na prática os resultados têm sido dececionantes. A obrigatoriedade de apresentação de Planos de Gestão Florestal (PGF) para acesso aos apoios públicos levou a que mais de 1.5 milhões de hectares se tivessem submetido a este regime – embora somente 15 a 20% dessa área tenha sofrido intervenção desde 2006. O incentivo à criação de Zonas de Intervenção Florestal permitiu agrupar mais de 800 mil hectares, com muito interesse na Defesa da Floresta Contra Incêndios (DFCI), mas com baixo impacto no investimento produtivo. A certificação florestal é praticada em cerca de meio milhão de hectares e veio trazer uma dimensão de mercado mais estruturada, mas ainda residual na geração de valor. O que agora é proposto, com a criação das Sociedades de Gestão Florestal, o Banco de Terras e o cadastro simplificado, poderá contribuir, pois, para resolver alguns estrangulamentos que subsistem na gestão sustentável da floresta e na escala de intervenção e produzir resultados no médio prazo.
A outra dimensão essencial é a Defesa da Floresta Contra Incêndios. Se o atual sistema mostrou ter virtualidades, depois da sua criação em 2006, com um período de redução de áreas ardidas quase para metade (de uma média anual de 130 mil para 70 mil hectares, antes e depois daquela data), nos últimos cinco anos houve uma regressão. Uma leitura rápida permite-nos afirmar que após a primeira fase de instalação das grandes redes de prevenção e de criação de Equipas de Sapadores Florestais e de Planos Municipais de DFCI, entrámos num período de estagnação. O dispositivo de combate vai apagando os fogos, mas o modelo de prevenção não consegue evoluir. Elemento muito interessante – talvez a grande inovação destas medidas legislativas – a abertura para o uso do fogo de gestão (incêndios em épocas frias que ajudam a reduzir material combustível) e o uso sistemático do fogo controlado (criação do Plano Nacional de Fogo Controlado), ajuda a fazer a diferença. Mas não assegura a mudança.
2. Municipalização: dos equívocos à racionalidade do modelo
O debate à volta da municipalização da floresta, numa área que é esmagadoramente privada, só será consequente se não houver equívocos. Importa clarificar os níveis de intervenção e o papel dos municípios e da sua organização intermunicipal. Desde logo, não confundir o papel do planeador com o do gestor, evitando conflito de interesses. E dar centralidade no texto normativo às Comunidades Intermunicipais enquanto entidades de planeamento da Defesa da Floresta Contra Incêndios (em coerência, aliás, com o que se está a fazer com a elaboração dos Planos Regionais de Ordenamento Florestal). E, logicamente, estabilizar todo a arquitetura deste modelo nas cinco regiões plano, bem como o Sistema Nacional de Proteção Civil – o que impõe também aqui alterações legislativas – desfazendo o equívoco territorial do distrito. Este é um passo decisivo para dar maior racionalidade ao sistema.
Todos os anos nos repetem que falta prevenção. Dos 2000 quilómetros de “auto-estrada” previstos na rede primária estão concretizados menos de 30%. São precisos 120 milhões de euros para fazer o que resta e 150 milhões de euros para manutenção até 2025. Fora a rede secundária, caminhos e pontos de água. Para atingir o objetivo da duplicação das Equipas de Sapadores Florestais (500) são precisos mais 90 milhões de euros. Significa que este modelo de DFCI necessita, no mínimo, da duplicação de fundos, isto é, de 60 milhões de euros por ano. É possível? Os apoios de Estado são limitados e não esticam.
Os municípios fazem já um enorme esforço, representando 60% do investimento em prevenção e, mesmo assim, têm baixas taxas de execução (40%) dos Planos Municipais De Defesa da Floresta contra Incêndios. Importa rever o modelo, adaptando-o às diferentes realidades fundiárias do país e estimular a racionalização dos meios, através do associativismo municipal, em zonas homogéneas e em função do risco, procurando estabelecer prioridades de intervenção e promover a melhoria da eficácia destes planos. Isso permitiria dar uma nova lógica aos Gabinetes Técnicos Florestais, às Equipas de Sapadores Florestais e aos Planos de DFCI, que deveriam ser preferencialmente intermunicipais. Com isto o sistema ganharia consistência com bastante menos custos.
3. A chatice da despesa pública
Em suma, depois deste pacote legislativo, que tem um conjunto de aspetos positivos, haverá muito mais a fazer. A sua implementação, tal como está concebido, acarreta um aumento não despiciendo da despesa pública, o que agrava a limitação financeira para os sistemas de incentivo e de proteção das florestas. É preciso fazer as contas e saber como usar com mais eficiência o que lhe está atualmente imputado (teoria da ‘manta curta’, isto é, como afetar as verbas do Programa de Desenvolvimento Rural e do Fundo Florestal Permanente) ou onde há dinheiro ‘novo’ (vindo de áreas emergentes da economia, como os mercados voluntários de carbono, ou de fundos que podem ser mobilizados – públicos, como o fundo do ambiente, ou de investimento, incluindo da economia colaborativa). Porque, verdadeiramente, o problema da floresta não é tanto do âmbito legislativo, mas da sua operacionalização. Esta continua a depender muito mais do voluntarismo de Estado do que de compromissos para o “bom funcionamento” dos mercados (dos bens transacionáveis, mas também dos serviços ecosistémicos). Enquanto assim for, podemos estar como súbditos da Rainha de Copas do País das Maravilhas – running to stand still – a correr para ficar no mesmo lugar. Este debate está por fazer.
Miguel Freitas – Professor universitário
Fonte: Observador
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