A propósito do seu novo livro, Trás-os-Montes, o Nordeste, editado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, José Rentes de Carvalho fez uma visita guiada à sua aldeia.
Cheirava a terra acabada de arar. Não se via vivalma na aldeia de Estevais, no Mogadouro. Apenas alguns cães e gatos preguiçavam pelas ruas. De repente, junto ao cemitério velho, três mulheres vestidas de preto a fazer renda. “Ainda somos da família do doutor Zeca”, afiançou uma delas, associando de imediato a presença de jornalistas ao lançamento do novo livro de José Rentes de Carvalho, Trás-os-Montes, o Nordeste.
Por estes lados, José Rentes de Carvalho é o doutor Zeca, que com a mulher dá de comer aos cães e aos gatos que por aí andam, mesmo quando está lá fora, na Holanda. "Detestava quando a minha mãe me dizia: ‘Zequinha, olha o leite’", haveria de contar, ao percorrer a aldeia, quarta-feira de manhã, com um magote de jornalistas, quase todos vindos de Lisboa de avião, convidados a entrar na casa que o avô dele construiu e ele recuperou, no lagar usado pela vizinhança para fazer azeite, no cemitério velho que há-de acolher as suas cinzas, caso venha a morrer na Holanda e a ser cremado. Na véspera, tudo era quietude.
As nabiças, os tomates, os alhos e as alfaces, que ali servem de prova de vida, trazem melancolia ao escritor, de 87 anos. “Porque os vejo sair manhã cedo, os que foram rapazes da minha geração, agora trôpegos, doentes, este num tractor inútil para chão tão pequeno, aquele de carroça e burra manca, um outro a pé, o cão ao lado, sacho ao ombro, todos a iludir-se de que vão para um trabalho”, lê-se no livro, editado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos. “Que não vão, sabem-no eles melhor que eu. A horta, mais dois palmos de terra aqui, um olival além, meia dúzia de amendoeiras, uns quantos pés de vinha, é essa a sua terapia.”
Mesmo sem ler o livro, as três mulheres falavam na mesma realidade. “Esta foi para fora, aquela foi para fora, aquele foi para fora”, dizia Maria Lurdes, que é "da idade do Doutor Zeca" e mãe das outras duas, apontando as casas alinhadas pela rua abaixo. Restam umas 80 pessoas, quase todas com muita idade. Há um casal com uma criança, outro com outra, outro com duas, outro com três. Estudam na vila, a uma dúzia de quilómetros, onde também fica o centro de saúde, a segurança social, o tribunal.
O escritor e editor Francisco José Viegas, ao apresentar o livro na tarde de terça-feira, na Biblioteca Municipal Trindade Coelho, na vila, tocou na ferida. “Toda a gente se queixa do deserto. O deserto em que se transformou o Nordeste transmontano, o deserto que invade e devora as aldeias abandonadas, o deserto que se instala no planalto de Miranda, o deserto que se estende depois de Vimioso, o deserto que rodeia a mais bela das igrejas de Trás-os-Montes (que é a desconhecida basílica de Santo Cristo do Outeiro), o deserto que enfrenta a fronteira, o deserto que caminha no meio do rio”, discursou. “Periodicamente, no meio do deserto ouvem-se vozes. A de José Rentes de Carvalho é distinta e percebe-se em tudo o que escreve.”
A vida melhorou nas últimas décadas, mas não tanto como noutras partes do país. “Infelizmente, no Nordeste transmontano, o desânimo, para não dizer o desespero, é hoje demasiado visível nos rostos, na falta de actividade, no escasso consumo, nas urgências dos hospitais, nas escolas que fecham por falta de crianças".
O seu Trás-os-Montes, sublinhou Francisco José Viegas, não é o “reino maravilhoso de antanho, o prior, o medo do inferno, a adoração religiosa da paisagem, o pequeno contentamento dos homens humildes sempre bons”. O seu Trás-os-Montes é outro. Nele cabe "uma galeria de gente heróica, lúbrica, ladina, pateta, pacóvia, malandra, espertinha, orgulhosa, humilde, amável, cheia de defeitos perigosos e de virtudes escondidas, isolados do mundo, regressados do mundo, ricos remediados e pobres sem lugar a não ser no cemitério". E o que traçou agora foi um “retrato no fio da navalha, pessoalíssimo, revoltado, conformado com as circunstâncias com as personagens, inconformado com o destino e com os resultados”.
Não se ocupa de Trás-os-Montes inteiro naquelas 79 páginas, que, segundo afirma, “não teria escrito” se não tivesse sido desafiado por António Araújo, director de publicações da Fundação Francisco Manuel dos Santos. Fica-se pelo seu Nordeste. E o seu Nordeste “é como que um enclave, limitado aos concelhos de Mogadouro, Moncorvo, Freixo-de-Espada-à-Cinta e Alfândega da Fé, tendo por fronteiras meridionais a margem direita do Douro e, na outra, essa espécie de farol mítico que é a estação do Pocinho”.
Começou por fazer aquilo a que Francisco José Viegas chamou uma “arqueologia do Nordeste”. “Não é só a recordação de um passado de miséria, desgraça e abandono, mas de um tempo tão sem esperança, e tão dramaticamente medieval nas condições de vida, que nós, esses velhos, sentimos dificuldade em conciliar a relativa abundância em que agora nos encontramos, com a memória da realidade em que fomos criados”, explicou o autor terça à tarde a uma plateia deliciada, que anuía com a cabeça.
Havia nas ruas de Estevais, agora asseadas, uma sujidade medieval. “De Setembro à Primavera mantinha-se nas aldeias o hábito secular que durou até fins dos anos 50 de cobrir as ruas com palha, que depois, molhada da chuva e das penicadas de mijo e bosta que se atiravam das janelas calcada pelos passantes e os animais, fumegava e fermentava até que, podre bastante, fosse recolhida para ser levada para as hortas, os amendoais e olivais, seu único e muito biológico adubo.” Quem acreditará nisto, agora?, questionou. “Retretes não havia, aliviam-se novos e velhos, homens, mulheres e crianças atrás dos muros. O penico era um luxo que poucos tinham, e em caso de doença se ia pedir emprestado. Só quem as sofreu acreditará nas nuvens de moscas, mosquitos e moscardos que enxameavam as ruas e as casas.”
Foi, admitiu José Rentes de Carvalho, um privilegiado. Os pais casaram-se em Estevais no início de Agosto de 1929 e ele nasceu volvidos nove meses em Vila Nova de Gaia. Quer o pai, quer o avô paterno eram guardas-fiscais. A casa familiar era um “oásis” rodeado pela miséria alheia. Nunca lhe doeu a desgraça dos de Gaia como lhe doía a dos de Estevais, onde passava as férias de Páscoa, Verão e Natal.
Por razões políticas, saiu de Portugal. Viveu no Rio de Janeiro, em São Paulo, em Nova Iorque e em Paris. Em 1956 instalou-se em Amesterdão. Desde 1998, alterna três meses de Amesterdão com três meses de Estevais. Entroncado, espadaúdo, de baixa estatura, parece-lhe evidente que é àquela terra e àquela gente que pertence. Conta que em 1964 lhe disse um médico: “Que é estrangeiro não preciso de adivinhar, chega o nome e o sotaque, mas estou quase certo que nasceu numa região montanhosa, de pouca vegetação, a uma altitude entre os setecentos e os mil metros, com ar muito puro, clima seco.”
“Não acham curioso, para não dizer tristemente cómico, que Mogadouro disponha de um aeródromo, pretenso chamariz para turistas endinheirados que cheguem pelos ares, mas que na vila não haja um hotel?"
A vida melhorou nas últimas décadas, mas não tanto como noutras partes do país. “Infelizmente, no Nordeste transmontano, o desânimo, para não dizer o desespero, é hoje demasiado visível nos rostos, na falta de actividade, no escasso consumo, nas urgências dos hospitais, nas escolas que fecham por falta de crianças, nas lojas onde cada vez é mais frequente o letreiro 'Passa-se', nas carreiras que ainda há pouco iam e vinham cheias, e agora, por vezes, nem meia dúzia de passageiros transportam”, nota.
No livro, aponta o dedo acusador: “Mau grado sempre ter tido entre os seus filhos gente de importância, mesmo aqueles que ao longo do tempo e dos governos têm ocupado posições de relevo, em geral demonstram um singular desapego pelo desenvolvimento e bem-estar da província que lhes foi berço, antes alinhando com a tendência de que Trás-os-Montes é longe, Trás-os-Montes é pobre, é atrasado. E escondido nesse Trás-os-Montes geral, o Nordeste transmontano de certeza lhes parece longínquo e desagradável como a Patagónia.”
Desconfia do futuro e do que querem fazer dele. “Garantem que querem desenvolver o turismo. Mas estudaram o assunto? Há planos de verdade? Coordenação? Meios? Fizeram um apanhado das infra-estruturas?”, questiona. “Não acham curioso, para não dizer tristemente cómico, que Mogadouro disponha de um aeródromo, pretenso chamariz para turistas endinheirados que cheguem pelos ares, mas que na vila não haja um hotel? E a propósito: quantos hotéis há no Nordeste Transmontano que mereçam esse nome e ofereçam os serviços que deles se espera? Louve-se o esforço das instalações de turismo rural.”
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O presidente da câmara, Francisco José Guimarães, ainda não tinha tido tempo para ler o livro todo, mas já chegara àquelas páginas.“Por muita vontade que o município tenha, não está fácil”, queixou-se. A população está reduzida a nove mil, menos de metado do que era nas décadas de 1950 e 1960. “O executivo aprovou um regulamento de apoio à iniciativa empresária em que o município dá oito salários mínimos por emprego criado.”
Pior mesmo é o acesso aos cuidados de saúde, conclui José Rentes de Carvalho. “Tenho um seguro de saúde holandês. Se adoecer em Estevais e não estiver consciente, a minha mulher telefona para o seguro e eles tratam de tudo. Vou de táxi para o aeroporto e de avião para Amesterdão”, diz. Mas é ali, em Estevais, que quer ser cinza, pó, nada.
Ana Cristina Pereira
Jornal Público
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