Por: José Mário Leite
(colaborador do Memórias...e outras coisas...)
Em vez disso resolvi dedicar-me a dar voz a dois anciãos nordestinos de seus nomes Júlio Manso e Tomé Guerreiro.
Todas as tardes o Júlio e o Tomé, descem parcimoniosamente a Canelha do Campo para se sentarem em bancos de madeira feitos de troncos secos de sobreiro que um incêndio secou, em frente de uma vetusta mesa de pedra para partilharem uma generosa fatia de pão centeio apeguilhado com um naco de queijo de ovelha, curado e apimentado. Molham a palavra num palheto encorpado que trazem, à vez, em generosa cabaça de litro, rolhada a preceito com um toco de madeira aparado com mestria. Discutem a atualidade, julgam o presente, criticam o que está mal, elogiam o que se faz bem, determinam o futuro, salvam a humanidade e reforçam os laços de amizade que há décadas os identificam e irmanam.
– Deus nos dê boas tarde, ti Júlio
– Venha com Deus, amigo Tomé.
– Que me diz vossemecê a essa coisa que anda toda a gente a falar?
– E que coisa é essa que eu não sei?
– Não se fala noutra coisa lá por Lisboa. Parece que vamos ter de novo os bufos a darem cartas.
– Pode lá ser? Isso é coisa do antigamente. Agora vivemos em democracia e essa ocupação já não tem cabimento.
– Não tinha, mas parece que voltou a ter. Então não é que querem copiar o que se passa no Brasil e agora querem absolver a bandidagem... desde que denunciem os comparsas.
– Não pode ser.
– Eu também acho que não, mas já vi tanta coisa.
– Quer dizer que quem comete um crime pode vir a safar-se se der com a língua nos dentes?
– Nem mais. Dizem que é a única forma de combater eficazmente a corrupção.
– Essa é boa. Então a corrupção vai ser combatida com a colaboração dos corruptos? Não encontram ninguém mais credível?
– A modos que quem incriminar o parceiro, livra-se.
– E se a denúncia for mútua?
– Está bem visto! Se calhar o prémio fica para quem chegar primeiro.
– É que vai ser uma corrida! Logo que se conste de alguma investigação vai ser um ver se te avias a correr para o Ministério Público, para ganhar vez.
– E se a denúncia for simultânea?
– Então sim, fica tudo muito mais cumplicado. Vai, não vai, ainda acabam todos ilibados!
– Pois olhe, se for assim, vamos ficar ricos.
– Era bom, era, mas não vejo como.
– Muito fácil: assaltamos um banco.
– Ó homem você ficou maluco? Não íamos longe. Éramos logo apanhados e presos.
– Nada disso. Assaltamos um banco, de manhã, em Alfândega, distribuímos o dinheiro ao meio-dia e à tarde, exatamente à mesma hora, vossemecê vai a Vila Flor denunciar-me à GNR e eu apresento-me no posto da Guarda em Moncorvo a incriminá-lo. Aplicam-nos a lei de forma igual e justa, como compete. Os de Vila Flor premeiam-no a si e os de Moncorvo ilibam-me a mim.
– Não é mal pensado. Mas olhe, como isso ainda vai dar muito que falar, sente-se aqui e beba mais uma pinga.
– Não mo diga duas vezes. À sua!
José Mário Leite, Nasceu na Junqueira da Vilariça, Torre de Moncorvo, estudou em Bragança e no Porto e casou em Brunhoso, Mogadouro.
Colaborador regular de jornais e revistas do nordeste, (Voz do Nordeste, Mensageiro de Bragança, MAS, Nordeste e CEPIHS) publicou Cravo na Boca (Teatro), Pedra Flor (Poesia) e A Morte de Germano Trancoso (Romance) tendo sido coautor nas seguintes antologias; Terra de Duas Línguas I e II; 40 Poetas Transmontanos de Hoje; Liderança, Desenvolvimento Empresarial; Gestão de Talentos (a editar brevemente).
Foi Administrador Delegado da Associação de Municípios da Terra Quente Transmontana, vereador na Câmara e Presidente da Assembleia Municipal de Torre de Moncorvo.
Foi vice-presidente da Academia de Letras de Trás-os-Montes.
É Diretor-Adjunto na Fundação Calouste Gulbenkian, Gestor de Ciência e Consultor do Conselho de Administração na Fundação Champalimaud.
É membro da Direção do PEN Clube Português.
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