Mestre no minifundo literário que é o conto, uma das especialidades transmontanas, Nuno Nozelos (Fradizela, 1931) faleceu, em 18 de Julho, na nossa Torre de Dona Chama, que lhe inspirou o clássico Gente da Minha Terra (1967; também título do excelente contista vila-realense António Passos Coelho, 1961). Em 2 de Julho, a terra homenageara-o, acrescentando o seu nome à toponímia local.
Poeta, estreia-se com Iniciação (1963) e Retrato (1964), assinando Nuno Álvares. Em 1987, podou essas árvores, para reeditar, em Vozes Distantes, 12 poemas daquele e 18 deste. Nesta trintena, há versos magníficos. De 1963, aconselho o segundo, “Paradoxo”, e o também soneto “Desejo louco”. De 1964, em que o ‘retrato’ do sujeito está no seu canto de fraternidade, realço “Aquele quarto de aldeia”, enquanto resumo de uma existência ‒ vista de ‘fora’, de ‘dentro’, e ‘em mim’ ‒, vida em choque permanente. É já de compleição citadina, e suas contradições revolvidas por esse ser solidário, o conjunto de 22 poemas de Canto Aberto (1973), reforçado por A Cidade e Eu, Poeta (1978). Aqui, se ainda paira lembrança aldeã («…E é isto mais ou menos a cidade / ‒ poulo na minha arada de poeta / onde às vezes, por milagre, / irrompe o caule de um verso.»), surpreendem-nos temáticas raras na lírica nacional, dedicadas ao metropolitano, aos semáforos ou ao “Supermercado”, muito antes d’A Caverna de José Saramago, que julgou inventar nos centros comerciais as modernas catedrais e a religião do consumo. Aos 70 anos, encerra Musa Preterida (2001) com um hino à Mulher, relação que perpassa no geral dos seus versos, e cujos ângulos, luzes e sombras pediriam um rastreio pormenorizado.
O ficcionista, porém, sobrepôs-se ao poeta, na recepção crítica. O diário inaugural de Ambos, Afinal... (1973) começa a ser escrito em 1969. Dois anos antes, saíra Gente da Minha Terra. A cidade recentra o olhar de quem inventaria pequenas cenas do quotidiano e mostra o interior e exterior das criaturas, em oposições violentas: cisne branco / águas fétidas, pureza / imundície, etc. São 13 narrativas em que vozes ‒ por meio de diário, carta, diálogo, monólogo ‒ se desnudam nos seus sonhos e fracassos, ou vivem vidas alheias, como a intitulada “Um homem estranho”, que é uma obra-prima. São, ainda, de assunto urbano Histórias ou Algo Mais (1985), Relatos Nebulosos (2003), em que realço o sarcasmo sobre os enganos conjugais, e o romance Soçobrado (1992).
Se, em Ambos, Afinal..., poderíamos eleger os autores preferidos do narrador, neste romance, temos o universo da pintura, figurado na insatisfação de um ex-docente da Escola Superior de Belas-Artes e pintor, Luís Sacadura, de origem transmontana. Entre a frieza, fuga ou insulação da esposa Marília e a sedução de uma Sónia que se revelará seropositiva, assistimos às relações promíscuas de finais de 80, em tempo de também política com Gorbatchov, ou ao incêndio do Chiado em 1988, intervalando com um quadro de Mirandela no capítulo X e larga demora em aldeia vizinha. O regresso à capital é doloroso: morta Sónia, igualmente infectado pela SIDA, Luís suicida-se…
A vertente localista e regional está, antes de Contos Nordestinos do Natal (2008), na dúzia de Ecos de Nordeste (1999), ecos que se diluem pela Linha de Cascais e aforas do Nordeste, mas prolongam, na sua maioria, o já clássico Gente da Minha Terra.
No prefácio da 3.ª edição (1987) deste, Nozelos diz ter procurado construir «uma tela, embora modesta, que retratasse as gentes nordestinas, relevando essencialmente a sua personalidade, os seus costumes, o seu linguajar e as suas carências. Tela que, como salientei na nota prefacial da segunda edição da obra [1975], se inspirou em motivos colhidos “no alfobre da minha infância e juventude”.»
Entramos facilmente em literatura que é a do nosso chão. Depois, a resistência é virtude dos sobreviventes; e temos «a força inabalável dos fraguedos», como, em decassílabo de “Pretenso auto-retrato” (Delações Poéticas, 1996), Nuno Nozelos caracteriza os transmontanos.
Ernesto Rodrigues
in:jornalnordeste.com
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