quarta-feira, 23 de agosto de 2017

“Bragança na Época Moderna. Militares e Eclesiásticos. A rua, a praça, a casa.”

Recentemente, tal como aconteceu em outras urbes, também o espaço público do centro histórico bragançano foi objecto de importantes obras. Trabalhos de requalificação mas que aqui e ali se traduziram na excessiva valorização do desenho como se o propósito essencial fosse a criação de cenografias destinadas a servir de suporte a um qualquer produto de conteúdo citadino.
Há quem note, sublinhando a estandardização de procedimentos e a introdução de incompreensíveis condicionamentos à circulação em algumas ruas, peões incluídos, que estes programas também serviram para apaziguamento da má consciência dos poderes que, durante sucessivos anos de inércia, permitiram a penalização do património colectivo formado pelos antigos núcleos das cidades. Desinteresse com alcance social já que nas zonas envelhecidas e abandonadas os residentes eram, na sua maioria, idosos e pessoas de recursos limitados. Mas se pensarmos que grande parte das ruas do centro histórico se caracterizam já por um índice de ocupação muito baixo e que a desertificação tem sido acompanhada pelo encerramento das portas do comércio tradicional adivinhamos a lentidão e as dificuldades do processo de regeneração da parte antiga da cidade.
Embora tardio, este conjunto de atitudes corresponde à ambição de se assegurar a continuidade da própria cidade, mantendo uma vida civil que lhe garanta a sua personalidade nos termos de um quadro vital onde possam surgir soluções que a projectem no futuro. Sem poder furtar-se aos passos da legenda dos deuses e dos heróis, as nossas cidades, a maioria muito antigas, obedeceram durante séculos às linhas de desenvolvimento simbolizadas por Anfião e por Zeto, os míticos filhos de Zeus e de Antíope, justamente aqueles que conquistaram a cidade de Tebas a Cadmos, o seu fundador. Pela sua criação entre pastores e agricultores, Zeto complementava o seu carácter rude com uma grande força. Já a delicada compleição física do seu irmão, Anfião, concordava com uma alma cândida e um temperamento calmo que muito se comprazia no canto e nos acordes da lira de sete cordas que tocava quase incessantemente.
Um instrumento de ouro que Apolo lhe tinha ofertado. Perante a urgência das obras da muralha de Tebas nenhum dos dois se escusou ao trabalho. Só que enquanto Zeto despendeu um esforço enorme a transportar e a aparelhar os blocos de pedra extraídos nas montanhas vizinhas para fazer crescer os muros, Anfião alcançava sem custo algum o mesmo resultado pois só com os timbres da sua lira conseguia fazer com que as pedras ocupassem na muralha a posição mais apropriada para que resultasse obra resistente.
Assim, no âmbito das possibilidades orgânicas e criativas das forças da natureza, de que o Homem faz parte, transmitiu-se consistência ao logos e organizou-se a realidade dos valores e das suas contradições enquanto fenómenos que, na longa duração, cerziram as cidades e as apetrecharam com instrumentos capazes de se poderem acomodar às sucessivas e variadas provações que as mudanças estruturais comportaram. Porém, na época contemporânea, as cidades, deixando-se capturar pelas lógicas mecanicistas e funcionais, quebraram as antigas leis dos princípios harmónicos teorizadas por Vitrúvio e Leon Baptista Alberti e, simultaneamente, determinaram-se a seguir o partido de Prometeu – o titã que criou o primeiro homem e que o lançou na Terra nu e sem armas mas que lhe deu o conhecimento do fogo. 
O mesmo que, julgando-se igual às potências divinas, se revoltou contra Zeus. Só que, dominada a afronta, seria acorrentado para sofrer as investidas de uma águia que diariamente lhe devorava o fígado, víscera que, admiravelmente, se reconstituía de um dia para o outro. E, se da condenação faziam parte outros padecimentos como a impossibilidade de poder voltar a escutar a voz humana, o impedimento eterno de vislumbrar um rosto piedoso ou o benefício de merecer a atenção de um gesto consolador, o sofrimento de Prometeu parecendo significar que a propagação do progresso civilizacional só pode ser alcançado à custa da dor humana, também sugere, como se de uma condenação se tratasse, a prisão do Homem ou o seu solitário confinamento aos limites das cidades.
Cada vez maiores, mais frias e desalmadas apesar dos seus ocupantes e utilizadores muito beneficiarem com a progressiva internacionalização da cultura de consumo. Paradigma que inculca a contradição maior entre o fenómeno da estandardização e a diluição da identidade das comunidades com o consequente afrouxamento da afectividade nas relações entre os moradores. E também com o incomportável crescimento dos subúrbios das grandes urbes e a eternização dos fenómenos de exclusão social. Importa por isso encontrar formas de se dar relevo às especificidades culturais regionais para se contrariar a tendência para o desenraizamento progressivo das populações e a descaracterização das urbes mesmo quando algumas previsões apontam para que 75% dos viventes do planeta vivam em megapólis dentro de mais ou menos meio século.
A apologia da cidade e dos centros históricos implica um esforço e orientações no sentido de promover a reintegração da política na arquitectura com a ambição de se tecer o seu comprometimento com uma inegável função social. Ao mesmo tempo, importa ter em conta que, no nosso país, grande parte dos moradores das cidades têm as principais referências de vida em ambientes moldados pela ruralidade que, inexoravelmente, foram deixados para trás. Com consequências diversas mas quase sempre graves como seja o abandono total de algumas comunidades rurais.
Num jornal local («Informativo», 25 de Setembro, 2006), escrevia-se que o Distrito de Bragança tem cada vez mais aldeias fantasmas. Apontavam-se mesmo os nomes de algumas aldeias do concelho de Mogadouro, Santo André, Roca e Quintas de Souto, como exemplos de povoações sem gente, apenas povoadas pelas memórias do passado pois os últimos habitantes, afirmava-se, partiram nos anos 90: «não há gente a circular, não há cães a ladrar ou gatos a apanhar sol nos telhados, não se ouve o riso das crianças, as ruas estão cobertas de ervas. (…) As casas estão abandonadas e em lugar de portas há tijolos para evitar a profanação daquilo que em tempos foi um lar».
Falar de cidades é, antes de mais, falar de património. E a questão de saber «o que é que define o Património?», que também ficava bem no início deste texto, pode servir como seu epílogo. Como resposta, socorrer-nos-emos de uma entrevista concedida ao jornal «Público», em 22 de Março de 2005, por Simon Thurley, então presidente do English Heritage. Eis as suas palavras:
«As pessoas. Há dois erros comuns no que respeita ao património. O primeiro é pensar que é sobre edifícios – é sobre as pessoas e o que elas investem nos tijolos. O segundo é pensar que é sobre o passado – é sobre o futuro, o que ficará depois de nós desaparecermos […]. Por outras palavras, o que é o Património? Aquilo que uma dada geração considera dever ser deixado para o futuro».

Luís Alexandre Rodrigues – BRAGANÇA NA ÉPOCA MODERNA. MILITARES E ECLESIÁSTICOS. A RUA, A PRAÇA, A CASA.
Actas do Seminário Centros Históricos: Passado e Presente, pp. 70 a 96

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