De há tempos a esta parte pensava escrever sobre o meu conterrâneo nordestino Ernesto Rodrigues, que desenvolve uma relevante carreira académica na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e, como autor, pertencendo ao restrito grupo dos que poderemos denominar por criadores literários completos. Apresenta obra de grande valia como ficcionista (nos três subgéneros da ficção), poeta, dramaturgo, crítico, ensaísta, tradutor, incansável pesquisador de temas da literatura e da cultura, sobre cuja investigação faz assentar, para além das obras ensaísticas, também alguns dos seus romances, como é o caso da obra que hoje nos ocupa, A Casa de Bragança (2013), ou O Romance do Gramático (2011), incidindo na figura marcante de Fernão de Oliveira, que com a sua Gramática da Língua Portuguesa de 1536 ganhou o justo título de primeiro gramático da nossa língua. A nossa primeira intenção era abordar a sua vertente de poeta através do livro Do Movimento Operário e Outras Viagens, antologia meticulosa dos seus 40 anos de trabalho poético, mas após a leitura de A Casa de Bragança concluímos que, sem deixar de falar do poeta pelo intimismo e modelo de linguagem que percorre este livro, poderíamos alargar essa referência ao notável romancista que Ernesto Rodrigues é, com um conjunto já vasto de romances publicados.
Embora natural de Torre de Dona Chama, a cuja terra dedica um dos seus romances mais conhecidos, precisamente Torre de Dona Chama (1994), a sua profunda ligação à cidade de Bragança, por vivências e afinidades familiares, que marcam de resto a diegese do romance homónimo, está pois bem plasmada na obra, que assenta em três vectores primordiais que incidem no lexema alegorizante casa: Casa de Bragança no sentido da linhagem dinástica, casa de Bragança no sentido de lar do narrador autobiográfico na cidade, casa ainda enquanto sinédoque, no sentido mais abrangente da cidade que o acolhe, cuja história se propõe narrar em decisivos momentos históricos e quadros sociais marcantes. Acrescentaríamos uma quarta asserção, como não poderia deixar de ser num ficcionista que nunca se esquece, mesmo escrevendo em prosa, da sua condição de poeta, através de uma linguagem intimista, reflexiva, meditativa e contemplativa, minuciosamente trabalhada; poética no primeiro sentido do termo. Linguagem poética também no sentido heideggeriano de casa do ser, porque este é um dos livros de Ernesto Rodrigues onde o ser profundo do nosso autor mais habita.
Do ponto de vista histórico, Ernesto Rodrigues defende três teses fundamentais no seu romance, divergindo, nessa defesa, de Fernão Lopes, entre tantos outros. A primeira é que teria realmente havido casamento entre D. Pedro e D. Inês de Castro. A segunda é que esse casamento não se teria realizado em Coimbra mas, justamente, em Bragança. A terceira é que o legítimo rei de Portugal seria D. João de Portugal e Castro, segundo filho de Pedro e Inês, nascido precisamente em Bragança, e não o seu meio-irmão D. João, Mestre de Avis, futuro D. João I.
Não pretendemos aqui desvendar naturalmente o real curso da História, mas as peripécias romanescas e a lógica do seu encadeamento, não está na mão do crítico literário questionar ou testar os fundamentos históricos, mas decompor a arquitectura minuciosa da diegese. Assim, tratando-se de um romance histórico, interessará fundamentalmente analisar como o sujeito capta pelo tipo de linguagem esse lugar que ele procura dar a ver miticamente, espiritualizando-o com passagens também elas míticas captadas na História de Portugal, nos momentos em que esta se cruza com a história da sua cidade. Romance histórico simplesmente, com um forte veio estético e artístico. Não nos parece que a obra apresente características típicas do romance histórico pós-moderno, embora haja alguns pontos de contacto, como não poderia deixar de ser num autor de uma funda preparação teórico-literária também nesta área. Mas centrando-nos em determinadas prorrogativas que configuram o romance histórico pós-moderno, podemos constatar que este romance recusa a vertente paródica, bem como a mistificação voluntária entre o verdadeiro e o falso ; o autor quis uma obra elevada, austera, em tom maior, que, entre outros objectivos, homenageasse uma cidade na comemoração dos seus cinco séculos e meio de história. Naturalmente, este facto condiciona o seu horizonte de recepção, visto que é necessário o conhecimento do topos brigantino para uma plena descodificação da dimensão histórica e estética da obra.
Pretende-se, por conseguinte, a narração dos fundamentos da cidade até praticamente à actualidade, através dos narradores autodiegéticos Afonso Roiz e Afonso Rodrigues. O primeiro habita o velho burgo e movimenta-se no âmago dos acontecimentos de Quatrocentos e, numa visão abrangente, baseado em testemunhos orais e vivências, dá-nos as origens e a evolução do antigo burgo até esse momento. Sucede-lhe na retoma da crónica da cidade o segundo narrador, Afonso Rodrigues, que praticamente da actualidade nos reconstitui, baseado em fólios do primeiro, os momentos decisivos da história de Bragança ao longo de cerca de um milénio. Em simultâneo, através desta estratégia diegética, o autor deixa atrás de si, bem nítida, a caminhada da família Rodrigues, ou Roiz, fazendo corpo com a cidade que habita, não obstante suportar errâncias várias com o infante e futuro regente D. Pedro pela Europa e a participação nas campanhas de Ceuta e Tânger: viagens, vitórias, derrotas, exílios, inerentes ao percurso da dinastia de Avis que acompanhou. Mas, sobretudo, salienta o enraizamento nas circunstâncias do tempo e da história que marcam a cidade, e que lhe deram rosto e identidade. História nacional, local e linhagem familiar entrecruzam-se e suportam a composição romanesca. A realidade cruza-se com a ficção; esta serve-se da realidade como material primeiro da obra literária, conferindo-lhe verosimilhança, fisionomia, historicidade.
Talvez seja útil apresentar brevemente a estrutura diegética e dialógica do romance pelas palavras do próprio autor, que tem uma capacidade exímia de ler a sua própria obra, assumindo-se deste modo como seu primeiro e privilegiado leitor. (Já nos foi dado assistir a vários lançamentos de livros de Ernesto Rodrigues e, sistematicamente, é sempre o próprio que os apresenta, em tom pausado, pessoalizado e de certa forma intimista para com a assistência, sempre numerosa, que o ouve e lê os seus livros). Seguindo esta sua marca autoral, e preservando a fidelidade ao fio condutor da acção, servimo-nos então de excertos das suas próprias palavras para resumir o enredo e contextualizar o tempo histórico:
“[…] A narrativa é organizada por Afonso Roiz, cujo pai tanto pode ser D. João de Portugal e Castro como o sobrinho D. Afonso, primogénito do Mestre de Avis e primeiro duque de Bragança. […] As andanças de Afonso Roiz pela Europa, com o infante e futuro regente D. Pedro (1425-1428); a participação no desastre de Tânger (1437), logo companheiro de infortúnio de D. Fernando, Infante Santo, em Fez (1443), a amizade com o segundo duque, D. Fernando I, e presença no arraial de Ceuta, donde trouxe carta de foral dirigida à nova cidade (20 de Fevereiro de 1464) – tudo isso, aventuras ouvidas dos avós e aventuras de um raro observador, retrata o Portugal de Quatrocentos, no concerto europeu e marroquino.
Essas duas partes – quanto ouviu sobre a cidade e os amores de Pedro e Inês, quanto viveu – ficaram em fólios que outro Afonso Rodrigues (nascido em 1956), agora, colige: não só acompanha, aos oito anos, as celebrações do quinto centenário do foral (1964), como, 50 anos depois, no mesmo dia 20 de Fevereiro de 2014 – quando acaba a história -, resolve enigmas da sua vida, junto à Domus Municipalis, inaugurando vida nova com outra Inês do seu tempo de estudante (1974; uma Inês Rodrigues, cujo apelido fazia temer serem irmãos, o que não se confirma), reencontrada 40 anos depois… Será este final indicação suficiente de que, também pelo nome, Afonso Roiz é filho do primeiro duque, Afonso […].
Esta hipótese conjuga o pensamento inicial do livro: reunir, em 2014, as linhagens de Inês de Castro (até à mãe Inês de Castro e filha Inês Rodrigues) e D. Afonso, duque de Bragança (até ao colega Afonso Rodrigues, segundo narrador), subsumidas no facto de todos descenderem de D. Pedro, pai de D. João de Castro e de D. João I, Mestre de Avis.
Deste modo, História local, histórias de famílias e momentos altos da pátria conjugam-se em demanda de afectos e celebração de Bragança, nos seus 550 anos de cidade”.
Este segundo narrador, o já referido Afonso Rodrigues, cuja idade e transes de vida coincidem com o autor, configuram aproximadamente essa abrangência entre autor, narrador e personagem que Philippe Lejeune tem por necessária à presença conceptual no texto do pacto autobiográfico. Tal facto faz com que a mundividência histórica e a vivência pessoal se cruzem e interpenetrem, dando ao romance uma curiosa historicidade poética, numa linguagem também ela, em simultâneo, ágil, dinâmica e de intensa sensibilidade estética. Há pois, do ponto de vista dos narradores primeiro e segundo, um longo percurso dentro de uma genealogia geracional que coincide com a história de uma cidade, que em determinados momentos se funde e confunde com a história do país. A vividez descritiva, o intimismo biográfico, a descrição topográfica da velha vila e da cidade actual, os lugares que centralizaram os principais acontecimentos de Quatrocentos e os mais recentes, estes decisivamente marcados pela transição e consolidação democráticas, conferem à narrativa uma poeticidade que não colide, antes complementa a historicidade. O espírito do lugar, que Ernesto Rodrigues tantas vezes convoca e constrói na sua escrita, está desde logo bem patente na forma como é iniciado o livro, num presente que encerra à partida um enraizamento do sujeito no seu espaço identitário, espaço esse que é igualmente um espaço psicológico, gnosiológico e ontológico, visto que mergulha nas raízes do ser e é uma página escrita na pedra em vista ao conhecimento das origens da cidade e de si mesmo:
“Eu tinha oito anos e nada sabia de mim.
Vivia em rua de filósofo – Oróbio de Castro […] o empedrado desaguava na Rua Direita, que nem por isso, e se chama dos Combatentes da Grande Guerra, mas eu descia a paralela Rua dos Gatos, em sandálias lestas, não me caísse uma varanda em cima.
Dirigia-me à cidadela como quem vai atrás de enigma – enigma quase, quase a resolver-se, cinquenta anos depois.
Estava longe de imaginar que desvendaria alguns segredos: de família, da cidade, mesmo da pátria. Amo este chão, que me fez quem sou, e desejo refrescar-lhe dúvidas, certezas, raízes.
No Largo do Principal, tomava fôlego: obelisco soletrava vidas caídas na França de 14-18; da igreja de São Vicente nascera quadra, que minha avó recitava amiúde […] subir o S invertido da Costa Grande não era pêra doce, irregular nos calhaus de xisto delidos pelo tempo. Vencida a ladeira, ao cimo, um portal quinhentista na então Rua Larga lembrava o primeiro arrabalde deslizando para o rio. Era memória antiga de burgo determinado que já no século XV transbordara da cinza do medo guardado em barbacãs” .
E poderíamos continuar por muito tempo sobre o traçado do mapa da cidade desenhado pelas palavras comovidas do narrador, onde os espaços exteriores convivem, como se disse, intimamente com o itinerário da sua emoção. Através de um processo retrospectivo, os narradores, cada qual recuando no tempo com base em fontes testemunhais orais e escritas, vão portanto seleccionando, filtrando, relacionando, reconstruindo o passado familiar e a memória colectiva da cidade, valorizando essa intersecção com a memória histórica da nação no período decisivo de Quatrocentos. Estamos assim perante camadas temporais e sociais enquanto verdadeiros palimpsestos que segregam por sobreposição as diversas fases da cidade e da linha genealógica dos narradores. Percurso no espaço, no tempo entranhado na fisionomia dos lugares, e no ser da personagem autoral, pela filtragem emotiva e por uma consciência interna crítica e vigilante. Também um percurso iniciático de conhecimento enquanto reconhecimento dos lugares e dos narradores mesmos nesses lugares. Daí, mais que histórico, que o é, sem dúvida, o que ressalta ao leitor é a voz sensível, emotiva de um sujeito em demanda, errância e deambulação no espaço-tempo de Bragança, que perpassa em fundo de episódios, circunstâncias políticas, movimentos populares, reificação e revisitação de mitos. Pratica desse modo o autor uma refinada arte da memória afectiva, sob a elaboração de um meticuloso trabalho de linguagem, sem nunca deixar enredar o fio longo e labiríntico da narrativa, embora, pela poeticidade do texto, sistematicamente a imaginação aja sobre os episódios, a reflexão sobre a acção, a arte da escrita sobre a escrita do real. Parece ecoar aqui a lição proustiana filtrada pela durée de Bergson, na incansável acção do escritor em busca do seu tempo perdido, até às fontes primevas. Essa acção do tempo é de tal forma estruturadora da narrativa que parece-nos não ser despropositada a referência ao roman-fleuve enquanto rumo e intencionalidade.
Em síntese, confluem na obra as várias facetas que no início do texto apontamos em Ernesto Rodrigues: o ficcionista (na memória inventiva, recriativa e afectiva), o poeta (no trabalho de linguagem e no intimismo descritivo), o dramaturgo (na vivacidade e propriedade dos diálogos, tendo sempre em conta a diversidade das personagens e a sobreposição dos tempos históricos, dando-nos assim uma verdadeira diacronia de falares, personificando igualmente por essa forma a cidade), o cronista, o historiador, o investigador que fundamenta a narrativa com uma sólida base factual e cultural. Essa voz narrativa, esse sujeito que se interna em temporalidades e espaços vários, parece ter como arquétipo orientador os antigos livros de linhagens, procurando dessa forma uma unidade pessoal e social que abarque o sujeito e a sua circunstância, sendo que esta é decisivamente marcada pela cidade que habita, ou, melhor, foi habitando, visto que em cada demanda longínqua, cosmopolita, se seguiu o regresso, o recentramento do “eu”.
Uma passagem crucial em que o narrador convoca o seu leitor não sei se ideal se implícito clarifica a arte romanesca de Ernesto Rodrigues, pelo menos a arte que permitiu a construção deste notável romance, e no qual, reitera-se, o literário e o estético são ostensivamente destacados. Igualmente na passagem que a seguir transcrevemos se pressente o pensamento poético-antropológico de Giambattista Vico: “para ti leitor posto em assédio, construo bairro de letras, onde seja agradável passear; instalo outra casa de água viva, borbulhante, que refresque e alimente, ergo um castelo de enigmas, como na infância dos homens, disposto a ser conquistado” ; ainda uma curta frase que clarifica a alegoria poética da casa: “vista daqui, essa casa é imaginação, como qualquer infância” .
[1] Cf., Marinho, Maria de Fátima – Romance Histórico em Portugal, Porto, Campo das Letras, 1999.
[2] Ernesto Rodrigues, A Casa de Bragança, Lisboa, Âncora Editora, p. 11.
[3] Idem, p. 17
[4] Idem, p. 16.
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