Homem de negócio, natural de Vila Flor, morador em Cascais e assistente em Lisboa e Coimbra, de presente na Figueira da Foz onde embarcava azeites – assim se apresentou Manuel Henriques Lopes – o que bem retrata a sua vida movimentada, típica dos homens da nação. Na verdade o ambiente de medo em que viviam obrigava-os a estar em trânsito constante.
Mas se este processo é exemplar a tal respeito, não menos interessante na caracterização do ambiente de permanente suspeita e constante espionagem que sobre os homens da nação era exercida pelos comissários e familiares do santo ofício.
Situemo-nos então na Figueira da Foz em cujo porto atracou um barco proveniente da Inglaterra. Coisa normalíssima, até porque a grande maioria dos barcos estrangeiros que frequentavam os portos nacionais eram ingleses. O barco vinha à responsabilidade de Gaspar Dias de Almeida,(1) um grande mercador de Lisboa e dele eram as mercadorias que trazia, nomeadamente “duzentos quintais de ferro e vinte barras de aço” importadas para um mercador do Norte e “seis milheiros de aduelas”. O barco deveria depois ser carregado de azeite e regressar a Inglaterra.
O homem contratado por Gaspar Dias de Almeida para dirigir as operações de descarga do barco, venda de algumas mercadorias importadas e compra dos azeites para exportação foi Manuel Henriques Lopes que, para o ajudar, conseguiu os serviços de um Manuel João, contratador, morador na Rua dos Sapateiros, na Figueira da Foz. Este trabalhava em comissão, recebendo cinco tostões por cada pipa de azeite embarcada. Também o Manuel Henriques trabalharia em comissão? Ele disse que não, que Gaspar Dias de Almeida “pediu a ele declarante para fazer tal diligência e que ele aceitou sem estipêndio algum pela dita comissão, deixando no arbítrio do mesmo a satisfação do seu trabalho”.
Tudo correria em ordem e a carga foi desalfandegada, tudo se registando nos respetivos livros. O ferro e o aço foram metidos em um armazém alugado, defronte da casa do contratador Manuel João. Dos 6 milheiros de aduelas Manuel Henriques mandou fazer “pipas e quartos e as mais vendeu aos estrangeiros”.
A operação estava correndo e no barco estavam já “quarenta e tantas pipas e trinta e tantos quartos de azeite” quando as justiças levaram Manuel Henriques Lopes para Coimbra e o meteram na “cadeia da portagem”.
Porquê? – Disseram que estava carregando trigo para fora do reino, sem a devida autorização. Na verdade a “cadeia da portagem” era a cadeia civil, já que em Coimbra havia outras para presos específicos, como eram: a da inquisição, a dos estudantes e a dos clérigos.
Voltemos ao início, à ida de Manuel Henriques para a Figueira da Foz e à chegada do barco de Inglaterra. Como estabelecido, à chegada e à partida, todos os barcos eram vistoriados e ninguém podia viajar sem o visto da inquisição. No caso concreto o “olheiro da inquisição” era o familiar Manuel da Mesquita Loureiro que logo escreveu para Coimbra, dizendo:
— Ilustríssimos Senhores. Lembro-me que antes de ser preso nestes cárceres Gaspar Mendes Furtado, dei conta a Vs. Ss. de que esta pessoa se achava neste lugar carregando dois navios de azeite para Holanda, e entendendo poderia haver causa para algum procedimento. Neste lugar assiste há dias um Manuel Henriques Lopes, da mesma nação, que há algum tempo mora na cidade do Porto e de presente assiste em Lisboa, fazendo as normais carregações de azeite, também para Holanda. Pareceu-me dar a Vs. Ss. esta conta, de que serve esta. Figueira da Foz do Mondego, aos 5 de maio de 1714…
Recebida a carta, ordenaram os inquisidores de Coimbra que informasse “com todo o segredo e cautela de quem este seja filho, de onde é natural e morador, se é casado, com quem, se tem alguns irmãos ou parentes, como se chamam”…
Não vamos acompanhar a “missão de espionagem” do familiar do santo ofício. Diremos tão só que a prisão de Henriques Lopes na “cadeia da portagem” se destinaria a dar tempo ao promotor do tribunal da inquisição para recolher testemunhos ou indícios de judaísmo contra ele. Efetivamente, no dia 24 do dito mês de maio, transitou o prisioneiro para a cadeia da inquisição, a mesma onde, meio século antes, sofreram o seu pai Vasco, a sua mãe Mécia e o seu irmão António.(2)
Tinha 66 anos quando foi preso e era viúvo de Mariana de Alvim,(3) filha de Francisco Ferreira Isidro, capitão de milícias de Freixo de Numão e sua mulher Francisca Vaz, da Torre de Moncorvo.
O seu processo nada tem de especial, dado que logo na primeira sessão ele declarou que “não quer defesa e só quer confessar as culpas”. Por dois anos permaneceu na cadeia, saindo reconciliado com cárcere e hábito perpétuo no auto da fé de 4.6.1716.
O mais interessante do seu processo é uma carta que António Nunes Cardoso(4) seu sobrinho, natural de Freixo de Espada à Cinta, estanqueiro do tabaco em Portalegre, lhe escreveu quando foi preso. Gostaríamos de transcrevê-la, porém o espaço disponível não o permite. Vejam apenas um curto excerto:
— Quando de vossa mercê esperava a notícia de se haver recolhido a sua casa saboreando-se com o gosto de ver a seus irmãos e primos meus juntamente, dando satisfação ao senhorio do pataxo (barco) para que viesse no reconhecimento da exacta diligência e desvelo que tem tido na compra dos azeites com que o carregou, vejo e me fiz sabedor de que está na cadeia da portagem por lhe imputarem fazer a tal carga com trigo (…) E nesta consideração, sendo o Dr. Corregedor tão grande ministro, como considero, breve estará v. mercê fora da prisão (…) Esta remeto ao Dr. José Correia de Carvalho, amigo de meu irmão e meu, que é bom homem, e o há-de ir logo procurar (…) Deus nos livre dos inimigos e guarde a v. mercê. 4 de Junho de 1714.
Acerca deste e outros sobrinhos de Manuel Henriques, diremos que, também eles, uma década depois, foram parar às masmorras do santo ofício. Como, aliás, aconteceu com 6 filhos seus, que todos foram presos em 1725.
Terminamos com uma breve informação sobre os irmãos de Manuel Henriques Lopes:
Lopo Rodrigues, foi morador em Faro, casado com Brites Francisca e dali se foram para os Barbados.
António Lopes Henriques, faleceu solteiro em Vila Flor, tendo sido preso pela inquisição de Coimbra em 1665.
Gaspar Fernandes, casou com Isabel Rodrigues e o casal morou no Porto. Em maio de 1697, na visitação que ali fez D. Tomás de Almeida, deputado do santo ofício apareceu uma Leonor de Paiva a denunciar Gaspar Fernandes, o seu cunhado Marrcos Ferro e outros cristãos-novos que em sua casa “faziam sinagoga”. Tempos depois a denunciante foi morta com um tiro, sendo voz pública que a matou Gaspar Fernandes. Não sabemos se foi por causa do crime ou por medo da inquisição que o casal fugiu depois para a Holanda.
Maria Henriques vivia no Porto, casada com o advogado Francisco Marcos Ferro, de Torre de Moncorvo. Este foi preso pela inquisição na sequência da visitação atrás referida. Aquela, deixou o Porto e dirigiu-se para Faro e dali para Lisboa, abalando-se, em Abril de 1699, para a Itália, no barco “N.ª Sr.ª la Coronada” juntamente com 47 outros cristãos-novos Trasmontanos, quase todos ligados por laços familiares, entre eles os pais de Jacob Rodrigues Pereira, o inventor do alfabeto para surdos-mudos. Todos foram presos em Cádiz, pela inquisição espanhola.(5)
Branca Gomes foi casada e moradora em Vilar de Maçada, Alijó, onde faleceu.
Isabel Henriques casou com Diogo Vaz Faro e o casal viveu no Porto, não deixando descendência. Também ela foi presa pelo santo ofício, em 1725, sendo já viúva. Terá falecido na cidade de Faro, nesse mesmo ano, de acordo com a informação de Francisco Gabriel Ferreira, seu parente.(6)
Notas:
1 - Gaspar Dias de Almeida era natural de Gogim, Lamego. Viveu em Faro e depois em Lisboa, administrando a Quinta do Lumiar e negociando com o Brasil e a Inglaterra. Em 1723, pressentindo que a inquisição o queria prender, fugiu no seu barco para Londres onde viveu como judeu assumido e faleceu em 1741. Vários de seus filhos foram para a ilha de Barbados. - ANDRADE e GUIMARÃES, Na Rota dos Judeus Celorico da Beira, p. 70 e seguintes, ed. Câmara Municipal de Celorico da Beira, 2015.
2 - ANTT, inq. Coimbra, pº 8521, de Manuel Henriques Lopes; pº 9984, de Vasco Fernandes Lopes; pº 2439, de Mécia Fernandes; pº 3802, de António Lopes Henriques. Este faleceu solteiro em Vila Flor.
3 - Mariana de Alvim faleceu no Porto, na rua da Ferraria de Baixo, em 19.5.1704, sendo sepultada em S. João Novo, conforme certidão inserta no processo de sua nora (n.º 10157-L), Francisca Rosa, casada com Vasco Fernandes Lopes.
4 - IDEM, inq. Évora, pº 9125, de António Nunes Cardoso.
5 - ANDRADE e GUIMARÃES – Jacob (Francisco) Rodrigues Pereira Cidadão do Mundo, Sefardita e Trasmontano, ed. Lema d´Origem, Porto, 2014.
6 - IDEM, inq. Coimbra, pº 10572, de Isabel Henriques; pº 9669, de Francisco Gabriel Ferreira.
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