quarta-feira, 22 de julho de 2020

A revolução de 1808 em Bragança

O abade de Carrazedo. — O general Sepúlveda. — Festa cívica em Bragança.

No dia 9 de Junho de 1808 subleva-se a cidade do Porto. Braga segue-lhe o exemplo e os franceses são presos nestas duas cidades, mas tais movimentos foram em breve abafados; elas recuam no seu arrojado empreendimento.
É então que Bragança insculpe nas páginas da sua história um grandioso feito, digno de ser escrito com estilete de ferro nas páginas imarcescíveis do bronze.
Eis como o abade de Carrazedo, no concelho de Bragança e natural desta cidade, Manuel António de Sousa e Madureira Cirne, sobrinho do arcebispo de Tessalónica, inquisidor geral — que deve merecer todo o crédito, como confessa o Sepúlveda Patenteado, p. 6, e porque é testemunha ocular —, narra os factos.
E dizemos narra, por supor que é dele, ou pelo menos inspirou, a Relação fiel e exacta do principio da Revolução de Bragança e conseguintemente de Portugal que nos serve de guia.
O abade, levado por razões de fácil compreensão, como diz a Relação, formulou o plano da revolução que comunicou ao capitão de infantaria nº 24 da guarnição de Bragança, Bernardo de Figueiredo Sarmento, depois de discutido em várias conferências com o governador do bispado, Paulo Miguel Rodrigues de Morais, e com o sargento-mor de milícias de Bragança, Manuel Ferreira de Sá Sarmento. Bernardo de Figueiredo Sarmento prestou-se logo a reunir oitocentos soldados, de seu extinto regimento, com a promessa de 160 réis diários, remunerando além disso condignamente o dito abade as diligências de quatro oficiais inferiores encarregados de juntar mais tropa.
Entretanto, no dia 11 de Junho de 1808, pelas 5 horas da tarde, chega a Bragança a notícia da revolta contra os franceses na cidade do Porto; Madureira Cirne, que tinha o correio em sua casa, foi o primeiro a recebê-la e a comunicá-la ao cónego da Sé Catedral, Bento José de Figueiredo Sarmento, ao bacharel Pedro Álvares Gato, ao médico António Afonso Dias Veneiros e a outros que estavam em casa dele, abade, o qual rompeu nesta exclamação: «É tempo de sacudirmos o jugo francez! Viva o Principe Regente!», e, entusiasmados, correm pelas ruas da cidade anunciando esta proclamação; vão a casa do tenente-general Manuel Jorge Gomes de Sepúlveda, que encontram na igreja de S. Vicente, e aclamam-no chefe do movimento.
O entusiasmo do povo é imenso; reciprocamente se abraçam, congratulando- se por tão feliz sucesso. O cónego Figueiredo, um dos mais inflamados, faz repicar os sinos da Sé, a que respondem os das demais igrejas; a cidade é iluminada durante três noites e dão-se salvas de artilharia.
Sepúlveda dá ordem para se reorganizarem todos os regimentos de linha, de milícias e de ordenanças da província. Da animosidade com que concorreram ao chamamento devem notar-se António Correia de Castro, sargento-mor da praça; seu irmão Bernardo Correia de Castro Sepúlveda, capitão de infantaria e ajudante de ordens do governo militar da província; Francisco de Figueiredo Sarmento, sargento-mor de cavalaria; Bernardo Baptista da Fonseca e Sousa de Sá Morais, filhos e genros do general; José de Figueiredo Sarmento, sargento-mor de infantaria; Manuel Ferreira Sarmento, sargento-mor de milícias, Manuel Ferreira Sarmento, igualmente sargento-mor de milícias, não esquecendo o já citado Bernardo de Figueiredo Sarmento, que, senhor do plano já anteriormente comunicado pelo abade, em breve viu reorganizado o seu regimento em força superior a mil praças.
No dia seguinte, o governador do bispado entoou um solene Te-Deum em acção de graças a que assistiram os já mencionados, o povo e gente mais grada da cidade, e pronunciou uma veemente alocução respeitante ao caso.
Igualmente vieram apresentar-se ao tenente-general: Bernardo do Carmo Borges de Cerqueira, coronel de milícias de Moncorvo, juntamente com seu filho Manuel Pinto Bacelar, brigadeiro de cavalaria; António Manuel de Carvalho e Castro, coronel do regimento de milícias de Miranda do Douro; Luís Vaz Pereira Pinto, tenente de cavalaria nº 6, e Bernardo Tomás de Gouveia e Vasconcelos, capitão do mesmo regimento, e vários outros.
Organizam a Junta Provisional do Supremo Governo, debaixo da presidência do general Sepúlveda, da qual faziam parte: pelo clero, os já citados governador do bispado e abade de Carrazedo; pela nobreza, António Wenceslau Doutel de Almeida e Manuel Gonçalves de Miranda, fidalgos da casa real; pela tropa, Amaro Vicente Pavão de Sousa, coronel de cavalaria, e José Vicente de Abreu Sarmento, tenente-coronel do dito; e pelo povo os bacharéis Pedro Álvares Gato e António Afonso Dias Veneiros. Nela entravam mais: um deputado, conselheiro da fazenda, o doutor Rafael José Gabriel da Costa Pissarro; dois representantes do negócio, Francisco José Ferreira Lima e João António Pastor, e Vicente Nunes Cardoso, que servia de secretário.
Esta Junta promoveu a subscrição constante da Relação dos donativos feitos pelos habitantes da cidade de Bragança e seu districto para as urgencias da guerra contra os francezes em 1809. Estes donativos deviam ser entregues até dia 1 de Outubro do mesmo ano. A direcção deste negócio correu por conta de João António Lopes Pastor.

O doutor juiz de fora, António Delgado da Silva, 252$000.
O senado da Câmara, 400$000.
O vereador Rafael José Gabriel da Costa Pissarro, 200$000, vinte fardamentos para o regimento nº 24, um cavalo e uma cama para o hospital.
O vereador José de Sá Carneiro Vargas, quinhentos alqueires de centeio e doze fardamentos.
O reverendo cabido da Sé, mil alqueires de centeio e cem fardamentos.
O negociante Bernardo José Franco, setenta fardamentos, duas camas e 400$000.
O negociante Manuel António Garcia, cinquenta fardamentos, duas camas e 400$000.
O negociante Salvador Mendes Pereira, cinquenta fardamentos, duas camas e 300$000.
O negociante João António Lopes Pastor, cinquenta fardamentos, uma cama e 300$000.
O negociante José António de Castro, trinta fardamentos, duas camas e 200$000.
O negociante Luís Francisco de Sá, trinta fardamentos, duas camas e 100$000.
O negociante Manuel José Lopes, cinquenta fardamentos, uma cama e 100$000.
O negociante Gabriel Dias Mendes, quinhentos alqueires de centeio e vinte fardamentos.
O cidadão António José de Novais da Costa e Sá, quinhentos alqueires de centeio, um cavalo, seis fardamentos e uma cama.
O negociante Francisco José Ferreira Lima, dez fardamentos e 80$000.
O negociante Luís António Álvares, quatro fardamentos e 80$000.
O negociante José Bernardo Pissarro, cinco fardamentos, uma cama e 70$000.
O fabricante Francisco António Lopo, dez fardamentos, uma cama e 60$000.
José António Garcia, quatro fardamentos e 60$000.
Gabriel José Ribeiro, dez fardamentos, uma cama e 60$000.
O bacharel José António de Novais da Costa e Sá, seis fardamentos, uma cama e 50$000.
Martinho Carlos de Miranda, fidalgo da casa real e capitão-mor de Outeiro, duzentos alqueires de centeio.
André Manuel Pires, trinta e dois fardamentes e 20$000.
Daniel José Dias, negociante, quinze fardamentos, duas camas e 50$000.
António José Dias, quinze fardamentos, uma cama e 50$000.
O negociante João António Saldanha, quatro fardamentos, uma cama e 40$000.
David José Álvares da Silva, quatro fardamentos, uma cama e 40$000.
José António Ribeiro, quatro fardamentos e 30$000.
António José de Sá Pereira 30$000.
Manuel António Gonçalves de Lemos, seis fardamentos e 30$000.
O cidadão Francisco Novais da Costa, um cavalo, uma cama e 30$000.
Leonardo José Ramires, 20$000.
O fabricante Henrique dos Passos, 20$000.
Luís António Ramires, 20$000.
Caetano da Costa, 20$000.
Jerónimo José de Lima, uma cama e 20$000
Tomás António de Leão, cem alqueires de centeio.
O comissário pagador, Manuel Pereira da Silva, 20$000.
António Januário da Cunha Teixeira, cinquenta alqueires de centeio.
António José Pissarro, 10$000.
António Álvares de Lima, 10$000.
Manuel Dias da Paz, 10$000.
Catarina Maria Teresa, 8$000.
António Rodrigues Lobo, 7$200.
Daniel José Pimentel, 6$000.
António José Ramires, vinte alqueires de centeio.
O boticário João António Rodrigues, dois fardamentos e 5$000.
Francisco Martins, vinte alqueires de centeio.
José Gomes Santa Cruz, vinte alqueires de centeio.
Luísa Joaquina de Castro, 6$400.
José Manuel Mendes, trinta alqueires de centeio.
António José Baptista, 4$800.
Manuel José Moutinho, 4$800.
Manuel Fernandes Jurunheiro, 4$000.
José Bernardino do Vale, 4$000.
António Manuel Ferreira da Costa, escrivão do geral, vinte fardamentos.
O beneficiado Pedro António Vieira Gomes, seis fardamentos.
Vicente José Ferreira, quatro fardamentos.
Manuel Álvares Teixeira, dois fardamentos.
Diversos moradores da cidade de menos possibilidades, 72$640.
Francisco Inácio de Faria, do lugar de Dornes, seis fardamentos e 30$000.
O reverendo Manuel de Morais, abade de Terroso, dois fardamentos e 20$000.
O reverendo Manuel Fernandes da Costa, abade de Fresulfe, dez fardamentos.
O reverendo Alexandre José Maria Vilas Boas, abade de Gondesende, seis fardamentos.
O reverendo Francisco Xavier Valente, abade de Vinhas, cinco fardamentos e cem alqueires de centeio.

Diversos beneficiados e outros eclesiásticos do bispado, quatrocentos e setenta e quatro fardamentos, tudo para o referido regimento nº 24.
Todos os fardamentos correram pela inspecção e direcção de João António Lopes Pastor, que foi dos primeiros que os ofereceu e fez conduzir ao dito regimento.
Além disto, concorreram até o dia 1 de Outubro, de algumas povoações do distrito da mesma cidade, mil oitocentos e cinquenta alqueires de centeio e 27$490 em dinheiro.
Continuam ainda outros donativos, de que se dará conta a seu tempo.

Total dos donativos:
Dinheiro, 3.782$330 réis.
Centeio, 4.890 alqueires.
Fardamentos, 1.154.
Camas, 24.
Cavalos, 3.

Soriano, na História da Guerra Civil em Portugal, etc., 2ª época, vol. I, p. 609, diz que esta subscrição, em Bragança e seu concelho, rendeu em dinheiro 3.974.360 réis. Também no opúsculo Apologias do Abade de Rebordãos, Francisco Xavier Gomes de Sepúlveda, se lê que este, para o mesmo fim, oferecera trezentos alqueires de centeio.
E para que se não diga que o aferro ao torrão natal nos deslumbra, cedamos o passo a um estranho que nestas campanhas nos servirá de guia.
«Em alguns impressos — diz Soriano — que ha d’aquelle tempo anonymos, lê-se que Melgaço e a villa de Chaves foram as primeiras terras de Traz-os-Montes onde solemnemente se acclamou o governo do Principe Regente, mas de similhantes rompimentos nada absolutamente resultou nem coisa alguma d’estas progrediu.
N’uma Memoria Abreviada dos Serviços prestados pelo tenente-General, Manuel Jorge Gomes de Sepulveda, diz-se que fôra elle o primeiro chefe da acclamação do governo legitimo em Traz-os-Montes, tendo o seu primeiro rompimento em Bragança no dia 11 de junho d’onde rapidamente alastrou pelas mais terras d’aquella provincia, como Miranda, Moncorvo, Ruivaes e Villa Real, a respeito das quaes se imprimiram tambem relações especiaes dos factos que em cada uma se passaram».
A memória do dia 11 de Junho de 1808 constituiu depois uma festa cívica na nossa cidade. Por resolução da Junta da Sereníssima Casa de Bragança, de 31 de Maio e 29 Julho de 1816, foi despachada favoravelmente a pretensão da Câmara de Bragança tendente a comemorar com uma festividade religiosa, de que fizera voto a 20 de Abril de 1816, aquele fausto dia.
«Sepulveda — continua Soriano — posto que de avançada idade, desenvolveu a favor da revolução que começara, bastante actividade e energia. A notícia de que primeiramente tivera lugar no Porto chegara a Bragança pelas 5 horas da tarde do citado dia 11 de Junho; Sepúlveda, pondo-se imediatamente à frente de alguns patriotas, procedeu logo à aclamação do Príncipe Regente, dirigindo ele mesmo o povo que tinha sido o primeiro a levantar os vivas.
Nesse mesmo dia 11 chamou o general às armas todos os trasmontanos e os milicianos a quem se tinha dado baixa por ordem dos franceses.
Acudindo os povos a este chamamento, Sepúlveda passou logo a organizar alguns corpos de linha e de milícias; e não obstante o esmorecimento que a este respeito causou o desmancho do que se tinha feito no Porto, todavia a firmeza e prudência do velho general nada afrouxaram, a ponto de que pela sua parte fez sempre progredir o movimento começado, instalando no dia 21 uma Junta do Governo, que ao princípio se chamou Junta Suprema e depois Provisional, da qual Sepúlveda foi presidente.
Nesse mesmo dia tornou ele a chamar todos os cidadãos às armas, sem excepção de pessoas, contra o inimigo comum, ordenando a par disso que todos os franceses saíssem da província no prazo de três dias. Além destas medidas tomou também as que lhe pareceram adequadas para o estabelecimento de uma linha de defesa no Douro, para cujo fim se combinou com os generais espanhóis Pignatelli e Cuesta, comandando aquele em Zamora e este em toda a Castela, como capitão-general.
Desde então a revolução rebentou com todo o eutusiasmo em todas as terras do Minho e algumas da Beira, concorrendo muito para isso o exemplo, as participações e os convites feitos pelo mesmo Sepúlveda aos respectivos generais e governadores militares.
Era quase impossível que a heróica cidade do Porto, sempre tão famosa pelo seu patriotismo, permanecesse indiferente ao nobre exemplo que para a libertação da pátria lhe dava o velho general Sepúlveda, colocado como se achava num recanto de Portugal. E o Porto, no já citado dia 18 de Junho de 1803, secundou o movimento de Bragança».




Memórias Arqueológico-Históricas
do Distrito de Bragança

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