440: este é sensivelmente o número de quilómetros que separa Lisboa de Freixiel, ou seja, a distância que Graça Morais percorre cada vez que se dirige para a aldeia transmontana, terra da família paterna dos Morais. Apesar de gostar do ambiente cosmopolita da capital, da penumbra do anonimato (afinal de contas, ser uma figura pública é cansativo) e de alimentar a sua pintura com «várias formas de arte, quer seja música, cinema, livros, coisas que só encontro nas grandes cidades», o esforço logístico de subir a norte é sempre justificado. Em causa não só está a natureza do espaço, «porque o meu atelier prolonga-se por todo o lado; a aldeia, e sobretudo o campo, é o meu atelier, onde procuro o silêncio», como não é de somenos importância o aspeto relacional. Estes seus regressos a Trás-os-Montes são perfumados de afetos: a pintora diz voltar porque «gosto muito de estar com pessoas que me conhecem desde criança, esse encontro de pessoas que conhecem a minha história e eu a delas».
“O Segredo II”, 2008, Graça Morais ©Graça Morais |
Todavia, se esta influência é uma companhia constante, por outro lado a pintora denuncia uma certa tendência redutora com que se tende a olhar para sua obra. Se no início dos anos 80, Graça Morais regressou ao Vieiro para olhar e refletir sobre a paisagem e as gentes numa «relação quase antropológica com o lugar, uma ida ao fundo daquilo que eu queria conhecer», por outro lado lamenta que em trabalhos que pouco ou nada têm a ver com a realidade transmontana, «estejam sempre a ver nessas figuras as pessoas de uma região, mas que nem sempre são». Disso são exemplos os rostos dilacerantes em A Coragem e o Medo, exposição que agrupou quadros alusivos a pessoas desesperadas que Graça Morais recortou dos jornais e reproduziu a quente aquando das convulsões das Primaveras Árabes.
“20 de Janeiro de 2017”, 2017, Graça Morais ©Graça Morais |
No que toca a grupos tradicionalmente vulneráveis, é inegável que um dos focos temáticos por excelência da pintora transmontana é a mulher, nas mais diversas vertentes: da serenidade solitária d’As Escolhidas (1995) à cumplicidade presente em Segredos (2008) – série cujo um dos quadros adorna a edição de primavera 2018 da EPICUR. Desde cedo, Graça Morais dedicou-se a retratar as figuras femininas porque «as observava com muita atenção, era-me mais fácil conhecer o mundo das mulheres do que o dos homens, desde criança que estava proibida de brincar com rapazes». Os costumes tradicionais, a segregação de género no ensino do Estado Novo, a infância nas casas da mãe e do avô materno, coladas uma à outra e unidas por uma grande porta, onde viviam avós, tios e tias – a mãe e as suas irmãs, «Imagine, seis mulheres numa casa! O que se falava, o que se dizia! As festas, as discussões, era tudo um mundo muito complicado mas também muito fascinante» -, todas estas experiências contribuíram para que a pintora focasse o seu olhar na condição feminina.
"As Escolhidas IV", 1995, Graça Morais |
Mesmo com uma carreira longa e recheada de louvores, Graça Morais não prescinde da pertinência dos seus trabalhos da urgência da sua arte. Quando a visitámos, encontramo-la na capital, onde está a passar por um período de transição. Gafanhotos secos, batatas greladas e romãs são alguns dos objetos que tem à mesa a servir de inspiração, num espaço despojado que lhe serve de atelier improvisado mas lhe permite continuar a trabalhar, embora sem o conforto ou as condições logísticas que o seu “lar” artístico da Costa do Castelo, atualmente em obras, lhe confere. «Não vivo isolada numa torre de marfim», relembra, «pelo contrário, leio os jornais, informo-me com a televisão, com a internet, observo e falo com as pessoas no meu dia-a-dia». As ilustrações que nos mostra, de gafanhotos antropomórficos, são metamorfoses kafkianas num espelho da realidade no interior do país que a pintora tem observado com inquietação: «estes velhos tão indefesos, são estes gafanhotos, é o drama da solidão, do despovoamento, dos predadores que por onde passaram limparam tudo».
©Miguel Silva |
Há vários meios e ferramentas de despertar as pessoas para a criação artística e uma delas diz respeito diretamente ao legado da pintora transmontana. Inaugurado no centro de Bragança em 2008, o Centro de Arte Contemporânea Graça Morais foi uma surpresa para a pintora, que aceitou «com muita honra» batizar este espaço com o seu nome projetado por Eduardo Souto Moura. Regressando aos tempos em que andava no Liceu da cidade, Graça Morais lembra-se das visitas ao Museu Abade de Baçal onde, apesar da riqueza do seu acervo em arte sacra, arqueologia e numismática, nele «não encontrava a pintura mais recente que eu procurava». É por isso que a artista considera este centro de arte crucial, não só para a região, mas também para o país, pois o espaço programa exposições de inúmeros artistas, de espetro nacional e internacional. Porém, a relevância deste espaço também toca à sua obra, já que lhe permite ir «criando exposições que considero importantes para as pessoas conhecerem a minha pintura e para eu poder mostrar o melhor que fiz».
©Miguel Silva |
Por Antonio Moura dos Santos
Fotografia de Destaque – ©Miguel Silva
EPICUR
Olá Henrique! Obrigada pela partilha. Ontem entrei em casa de uma pessoa para com ela conversar que se sentava num sofá com um quadro da Graça Morais que me deslumbrou completamente. Era desta série "as escolhidas" e fiquei fascinada. Hoje vim procurar saber mais e este artigo do António Moura Fernandes deliciou-me e aquietou a minha curiosidade. Muito interessante esta entrevista, a posição feminina, as raízes da pintura o seu entendimento do mundo e do lugar da pintura nele culminando com a ideia de que " o campo é o meu atelier" que é tão inspiradora. Muito obrigada pela partilha.
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