O género do negócio – furar a fronteira – redundava em pingues lucros para os furadores, os passadores embrenhados numa controversa teia de transportarem gado humano para uma terra, terras sem guerra colonial, onde as padarias vendiam pão a todos quantos o podiam pagar.
A notícia informa-me de o Museu Abade de Baçal ter ter inaugurado uma exposição referente à emigração clandestina ocorrida no Nordeste desde a eclosão da guerra colonial. Não vi a exposição, li o artigo de fundo de Teófilo Vaz que calou fundo na plataforma se palavras, sons e sentidos do que entendo ser a nossa memória colectiva, no caso em apreço de toda a negregada e forçada fuga ao oróbio, ao analfabetismo, à miséria e funesta opressão conduzida por «educadores» de um sistema político antidemocrático e amigo das medidas de segurança instituídas por um Ministro bragançano.
Tais medidas inspiradas nas leis fascistas produziram muito sofrimento, muita miséria e, graças aos militares de Abril, macias retaliações, o Catedrático legislador foi saneado, todos os sequazes ficaram de férias uns tempos sendo reintegrados sem perda de direitos ou regalias de estatuto e mesura.
Ora, o editorial de Teófilo Vaz teve o condão de remexer o baú da memória, daí o recrudescer centrado em actores que de uma forma ou outra desempenharam papéis ma grotesca peça do negócio que no essencial, a cupidez, conseguiu superar as negociatas do volfrâmio onde se espalhavam semienterrados bocados e vestígios do metal levando os lorpas ao engano de forma a vender-lhes a ilusão. Sobre o volfrâmio escreverei um dia!
No tocante à exposição não sei se contempla relatos sonoros e descrições proferidas e descritas por passadores, alguns estarão vivos, vivi e ouvi conversas no café Progresso e esporadicamente em duas casas de pasto bragançanas onde pontificavam passadores quase sempre de samarra colada às costas, de olho vivo e pé-ligeiro mormente nos dias de feira pois propiciavam recrutamentos e prisões ou não existisse bem perto (Quintanilha) um posto da PIDE dirigido por frenético agente nascido em Moimenta da Raia que o Senhor José Reis enfrentou olhos nos olhos e punhos cerrados.
Alguns passadores corriam parados a recolherem e segregarem informações na potenciação (como agora se diz) do negócio longe das evocações daquela Senhora Clímaco que escreveu uns pitorescos livros relativos aos clandestinos, longe da cesura higiénica de autores austeros e longe da escrita de Pugalle. Eu disse cesura, não disse censura!
Seria estultícia enunciar sacerdotes, escritores e publicitas que conseguiam furar a cortina censória do Estado Novo escrevendo acerca dos dramas decorrentes dos saltos quantas vezes mortais advindos das custosas transposições de obstáculos naturais e humanos, no entanto, felizmente, também surgiram vozes de apoio aos desgraçados caídos nas garras de ladrões de tudo. Neste vaivém emigratório deve-se incluir os transportadores muito bem pagos, estes comparsas ganharam muito dinheiro apesar de untarem as mãos visando o fechar de olhos de vigilantes de raias secas e molhadas, sem esquecer os celerados a depositarem as vítimas onde calhava.
No tocante a documentação também ignoro o trazido a lume, penso que o meu amigo Professor Doutor Francisco Cepeda deve possuir e saber onde se pode encontrar para além das instituições habituais, o Centro de Documentação 25 de Abril e o Museu da Resistência e a Biblioteca de Pacheco Pereira terão documentos de várias origens referentes ao tema em boa hora ressuscitado pelo Museu. O Dr. Ochôa trabalhou junto de emigrantes na Alemanha, de qualquer modo, o importante seria convencer os homens e as mulheres a testemunharem as suas errâncias no grande palco francês e luxemburguês prioritariamente, no alemão na primeira fase e no espanhol um pouco na qualidade de comprido corredor até à fronteira francesa. Seria vaidade pacóvia indicar este ou aquela nos diversos patamares do drama, a mala de cartão da maioria dos atingidos não se esvaneceu, continua a perdurar no seu imaginário sem canções a acompanhar, sim imagens de dormirem em barracas, de trabalharem de sol a sol, de amealharem sorrisos de troça e humilhações porque a instrução era escassa e a míngua de conhecimento da língua hospedeira aumentavam as provações.
Nas festas estivais descendentes dos forçados foragidos vêm as aldeias dos ascendentes, não acreditam no antigo modo de vida dos avós, às vezes já nem eles querem acreditar porque preferem esquecer, só que tão funda e forte ferida aberta a golpes de infortúnio não ser cerzida porque continua a purgar, esta exposição tem o mérito de possibilitar o reforço da nossa identidade colectiva, neste caso pelas piores razões.
O desafortunado e eminente historiador Lucien Febvre escreveu uma obra que, pelo menos, todos os professores de História deviam ler e meditar, trata-se de Combates pela História, o autor argutamente aponta o papel da História para o conhecimento do Mundo, de nós próprios. Ora, o período de passadores e passantes nas nossas aldeias e cidade (naquela época ainda não se tinham multiplicado as vilas e cidades) devia fazer parte das preocupações educacionais e culturais dos nossos burgos para sem peias e resguardos estudarmos a documentação existente nos mais variados suportes, os discutirmos e cicatrizarmos a referida ferida. É melindroso, é. O mesmo melindre que encerram duas canções de Zeca Afonso, uma a contrastar com a outra, as duas invocando dois homens há pouco tempo desaparecidos.
O restauro da democracia cuja efeméride comemoramos amanhã também se fez a fim de permitirmos abrir as arcas encoiradas de toda e qualquer natureza porque a História pode ser branqueada, mutilada, distorcida, falseada, pura e simplesmente arrasada como no século XX os ditadores e tiranos pretenderam, porém a história deixa sempre um vestígio a denunciar os regimes criminosos e os apagadores cheios de invisível pó de giz a surgir imitando o nariz do Pinóquio. 25 de Abril sempre!
Armando Fernandes
in:jornalnordeste.com
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