Uma vila, 14 freguesias, 41 aldeias, e tranquilidade na dose certa. A pouco mais de uma hora do Porto, 40 minutos de Vila Real, hora e meia de Viseu, pode estar um reino de surpresas: Carrazeda de Ansiães.
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Fotografias: Leonel de Castro/Global Imagens |
Neste pedaço de terra encostado ao Douro e ao Tua, cultivam-se campos, alimenta-se o gado, mata-se o porco, apanham-se maçãs, faz-se azeite e vinho. Carrazeda vive do que a terra lhe dá, do peixe que sai do rio, e ainda mostra o que lhe corre nas veias. Montes salpicados de granito, um imenso planalto, estradas coladas ao rio, pomares, vinhas, igrejas, museus, adegas. As fronteiras ficaram fechadas no século XI, mas as histórias constroem-se todos os dias. Cristiano Sousa está habituado a contar essas histórias.
Licenciou-se em Turismo e História de Arte em Coimbra, regressou, é guia pelos cantos e recantos de Carrazeda. Conhece-os bem e explica-os em circuitos de um dia, gratuitos, entre março e setembro, dos moinhos de água e vento à anta megalítica da aldeia de Zedes. «Gosto muito da minha terra, das raízes, de viver em Trás-os-Montes. É um local sossegado, onde se está bem, onde toda a gente se conhece, onde há apoio comunitário», conta.
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Pisa de vinho na Quinta da Cuveta, Ribalonga,
freguesia de Carrazeda de Ansiães |
Produzir 165 mil litros de vinho por ano
Este ano, as vindimas começaram mais cedo, o tempo aqueceu, a chuva não caiu. Mónica Prazeres está a pé desde as seis da manhã, conduz um trator de lagartas nas vinhas de Ribalonga e, desenrascada, em qualquer canto faz uma manobra. Ao início da noite prepara uma merenda com queijos, enchidos e vinho fino para os amigos que vão à Quinta da Cuveta para uma lagarada. A família tem 40 hectares de vinhas espalhadas por Carrazeda e produz cerca de 165 mil litros de vinhos por ano.
Naquela noite, as máquinas que pisam uvas são excecionalmente substituídas por homens de pés descalços, calças dobradas até à cintura. Martim, filho de Mónica, não resiste à diversão e salta para o lagar da adega. Mónica não tem dúvida. «O interior transmontano é um sítio bonito para se viver».
O vinho é um dos motores económicos e há vários produtores na região, Grambeira, Bulfata, Pala da Lebre, Trovisco, Douro Ansiães, entre outros. E naquelas vinhas com vista para o Douro, na Quinta da Senhora da Ribeira, da casa Symington, nasceu o Dow’s Vintage Porto, o melhor vinho do mundo de 2011, segundo a revista Wine Spectator. Uma garrafa custa agora 300 euros e não é fácil encontrar.
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Apanha da Maça em Luzelos, freguesia de Colmeal |
A maçã também é importante para a economia da região. Em Luzelos, não há mãos a medir no pomar da família Saraiva. Mulheres e homens de cestos colados ao corpo sabem de olhos fechados o tamanho que devem ter as maçãs – em caso de dúvida, têm um medidor amarrado ao cesto. Este ano, há mais maçãs, de cinco variedades, nos 12 hectares dos Saraiva. A apanha termina em novembro, nos dois meses seguintes trata-se da poda. Há sempre trabalho, segundo Ricardo Saraiva, de 25 anos. «Fazemos análises à terra para ver do que precisa, mais azoto, mais potássio. São 25 tratamentos por ano e é preciso regar todos os dias».
As memórias do passado
Lá em baixo, junto ao Douro, mora Otília Rosa que tem um barco para pescar. Duas horas de manhã a partir das 6h30, mais uma hora ao final do dia. Pelo meio, faz quilómetros na sua carrinha com o pescado fresco, sobretudo barbos e lúcios, para vender pelas aldeias. «Se não vou ao rio, fico doente», confessa a pescadora de Carrazeda. Há muito que seguiu as pisadas do pai. «Dos oito filhos, fui a única que ficou com a arte do velho».
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A Igreja de São Salvador de Ansiães,
no interior das muralhas do Castelo de Ansiães |
Otília está numa fotografia no Museu da Memória Rural juntamente com outros protagonistas de velhos ofícios. A cultura rural, as tradições, o património imaterial da região duriense e transmontana mostram-se aqui em imagens, ferramentas, textos, livros. O tanoeiro, o canastreiro, a vida dos pastores, o ciclo da lã, o azeite, o vinho, o pão. A história de Carrazeda é feita dessas pessoas. E no alto do castelo com cinco mil anos, de porta sempre aberta, há histórias mais antigas e uma imensa vista. Ao redor, o que resta das muralhas de uma povoação e a Igreja de S. Salvador de Ansiães que exibe, por cima da porta de entrada, um dos mais belos e completos portais românicos do país. Para acompanhar a cronologia do que se passou na região, apreciar vestígios como machados e cerâmicas, há o CICA – Centro Interpretativo do Castelo de Ansiães, erguido das ruínas de uma casa tradicional, a alguns quilómetros do monumento nacional. E na vila há esculturas contemporâneas de artistas que falam da arte e da vida ao ar livre. Ângelo de Sousa deixou a sua marca em 21 blocos de granito no jardim perto do centro de apoio empresarial e Alberto Carneiro criou Os Sete Livros da Vida em páginas de pedra nos jardins da biblioteca municipal.
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A Igreja de São Salvador de Ansiães,
no interior das muralhas do Castelo de Ansiães |
Do passado nada se perde, tudo se recupera. A antiga casa dos homens que trabalhavam na Junta Autónoma de Estradas, a poucos metros das obras da nova barragem do Tua, é agora uma montra dos produtos da região, com garrafeira de madeira, esplanada, sótão, salas de estar. A Casa dos Cantoneiros – Foz Tua Wine House é um ponto turístico gastronómico com vinhos, azeites, mel, frutos secos, compotas caseiras de maçã, abóbora, cereja, amora silvestre. O vinho é vendido à garrafa ou ao copo, há tábuas de enchidos e queijos e azeite para molhar o pão. Os preços são simpáticos tabelados pelos produtores e Alice Machado é a sorridente anfitriã que responde aos pedidos e satisfaz curiosidades. «É um sítio calmo, come-se bem, as pessoas são afáveis. Carrazeda tem o planalto, as vinhas, zonas viradas para o Tua e para o Douro, geograficamente é muito diversificado», diz. Uma forma de abrir o apetite numa das entradas no concelho.
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O Museu da Memória Rural, em Vilarinho da Castanheira,
recupera o passado do município de Carrazeda de Ansiães |
Alheiras e miúdos
A gastronomia transmontana é suculenta e Carrazeda junta à mesa o melhor de dois mundos: carnes e peixes do rio. O Calça Curta, pertinho da estação de comboios do Tua, mesmo juntinho ao Douro, é procurado por essa variedade. Tem veado, javali, vitela, e barbos e bogas do rio. O polvo grelhado, especialidade da casa, vem de outras paragens, e as enguias entram ali vivas, são fritas e chegam à mesa com molho de escabeche. É um negócio da família Silva. A mãe Zélia segura os comandos na cozinha, os filhos Marco e Cristina servem às mesas, e o pai Frederico ora está no café, ora no restaurante. «Aqui servimos com sinceridade e as compotas são feitas por nós», garante Cristina.
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O Museu da Memória Rural, em Vilarinho da Castanheira,
recupera o passado do município de Carrazeda de Ansiães |
Já a Taberna da Helena serve merendas transmontanas e jantares num antigo palheiro recuperado com terraço e belas vistas para o campo, onde o anoitecer ganha um brilho especial. Helena Miranda e Luís Carlos são a alma desta taberna com sabores caseiros e ar moderno. As francelas, tábuas onde se faziam os queijos, são o prato das merendas com presunto, queijos, salpicão. A alheira grelhada, a chouriça picante, o azeite para molhar o pão, os vinhos da região, resumem na barriga a riqueza da região. O borrego grelhado e os miúdos de cordeiro envolvidos em alho, preparados por Luís Carlos, mostram quão saborosa é esta gastronomia que se orgulha das suas raízes e que bem pode terminar a noite com panacota com redução de vinho do Porto e sumo de maçã.
Noutra casa, o restaurante Convívio, Luís Morgado recebe quem entra no seu de travessa na mão e um sorriso. Da cozinha saem pratos tradicionais, o javali estufado com molho que ensopa as batatas cozidas, mão de vaca com grão-de-bico, cordeiro assado na brasa, iscas de fígado de porco com cebolada. Luís aposta na cozinha tradicional, fiel aos sabores transmontanos, e também serve arroz de cabidela, a posta mirandesa com batata a murro, e rojões.
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Vindimas na Quinta da Cuveta em Ribalonga,
freguesia do concelho de Carrazeda de Ansiães |
Docelinda Veiga e Ana Sofia, mãe e filha, tomam conta do restaurante Senhora da Ribeira junto ao Douro. O barbo do rio é frito e servido com molho de escabeche feito com vinagre caseiro de vinho tinto, o cordeiro é grelhado, e ao domingo há arroz de pato e picanha com feijão preto. «Servimos o que é típico e compramos os legumes aos lavradores», conta Docelinda, proprietária e cozinheira. A feijoada à transmontana, com couve lombarda ou couve portuguesa, faz naturalmente parte da ementa. Uma vez na vila, pode-se contar com A Quintinha do Manel, restaurante com esplanada e jardim, que também serve carne e peixe. O bacalhau à casa tem cebolada e pimentos, a vitela é transmontana, o cabrito é assado no forno. Manuel Augusto, o dono, deixou Cascais e Sintra, onde trabalhou no mesmo ramo, e em boa hora voltou à terra.
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Otília Pereira tem, todos os dias, peixe fresco
do Douro para vender nas aldeias em redor |
Dormir entre montes
Os dias correm devagar, sem filas de trânsito, no centro da vila não há gente com pressa. À noite, em Vilarinho, ouvem-se grilos, a água da piscina está a 22 graus, pela frente montes e vinhas, uma paisagem verde e azul ao amanhecer. «Os clientes gostam muito desta tranquilidade», garante Maria Conceição Correia, professora primária reformada. Há quase dois anos que o filho Pedro transformou dois casebres em sofisticados apartamentos com cozinhas apetrechadas, salas amplas, lareiras, sofás espaçosos, janelas para terraços e jardins no Lagares Douro Villas. Descansa-se bem aqui com o conforto do que existe na cidade. E o pequeno-almoço bate à porta com sumo natural de laranjas, pão, bolos, compotas, ovos mexidos ou estrelados.
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Barbo frito com escabeche de vinagre caseiro
é uma especialidade do Restaurante Senhora da Ribeira,
freguesia de Seixo de Ansiães |
Tranquilidade também não falta numa casa de família do século XIX transformada em turismo de habitação na aldeia de Tralhariz. Os sons que interrompem o silêncio vêm dos pássaros, da buzina do padeiro, ou do sino da igreja. Casal de Tralhariz mantém um altar antigo numa sala que adaptou a pequena biblioteca, e transformou as casas do gado em modernos estúdios e a casa dos caseiros num T2 com cozinha, dois quartos, sala de estar e mezzanine. No jardim, há alecrim rasteiro, árvores de fruto e piscina. «Para descansar não há melhor», garante Maria Júlia, a cozinheira. O mobiliário antigo foi recuperado, há alguns objetos modernos na decoração, sobretudo sofás, e o pequeno-almoço é servido numa sala à antiga, com mesa comprida e cadeiras trabalhadas. Cá fora, a paisagem honesta deste planalto rico entre rios, que se agarra com força às suas raízes.
Texto de Sara Dias Oliveira
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