quinta-feira, 31 de maio de 2018

“Não adianta ter cidades inteligentes e um meio rural que é ‘burro’”

Otimizar e ocupar o território faz-se com recurso aos fundos europeus mas também com uma política de atração de imigrantes qualificados para o interior do País. E os vistos gold podem dar uma ajuda. Entrevista a Luiz Ugeda, advogado, geógrafo e sócio da Geodireito.
É brasileiro e os seus instrumentos de trabalho são a Geografia e o Direito. Por isso, diz que o seu negócio são “os mapas e as normas”. Veio para Portugal fazer o doutoramento em Direito, na Universidade de Coimbra, e ao mesmo tempo fez o levantamento das necessidades do País. Encontrou um interior despovoado, dotado de uma infraestrutura “ociosa e sobredimensionada”, e viu nisso o terreno ideal para “casar” uma política imigratória com uma política de ocupação do território. Com o auxílio de parceiros nacionais, quer oferecer serviços de captação de recursos financeiros e de identificação de oportunidades de investimento em áreas como a energia, os portos e aeroportos. Na bagagem, Luiz Ugeda traz a experiência obtida em projetos elétricos no Brasil, assim como na expansão e instalação dos aeroportos de Brasília e de Natal. E traz também um discurso adaptado aos problemas de um interior que ardeu demasiadas vezes no verão passado.


Propõe-se fazer a “reinvenção do ordenamento do território português”. Como?

Reinventar o território é reinventar a ciência, tanto geográfica quanto jurídica. Precisamos de mapas e normas, como dizemos no Brasil. De um conjunto de sistemas de informação geográfica que esteja alinhado com um conjunto de normas e legislações. Quando começamos a trabalhar com conceitos de cidades inteligentes, redes inteligentes, principalmente no setor elétrico, no saneamento, no gás, também começamos a pensar em territórios inteligentes. Não adianta você ter cidades inteligentes e um meio rural que é “burro”. Não adianta ter cidades inteligentes num País que arde duas vezes num ano. Como integrar o território de uma forma inteligente? No caso do Brasil, vivemos a antítese. Por causa da influência da agro-indústria, temos um meio rural inteligente, com uso intensivo de drones, de imagens de satélite, de mapeamento do solo, e temos cidades completamente analógicas. Então, temos que trabalhar com essas duas realidades e encontrar mecanismos, tanto geográficos como jurídicos, para desenvolver políticas públicas.

Como é que avalia as políticas públicas nacionais, à luz da tragédia dos incêndios no último verão?

Sempre há o que melhorar para se avançar com as políticas públicas. Os portugueses têm as suas visões e as suas expetativas sobre o ordenamento do território. Atualmente, existe a preocupação de descentralizar a população e existem incentivos para trazer mão de obra qualificada para o País. A nossa intenção é trabalhar com essas ferramentas para identificar novos negócios. Nada nos impede de olhar para regiões como Portalegre, Guarda, Pedrógão Grande e pensar em soluções para otimizar o território.

Pode dar exemplos?

O Brasil tem uma grande experiência agrícola. A Brasagro, empresa brasileira agroindustrial, tem vários peritos para trabalhar com o solo e consegue plantar trigo de qualidade em zona tropical. Isso pode ser interessante para Portugal. Talvez a reocupação do território português possa ser feita pela agricultura, ou pela co-geração de energia, já que Portugal está na vanguarda das energias alternativas. O aproveitamento de resíduos vegetais e animais para a produção de energia é muito incipiente. Identificámos algumas oportunidades e queremos trazer para cá a nossa expertise. É isso que a Geodireito se propõe.

A agricultura ocupa pouca mão de-obra, embora qualificada. É através dela que se vai atrair pessoas para fazer a “ocupação inteligente” do território?

Você leva pessoas para a agricultura, mas essas pessoas vão precisar de médicos, de professores, de bancários, de prestadores de serviços, e aí você começa a dar um reaquecimento na economia local. São atividades modernas, que empregam poucas pessoas, mas não podemos pensar apenas nos empregos diretos. O mais interessante é que pode ser feito em consonância com os valores históricos de Portugal. Não me parece despropositado trazer uma realidade dessas para cá.

A sua experiência no Brasil, na América do Sul, é a de um território que é vasto. Portugal é um país pequeno. O modelo é transponível?


Acredito que sim. Por ser uma escala maior, até simplifica o trabalho. É preciso um esforço menor para atingir os mesmos objetivos. Se pensarmos que um estado agrícola como o do Mato Grosso, que tem o tamanho da França e da Espanha juntas, mas só tem 3 milhões de pessoas, está crescendo a taxas “chinesas” de 10 a 12% ao ano... O Brasil não cresce, as grandes cidades não crescem, mas o meio rural está crescendo com a venda de commodities para a China e para outros mercados emergentes. Não temos a pretensão de reinventar o território como é feito lá, nem queremos construir do zero, mas queremos pegar em novas regionalidades e tentar atrair quem queira investir.

O Governo tem a descentralização na agenda. É suficiente?

O Governo tem tido a virtude de discutir, de forma profunda, as políticas de ordenamento territorial. O grande défice talvez seja que a ocupação do território, exceto na China, nunca acontece com decréscimo populacional. Portugal precisa de casar uma política de ordenamento do território com uma política imigratória, para atrair estrangeiros mas também os portugueses que saíram. Veja o exemplo do Brasil. Até ao século XIX era um país de cabotagem [navegação entre portos na mesma costa], mas a partir daí começou a ter políticas públicas para a interiorização. Os governos fundaram Belo Horizonte [uma das primeiras cidades planeadas no Brasil] em 1898, Goiânia em 1933, e mudaram a capital para Brasília em 1960. Transferiram a pressão demográfica do litoral para o interior. Mas o Brasil tinha uma política imigratória, que atraiu alemães, libaneses, japoneses, aliada a uma possibilidade de ordenamento do território. Com exceção da China, que consegue fazer a interiorização mesmo com a política do filho único, não vejo muitos países a fazer o mesmo sem uma política imigratória. Talvez o governo português pudesse fazer essa reflexão… com uma diferença: no Brasil, você estava ocupando sertões; aqui você vai ocupar uma infraestrutura que já existe, mas que está ociosa e sobredimensionada. E, no mundo caótico em que vivemos, com êxodos demográficos e ambientais, tudo o que as populações carentes querem é ocupar regiões com infraestruturas ociosas. Portugal, enquanto estado europeu, tem todas as condições para aliar política imigratória, de gente qualificada, a uma política de ordenamento territorial.

Os portugueses estão receosos em relação ao interior, por causa dos incêndios. Morreram pessoas por falta de auxílio das forças de segurança…

Portugal tem de repensar a sua relação com o interior. Quando você aporta ao interior a mesma inteligência que existe na cidade, começa a modificar a situação. Se pensar em culturas que não exponham Portugal ao risco – como o eucalipto -, estará a pensar em novas sinalizações económicas que permitam repensar o ordenamento do território.

Os fundos europeus podem suportar uma nova política de atração de pessoas?

Portugal não precisa de muitos recursos. E pode aliar esses fundos a capital externo, atraindo investidores, porque não estará a ocupar sertões nem terras virgens.

A Geodireito propõe-se identificar as oportunidades económicas e as infraestruturas que podem atrair pessoas para o interior. Como é que presta esses serviços?

O Direito Administrativo Geográfico [Geodireito] é o mecanismo que vai ser usado no século XXI para se inventariar o território. Se até à invenção dos sistemas de informação geográfica você fazia tudo em sistemas analógicos, com recurso a papel e a mapas antigos, agora você tem uma capacidade enorme de processamento de dados. Isso se faz com fundos europeus e com uma iniciativa privada que tem interesse em ocupar o interior. Existem muitas pessoas que querem vir para Portugal através do visto gold, e que poderiam investir no interior. Não precisam de ir para o centro de Lisboa se puderem ir para Portalegre ou Castelo Branco, desde que se sintam confortáveis para investir o dinheiro nessas regiões. São essas oportunidades que temos de identificar. Costumo dizer que temos de ocupar os vazios. A natureza tem horror ao vácuo (risos). Tudo o que está vazio tem que ser cheio e tudo o que está cheio tem que ficar vazio. Temos que fazer com que o espaço seja menos desigual, para termos um País mais coeso. Só será coeso quando for menos desigual. Mas se nada for feito, as desigualdades vão aumentar. Precisamos de criar mecanismos para tirar as pessoas dos grandes centros e dizer-lhes que, em vez de irem para França ou Alemanha, existem alternativas que podem ser boas no interior do País.


Clara Teixeira
Revista Visão

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