Odor de santidade a favor da propaganda
Um assento, lavrado pela mão de Frei Manuel das Onze Mil Virgens, dando fé do falecimento, “nos ares pátrios”, em 6 de fevereiro de 1746, de Frei Francisco da Ascenção, “filho professo deste seminario de Brancannes com idade de sincoenta e três annos, e vinte e três de habito”, tem, a nosso ver, um significado que ultrapassa a mera formalidade de um registo de óbito. De facto, a projeção de algumas das circunstâncias associadas à vida e ao falecimento do padre Francisco da Ascensão participavam de uma operação com alcance maior que o engrandecimento da sua bonomia uma vez que o que estava em causa era a personificação das qualidades intelectuais e humanas do conjunto dos padres de Brancanes, a perspetiva da aceitação local e regional dos seus membros, e, por outro lado, o favorecimento da dinamização de uma ideia que ia perdendo fulgor.
Parece-nos, pois, que a partida para a eternidade do padre Francisco da Ascensão, “morte precioza [...] com maravilhosos signaes de predestinado” seguida da divulgação de tão “ditosa morte” na Gazeta de Lisbo, de 8 de março de 1746, ainda que oferecesse matéria com interesse jornalístico, se explica melhor no âmbito de propósitos propagandísticos. E mesmo que se aceite a observação de um missionário relativa ao facto do seminário nada ter feito para isso, parece-nos que o anonimato do agente informador não oculta o interesse direto dos padres de Brancanes pela fama que se acrescentava ao seu convento nem anula os objectivos que moviam alguns notáveis de Vinhais como o abade José António de Morais ou o sargento-mor de cavalaria José de Morais Sarmento.
Mas o relato é também importante por deixar ver algumas semelhanças entre o sentimento religioso e a respetiva compreensão numa região periférica de Portugal e práticas multiculturais correntes nas zonas que os portugueses tentavam colonizar enquanto se manifestam as vivências associadas ao culto das relíquias e algumas das metodologias que os religiosos incrementavam para favorecer o estreitamento de laços com a generalidade da população. A fama de santidade pendia para os intentos dos padres porque se adequava bem ao espírito da missão e ao enaltecimento dos contributos catequéticos. Convinha, por isso que a morte de Frei Francisco da Ascenção se transformasse num acontecimento com ecos capazes de vencerem o cimo dos montes que aconchegam Vinhais. Então:
“o povo daquela villa, e suas vizinhanças o aclamarão por venerável com toda a província ainda a beijar lhe os pes, tocar rosários em seu cadáver, e a cortar lhe o habito para relíquias, remediando a muitos doentes, enfermos, que se valerão do seu patrocinio repentinamente, e os que não podião chegar a sua prezença se pegarão com as relíquias do seu habito, escriptos, ou couzas semelhantes com que ficavão remediados nas suas necessidades”.
Outras manifestações de exceção, ainda que corporais, ajudavam a configurar este prodigioso quadro. Assim, Frei Francisco da Ascenção:
“ficou com o semblante formozissimo e flexível, e sendo sangrado depões de vinte horas lançou sangue liquido: esteve tres dias exposto na igreja das religiozas (de Santa Clara) daquella villa com sentinellas, e guardas a porta, para defender o túmulo dos concursos que vinhão venerar com excessiva devoção”.
Uma devoção que decorria do facto de ter morrido em Vinhais em casa de José de Morais Sarmento. Um acontecimento que, mais uma vez, se cruzava com esta personalidade, a mesma que ao ter conhecimento da presença do padre na sua terra natal, Tinhela, para onde se retirou em cuidados de saúde, “o veio logo buscar e o levou para sua caza para a villa de Vinhaes, parte para cura lo e convalece lo como bom amigo e parte para ter la prendas do seminario do qual pertendia os fundadores para o novo seminario que pertendia fundar” .
Talvez por reconhecer que muitos milagres eram imputados à pressa de fazer santos, em 1755, Frei João de Jesus Maria, um dos cronistas que escreveram a “Chronica de Brancanes, Tomo 2.º”, para descargo da sua consciência, advertia que este manuscrito não podia conhecer o rigor dos prelos antes de passarem pelo menos vinte anos sobre alguns dos sucessos descritos.
Luís Alexandre Rodrigues
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