terça-feira, 26 de junho de 2018

A ação dos padres de Brancanes em Vinhais. O Seminário da Senhora da Encarnação e constituição da Venerável Ordem Terceira da Penitência

A Ordem Terceira da Penitência
Em 7 de novembro de 1762, cerca de uma década depois de se ter dado andamento à obra do Seminário e Convento de Nossa Senhora da Encarnação de Vinhais, a Ordem Terceira da Penitência realizava a primeira sessão oficial “na capella da portaria ou do capítulo que estava situada entre a entrada do convento e a igreja” . O aparecimento da irmandade parece dever muito ao trabalho de Frei António de Nossa Senhora das Neves que, por ter sido um dos fundadores e guardião do convento, orientou os seus passos de acordo com os objetivos da ação apostólica em que se contava a propagação do espírito das Ordens Terceiras da Penitência. No entanto, devemos entender que a vida da Ordem já pulsava antes da data da sua constituição oficial. 
Na verdade, antes da cerimónia em que o padre guardião e outros religiosos missionários lançaram o “habito de terceiros a muitas pessoas de hum e outro sexo, tanto nesta villa como fora della” foi necessário um período probatório de noviciado que implicava um acompanhamento espiritual em permanência. Este devia ser o trabalho do Comissário visitador, cargo que, depois da primeira reunião, passaria a ser exercido, por Fr. Félix de Santo António, missionário que já tinha exercido como guardião do seminário.

De resto, o reconhecimento da importância desta função entrava no mesmo conjunto de preocupações em que estava a necessidade de elegerem o Ministro e mais cargos da Mesa do Despacho para que tanto as matérias espirituais como os assuntos com uma vertente mais material pudessem ser bem administrados. Por isso foi necessário dar existência legal à irmandade a qual, nos termos da primeira ata, publicada pelo padre Firmino Martins, tinha como mesários um Ministro – o abade de S. Facundo, Francisco de Morais Sarmento – e uma Ministra, um Vice-ministro, um Secretario, um Mestre – José de Morais Sarmento – e uma Mestra de Noviços, quatro Definidores, o Síndico, o Zelador do culto e, sinal que a irmandade contava com vários irmãos inscritos que residiam fora do perímetro de vila de Vinhais, um Zelador de Fora.
Em 10 de novembro de 1762, a escrituração em casa de José de Morais Sarmento de um “treslado da escriptura de nomeação de vincullo” à Venerável Ordem Terceira da Penitência de Vinhais revela-se muito importante porque o mestre de campo de auxiliares revelava que seu pai, António de Morais Ferreira, já falecido, “tinha instituído hum vinculo ou capela no terço de seus bens e tomara o dito terço no seu cazal de rais sito nesta villa e bairros della” sendo formado por casas que tinha em Vinhais e ainda por terras, linhares, prados, vinhas, castanheiros e outras árvores de fruto e sem fruto, além da tapada da quinta de Prada. Oneravam estes bens duas missas cantadas, “huma a Nossa Senhora de Belem no seu dia ou oitavario com sermão podendo ser (e) outra a São Joze”. Por vontade do instituidor, José de Morais Sarmento seria o primeiro administrador – razão pela qual, em 1743, se inventariaram os bens – com continuidade na sua descendência ou da sua irmã, D. Maria Arcângela de Morais Sarmento, residente em Lisboa, onde estava casada com António Vaz Coimbra. Importa considerar que António de Morais Ferreira, considerando a hipótese de interrupção na linha sucessória, tinha determinado, como se especificava nas notas do tabelião Manuel Ferreira Botelho, em 22 de julho de 1726, que José de Morais Sarmento nomeasse o vínculo “em hum lugar pio a favor da alma delle instituidor e de suas obrigaçoins”. Ora, como os dois irmãos nomeados “não tinham filhos nem esperança de os haver por serem ambos de muito provecta idade” entenderam que, entre outros lugares, deviam preferir a:

“Ordem Terceira da Penitencia novamente erecta no seminário apostólico dos reverendos mecionarios religiosos observantes do seráfico padre Sam Francisco desta villa assim por ser a mais apta ademenistração do referido vínculo e comprimento de seus encargos como por ter agora o seu prencipio a dita ordem e se fazer per si mesma merecedora de todas aquellas attençois que conduzem para o seu estabelecimento conservação e perpetuidade [...] e favoresser se com estas obras e exercícios esperituais a alma do sobredito instituidor e de suas obrigaçoins”.

Assim se nomeava o vínculo “para que pella pesoa de seus ministros e mais offessiais da meza pudessem ademenistrar pessuir e desfrutar” a Ordem Terceira. Para se completar a formalização do processo, enunciavam-se as obrigações dos terceiros de S. Francisco. Às duas missas cantadas com sermão, o administrador acrescentava agora novas imposições aos bens vinculados.



Uma parte respeitava a missas rezadas anualmente, “em seos propios dias”, em honra de Nossa Senhora da Purificação, Nossa Senhora da Encarnação, Ressurreição de Cristo, Nossa Senhora dos Prazeres, Crucificação, Santa Cruz de Maio, Santo António, Santa Ana, Nossa Senhora da Assunção, Nossa Senhora da Natividade, S. Francisco, Todos os Santos, Nossa Senhora da Conceição e ao Menino Deus; a outra parte onerava perpetuamente a Venerável Ordem com uma contribuição anual de 60 000 réis, “de simples e pura esmola”, que devia ser entregue ao síndico do seminário de Nossa Senhora da Encarnação para “as despezas da sãochristia hornatos e cultos devinos obras do mesmo seminario e sua reedificação ou para aquellas nessessidades que no mesmo seminario ocorrerem”. Cláusulas de vínculo de doação causa mortis que, mesmo quando se tratavam matérias de “pençois e incargos”, foram aceites sem objeções tanto pelo padre João Alves Ferreira, cura de Vinhais e ministro da Ordem Terceira, como pelos outros oficiais da Mesa.

Por dar cumprimento às disposições do seu pai mas também pelo empenhamento na fundação de uma instituição monástica, José de Morais Sarmento tornar-se-ia uma figura incontornável da vila de Vinhais. Razão para que a sua memória tivesse sido perpetuada em inscrições lapidares e imortalizado numa tela onde surge a meio corpo, com rosto emoldurado por cabeleira empoada em pose composta com punhos de renda e indisfarçável orgulho na cruz da Ordem de Nosso Senhor Jesus Cristo que lhe pende ao pescoço em fita de seda vermelha. Na luta com o esquecimento, uma filactéria com inscrição – atualizada após o seu falecimento – recorda a posição social e deixa ler a biografia essencial deste “Fidalgo da Caza de Sua Magestade Fidelíssima Cavalleiro na Ordem de Christo Sargento Mayor de Cavalaria Ajudante das Ordens do General de Trás os Montes”.
José Ferreira Sarmento foi outro vinhaense ilustre que exerceu as funções de ministro da Ordem Terceira. Nesta qualidade tratou das matérias expressas num “instrumento de doação intervivos”, com data de 13 de agosto de 1768, em que D. Maria Arcângela de Morais Sarmento, já viúva de António Vaz Coimbra, celebrou com o procurador que a Ordem Terceira tinha em Lisboa, doando “certos bens em Rebelle no termo de Vinhais que rendiam annulmente treze alqueires de pão” a favor da irmandade com declaração “que o rendimento dos bens doados aplicara a dita Veneravel Ordem para alumiar o Santíssimo Sacramento da sua Ordem e frades della”. Mas para que todas as dúvidas se dissipassem, esclarecia-se: “se entendera no convento dos padres missionários”.
Em setembro de 1775 o tabelião António Pinto Coelho deslocava-se ao seminário de Nossa Senhora da Encarnação de Vinhais para, na presença dos oficiais da Ordem Terceira, lavrar uma escritura de venda, a João Domingues e sua mulher, Isabel, dos bens doados e que constavam de uma quinta em Rebelhe, junto à povoação de Candedo.

Destinava-se o produto da transação, no valor de 105 000 réis, a garantir a sustentação da lâmpada do Santíssimo na igreja do seminário. Na mesma altura, na “caza do capítulo” da Venerável Ordem Terceira, celebra-se uma “escretura de juro” em que eram partes os mesmos compradores e os oficiais da Ordem Terceira, ainda por causa dos bens doados por D. Maria Arcângela. Em representação da Venerável Ordem, assinaram o documento Baltazar Ferreira Sarmento, ministro da ordem, o padre António de Morais Silva, mestre de noviços, o padre João Alves, definidor, Serafim Jorge, zelador e o doutor Manuel Fernandes Santos como procurador da Ordem.
Todavia, a nosso ver, a importância deste documento não se esgota no enunciado das cláusulas dos formulários notariais que as partes aceitaram e assinaram. De facto, julgamos que, nestes dois documentos, merece ser assinalada a assistência, na qualidade de testemunhas, de Domingos Álvares e Mateus Fernandes, mestres pedreiros naturais de Gontinhais, no termo da vila minhota de Caminha. Presenças que enfatizamos pela natureza do ofício praticado e pela relação de continuidade espacial entre a igreja, a casa do despacho da Ordem Terceira e o seminário, o que dá sustentação à hipótese dos mestres minhotos se empregarem nos trabalhos da obra da Ordem Terceira. A vizinhança da nova edificação com o sítio onde se escreveu o documento, pensamos, poderá justificar a chamada dos mestres pedreiros para testemunharem a formalização daquelas escrituras.
Ainda que muito se desconheça relativamente aos trâmites da empreitada, a obra poderia ter sido iniciada no último trimestre de 1772 ou no ano seguinte. Nesta perspetiva queremos destacar os termos de uma exposição, datada de setembro de 1772, dirigida ao Intendente Geral da Polícia, em que os mesários da Venerável Ordem Terceira identificavam a antiga casa de residência de José de Morais Sarmento, a mesma que lhes fora doada, onde:

“constituirão os supplicantes capella publica com authoridade do ordinário, e solemne benção do ditto sitio para as funçõens da mesma ordem que tem feito e vão fazendo na ditta capella, cantando se missas e celebrando se os officios pelas almas dos irmãos defuntos”.

Outras informações posicionam “as cazas” que foram do doador como estando “sós, sobre si, no fim do terreiro da portaria do convento das religiosas da mesma (vila), sem prospecto algum para a sua entrada, e terreiro”. Definindo-se como uma casa comprida, formavam o “principal das dittas cazas, trez salas em linha recta, ao andar da rua”. Além de outras serventias, havia uma capela com porta para a rua, sendo neste espaço que a Ordem Terceira desenvolvia algumas funções, nomeadamente religiosas, já que para esse efeito os mesários tinham pedido e obtido, desde 3 de setembro de 1766, licença do bispo D. Frei Aleixo de Miranda Henriques. 
Era nesta casa que morava o capelão da Ordem, apesar dos vários sinais de ruína. Mas algumas informações já apontam a vontade de se proceder à mudança da capela “e faze la de novo, com formalidade de igreja contígua ao ditto seminário”.

Para a concretização deste propósito é que formalizaram um pedido ao intendente da polícia, visto que tanto a capela como a casa fidalga deviam ser demolidas “para se aproveitarem dos seus materaes de pedra, madeira e telha por lhes ficar assim mais suave e menos custoza a nova obra”. Iniciativa que assinalava o princípio de um empreendimento arquitectónico de algum fôlego e que demonstra como nos seus começos a irmandade não contava com casa ou capela própria onde os assuntos pudessem ser despachados e os ofícios religiosos realizados. 
Por isso, o patrocínio dos missionários apostólicos seria, mais uma vez, oportuno, por autorizarem que, enquanto não tivessem casa do despacho e igreja, a irmandade se pudesse socorrer da Capela da Portaria do seminário para as sessões e da espaçosa igreja do seminário para as funções religiosas.
Uma lápide existente na cabeceira deste templo testemunha o falecimento do mestre de campo e cavaleiro da Ordem de Cristo, José de Morais Sarmento, ainda em 1762, confirmando-o como fundador do seminário e ainda da Ordem Terceira. Contudo, como veremos, a sua morte, ainda antes da irmandade poder abrir as portas da sua igreja e da sua casa do despacho, não significa que não tenha possibilitado a concretização destas obras uma vez que este notável vinhaense legou todos os seus bens à Venerável Ordem, incluindo uma cortinha e o terreno onde se implantou a casa com seu “pateo curral ou despejo das mesmas” e ainda uma capela com o título das Chagas de S. Francisco. Esta capela, “sita nas casas da mesma Ordem que foram de seu fundadorJosé de Morais Sarmento”, foi o espaço onde a Mesa reuniu em maio de 1769, em junho de 1770, em maio de 1771 e, novamente, em junho de 1772. Nos anos seguintes, verificar-se-ia o regresso ao seminário, tendo a ata de 1775 a particularidade de dar como “principiada a obra da sua igreja”, entenda-se, da Ordem Terceira, além de destacar o “fervoroso zello, trabalho excessivo, e dispêndio considerável” de José Bernardo Ferreira Sarmento, Ministro, que seria premiado com a reeleição. 
1953 - Um grupo de Alunos com a presença do Senhor P.e Ribeiro, sendo Prefeito o Senhor P.e Telmo
(Ponte Nova - Vinhais) - Foto:amigos-seminario-vinhais.blogspot.com
Mas só em 1780 surge a primeira notícia a dar nota da realização de uma sessão “nas casas e egreja da Veneravel Ordem Terceira da Penitência”, uma referência de grande significado por apontar a conclusão dos trabalhos da igreja e casa do despacho da Venerável Ordem. Podendo agora prosseguir no trabalho de aproximação da comunidade laica aos ideais do franciscanismo, os padres missionários continuaram a envolver alguns dos seus membros no esforço continuado de alargamento territorial e espiritual da confraria tanto mais que, desde 1777, o seminário obteve os privilégios, honras e isenções inerentes à proteção da casa real tanto mais que D. Maria I também se declarou filha de S. Francisco na sua Venerável Ordem Terceira da Penitência do convento de Lisboa.
Por isso, manteve-se a ligação estreita que unia o convento-seminário e a Venerável Ordem Terceira da Penitência. Nesta geografia relativamente periférica, os missionários de Brancanes não projetaram somente a catequização das almas e a difusão da herança do poverello de Assis também procuraram lançar raízes num terreno pobre e com uma assistência deficitária mas que, mesmo assim, era disputado por outras casas religiosas, igualmente desejosas de ampliarem a capacidade de influência.

Luís Alexandre Rodrigues

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