(colaborador do "Memórias...e outras coisas...")
Ano da Graça do Senhor de MCMLVI (1956).
Recém iniciado o ano lectivo de 56/57 eu sou despedido numa manhã de Outubro de casa na Caleja do Forte para a Escola do Bairro das Casas de Renda Económica sita à ilharga do perímetro da Estação do Caminho-de-ferro. Até aqui, tudo como dantes, Quartel General em Abrantes.
Inicia-se aqui o lapso de tempo mais preenchido da minha infância! Como e porquê?
Titulei esta crónica com o nome de uma firma comercial que tinha sede na Rua Almirante Reis, 37, 39 e 41. Era o local onde eu passava mais tempo, do que noutro qualquer local exceptuando a minha residência. Ora bem, dois irmãos meus mais velhos trabalhavam lá, um na casa de baixo e outro na casa de cima. Reparem na distinção entre os dois estabelecimentos que sendo complementares eram distintos. Coisas havia que eram comuns às duas, o telefone PBX, que era constantemente utilizado quer por uma quer por outra das casas. Existia um quadrado como que um paralelepípedo que alojava a caixa de uma máquina com botões e alavancas que tinha as letras do alfabeto e que o Manuel Chumbo em cima e o Amílcar Rocha em baixo diligentemente atendiam e após a informação recebida a chamada era encaminhada para o local certo dentro da estrutura que possuía um quadro de pessoal bastante largo mas que era também diligente e bem organizado!
Na casa de cima estava como que no posto de "Manager" um homem que me fazia voar nas asas da mais poderosa águia real para eu ver lá de cima um mundo de juventude, beleza e força.
Era o Ferreira que ainda jovem dos seus vinte anos possuía dois braços moldados pela força e destreza que punha na perfeição com que cortava com um diamante apropriado, o vidro que saia de uns divisores verticais onde as placas estavam colocadas para a mesa sólida que forrada com cobertores de lã serviam para amortecer eventuais movimentos menos precisos.
Imaginem um garoto de sete anos parado na parte exterior do balcão de uma loja de venda de materiais da construção civil olhando deslumbrado para o exercício de força e precisão executado por um corpo vibrante de força e composto de músculos que se movimentavam numa cadência repetida durante um período de tempo expondo-se à apreciação de quem estava presente numa harmonia que era a demonstração da beleza física que a arte só igualou em Miguel Ângelo quando ao acabar a estátua de David, olhando-a extasiado, lhe ordenou: -Fala! e a estátua quedou-se muda! Mas o Ferreira falava e eu dizia com voz de menino ao Ferreira que sorria para mim como se fosse o meu irmão mais velho: - És o que tens mais força e o que trabalhas mais. Como és capaz de fazer isso sozinho se são precisos dois ou três para fazê-lo quando não estás? O Ferreira ria-se da pergunta elogio do garoto e respondia: -É tudo uma questão de treino. Nem Charlton Heston ou Johnny Weissmuller conseguiram fazer a minha imaginação trabalhar a velocidade tão fantástica como o fez o Ferreira, que algum tempo depois casou com a Raquel e partiu para África.
Quarenta anos depois quando reencontrei a Raquel, viúva, foi do Ferreira e da sua força e gestos harmoniosos que falamos. Na casa de baixo o "Manager" era o Manuel João homem também avantajado, amigo do seu amigo mas de índole totalmente diversa. Bom "balcão, era no entanto temperamental q.b. Fora do serviço bebia e o seu carácter a dar ao violento retiravam-lhe o quase nada que faltava para ser um líder da equipa de elite que era o conjunto dos rapazes que trabalhavam no João Miguel.
Os proprietários eram o Senhor Manuel Pires que geria a casa de Cima e o Senhor João Miguel Pires, seu irmão, que geria a casa de Baixo.
Havia um terceiro, o Senhor Domingos que geria a casa do Zeive. Verdadeiramente eram eles as três faces da firma mas para mim naquele tempo eram menos importantes que os que eu elegia como meus heróis.
Seria fastidioso relatar minuciosamente todos os que trabalhavam nessa grande firma que naquele tempo sendo privada devia ser a maior da cidade em pessoal e movimento diário de caixa. Cito apenas aqueles de quem melhor me recordo, começando pela casa de cima: O Ferreira, Chumbo, Graça, Campos e o meu irmão Luís, estes na loja. O Rodinhas, pai do Alcino Pinto(Altafinni), será que ele se lembra? O Moura e o Zé Gomes, irmão do Rei-Preto. Estes trabalhavam na garagem, madeiras e bombas de gasolina. Havia um tal Cartucho que penso eu não era efectivo fazendo apenas mandiletes.
Na casa de Baixo: Manuel João, Arnaldo, Amílcar Rocha, o meu irmão Rui e o Rui Vara, o Toninho Gironde e mais tarde o Armando Fouçadas.
É uma lista elaborada sem precisão e que peca por defeito.
Ora aqui chegados cumpre-nos dar algum colorido à vida que se subentende, esta gente ocasionava. Devo incluir o Guarda livros, Senhor Coelho, Senhor Afonso, cunhado do Verbo e mais tarde o Domingos Serol.
Entrando na segunda folha de porta na casa de Baixo havia uma cadeira de madeira que encartava e onde sempre ou quase sempre estava sentado o Senhor Guerra, pai do Gancha. Era um livro aberto. Já de idade avançada era como um animador de pista. Dialogava com o Staff e a clientela na forma mais coloquial e divertida que eu achava inultrapassável.
Recordo que no fim do ano se fazia o balanço. A firma tinha escrita organizada e tudo se processava a seu tempo. Eram três ou quatro dias em que todos trabalhavam até à meia noite, uma da manhã.
Era tradição fazer-se um alboroque todas as noites de balanço. Normalmente faziam salada de bacalhau, P, que o Manuel João confeccionava com zelo e panache.
Falando em comes e bebes, aposta pai que não perdes, e era tradição usarem como panela ou tacho um penico dos que tinham à venda dependurados no teto. Era para afastar os mais esquisitos que quando viam o penico com aquelas belas lascas de bacalhau, azeite, alho e pimento espanhol se agoniavam por pensarem no que não deviam nem era verdade pois o penico estava ali como na hora em que sairá da fábrica.
A firma tinha ainda um armazém ao cimo da 5 de Outubro que recordo bem tinha para além de alguns produtos químicos devidamente separados, uma grande quantidade de urnas. Sem que me tenha apercebido de grandes cuidados na sua preparação final é certo que era negócio rentável.
Os rapazes sempre fizeram traquinices e ali não era excepção. Havia no armazém um santo de madeira que estava sem vestes. Quando se mexia num braço o outro movimentava-se também. Antigamente todas as imagens sacras tinham algo de encoberto e a esta depressa lhe foi descoberto o truque para assustar os incautos. Meteram o santo numa urna e depois de estar deitado na horizontal colocaram-lhe uma vassoura na mão que se movimentava logo que mexiam na outra. Estava colocada a urna na segunda prateleira a partir do chão. Quando o freguês ou algum visitante ocasional entravam para escolher o esquife o rapaz que fazia o atendimento levantava a tampa e porque tinha um fio de arame que prendia na mão e partia de dentro do forro da urna a segunda mão era accionada e a vassoura voava na direcção do cliente!!! Era vê-los fugir ! Muito me ri eu nesse tempo em que calhava eu andar por perto e notar que havia cliente no armazém das urnas! Tínhamos pratinho ao vê-los baterem com os calcanhares no cú sem olharem para trás e alguns recusarem-se a regressar mesmo depois de lhes ser demonstrada a brincadeira.
Desde mercearia, incluindo bacalhau até chapéus e fogões a gás e também bicicletas motorizadas na casa de Baixo e materiais de construção, ferramentas, tintas e vernizes, na casa de Cima, tudo se vendia naquela firma. Madeiras, cal e Ferro estavam nos armazéns da Guerra Junqueiro, que tinham porta para o lado do Picadeiro/Cemitério. Óleos e gasolinas na garagem que o meu pai edificou e que incluía lateralmente e também por cima as residências dos dois irmãos João Miguel e Manuel Pires.
Era um micro cosmo toda aquela azáfama em que se cruzavam num moto -contínuo sorrisos e gritos de raiva, salamaleques e indiferenças, suor e odores os mais diversos, gente honesta e menos honesta, mas sempre num contínuo latejar a força do trabalho que gera a riqueza que hoje ainda serve como pecúlio seguro e fácil de multiplicar aos herdeiros, que mais academicamente formados, sem necessidade de meterem a mão no garrafão da água raz ou na cesta dos pregos e sem terem que organizarem toda a logística que impunham as viagens ao Porto ou a Lisboa das camionetas, Krupp ou Scania que o Hélio conduzia, dia e noite num frenesim constante para todos, patrões, empregados e cidade no seu todo, pois que de dia e de noite a camionete chegava ou partia e à sua volta havia sempre os "estivadores " que tanto descarregavam o Gáscidla como um vagão de adubo dos Nitratos do Chile.
Já tinha 25 anos quando ouvi dizer pela primeira vez que havia pouca gente e o negócio estava fraco.
Quando abri a crónica disse que tinha começado para mim o meu tempo escolar e aqui devo dizer que a minha vida estava completamente preenchida partindo da ocupação do meu tempo de acordado. Nunca a minha mãe foi de Pieguices nem temerosa. Deu-nos liberdade para aprendermos na Escola e na Rua o maior segredo que o não é de como estar posicionado, pronto para a defesa e pronto para o ataque e que é apenas, respeitar os outros como queremos ser respeitados, e sermos cuidadosos como exigimos aos outros que o sejam. No meio-termo é onde se encontra a virtude.
Na Escola aprendi o que muito bem me ensinaram e nas ruas da cidade tive ocasião de aprender o que vi nos sítios onde vi trabalho sério e honrado.
No João Miguel Pires & irmãos vi e aprendi mesmo nunca havendo trabalhado lá como se servem os nossos interesses e os da comunidade - COM TRABALHO.
Das muitas vezes que entrei na Tipografia do Patronato/Casa de Trabalho reparei um dia numa máxima que estava colocada em escrito numa parede mais ou menos a meia altura, que rezava assim: Nada há de mais prejudicial aqueles que trabalham do que a presença daqueles que nada fazem.
Bragança 20/08/2018
A. O. dos Santos
(Bombadas)
P.S. Tentarei retomar o tema amanhã pois falta tanta coisa por contar. A rivalidade entre a Sacor X Shell e Padre Miguel X Cónego Ruivo para não falar de Bragança X Mirandela.
Assim sendo, até já. (Bombadas)
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