Tralhariz é uma das mais antigas aldeias da freguesia do Castanheiro do Norte, que pertence ao concelho de Carrazeda de Ansiães, distrito de Bragança.
O nome, pouco comum, segundo o abade de Baçal na sua extensa obra sobre Trás os Montes, deriva de talhariz, e este por calhariz e este por calhandriz, que é um sítio em que abundam calhandras, aves. No entanto já ouvi dizer que estaria especificamente relacionado com o papa-moscas cinzento, ave conhecida por "Tralhão"
A ocupação da zona é muito antiga, pois, nos territórios anexos à aldeia foram encontrados vestígios pré-históricos e castrejos, nomeadamente nos locais chamados da "Pala da Moura" e no "Monte das Chãs". Cerca do ano de 1900, no local da Quinta da Ribeira, ruínas do que teria sido uma vila romana. Normalmente, este conjunto era constituído pela "domus" ou casa senhorial, os edifícios relacionados com a exploração agrícola e um aglomerado de habitações, mais ou menos precárias para os trabalhadores, no entanto, apenas foram encontrados restos de colunas, algumas moedas e vestígios de paredes pintadas e chãos decorados com mosaicos policromáticos, possivelmente por a escavação não ter sido suficientemente exaustiva. As peças que foram levadas pelos arqueólogos, espero que se encontrem nos museus, ou outros lugares públicos, devidamente identificadas, para serem apreciadas pela população da região e do país, mas as ruínas que existiam no local, parecem ter-se perdido para sempre. Alguns historiadores referem que é possível que este núcleo tenha sido destruído durante as invasões bárbaras, no final do império romano, visto haver sinais de incêndio em alguns locais.
A aldeia atual, encontra-se na mesma encosta, mas umas boas centenas de metros acima do local destes achados, na margem esquerda do rio Tua, que vigiando-o sobranceiramente até à sua foz, no rio Douro.
Como todas as aldeias da região do alto-douro, cerca-se de vinhedos e olivais, que são a principal fonte de rendimento da população, em conjunto com a exploração de hortas dispersas.
Tem cerca de dois quilómetros de extensão. A poente, assinala-se um solar brasonado setecentista, construído possivelmente durante uma fase de expansão da aldeia, uma vez que se encontra numa zona mais ou menos periférica, o que só comprova a antiguidade da povoação. Outras casas importantes, embora em melhor ou pior estado de conservação, existem nas zonas mais centrais, como a Casa de São Jorge dividida por várias famílias (conhecida pela Casa do Pátio), ou a casa dos Botelhos, em avançado estado de degradação e descaracterização. O casario estende-se depois em direção a nascente e à sede da freguesia, pelo que era chamado o "caminho do concelho", agora Rua Central e que se subdivide em várias ramificações, os "canelhos", que dão acesso às casas periféricas ou aos terrenos de cultivo. Seguindo essa linha chegamos à igreja da freguesia, do patrono São Brás, no alto do monte que separa Tralhariz do Castanheiro.
Quando comecei as minhas deslocações para esta aldeia, há mais de trinta anos, a paisagem transmontana era-me completamente desconhecida. Conhecia os largos braços da ria de Aveiro, as verdejantes paisagens Gerês ou do Bussaco e as planícies infindáveis do Alentejo. O Douro, era na Ribeira do Porto ou na Foz, pelo que o verde dominante das margens do Alto Douro e as serras a perder de vista, que nos esmagam na nossa pequenez, deixaram-me sem palavras e ainda hoje me emocionam… foi um amor à primeira vista.
As casas humildes de xisto e as opulentas de cantaria, estão firmemente entrelaçadas ao logo da rua central, numa cumplicidade e convivência de séculos, fechadas sobre elas próprias, mas as suas gentes são de coração e braços abertos.
Não é de admirar, portanto, que não consiga evitar de retratar alguns destes aspetos fascinantes nos meus trabalhos e, embora os personagens sejam completamente fictícios, empreguei expressões regionais e modos de falar e agir de pessoas que conheci.
É, no entanto, na paisagem que pretendo focar a minha análise e em "Terras de Xisto" estão patentes estes retratos:
"Nos remotos montes do Norte do país, muito para trás deles, havia uma aldeia. Vista de cima, até não era pequena, com quase dois quilómetros de ponta a ponta. O casario estendia-se ao longo de uma sinuosa rua monte acima ramificando-se em pequenos becos. O ponto mais baixo da rua central era dominado pelo palacete setecentista onde vivia a família mais importante da região e no extremo mais alto pela Igreja tornada rica pelo fervor dos pobres e ostentação dos abastados."
A Maria Sobreira, a protagonista, era filha de um fidalgo que habitava uma casa senhorial afastada da aldeia e a irmã deste, numa outra de cantaria, no centro da povoação. Tratavam-se da Casa de Tralhariz e da Casa do Pátio respetivamente.
A escadaria de pedra do solar, onde caiu André Samões, existe, caminhei nela muitas vezes, não leva às cozinhas, mas sim à entrada principal e a alguns anexos de armazenamento.
Por último, o próprio solar é transformado numa pousada, tal como a "Casa de Tralhariz" é um aproveitamento turístico também.
Em "Lágrimas no Rio", a existência do túmulo de família no chão da igreja, não é exclusivo de Tralhariz, mas o certo é que na igreja da freguesia, apesar de removidos todos os vestígios dos antigos enterramentos, ainda existe uma campa com inscrição visível na capela-mor e pertença de um dos antigos proprietários do solar.
A igreja situa-se num ponto elevado e curiosamente acede-se por dois caminhos que entroncam num só: o "Caminho de Cima" e o "Caminho do Povo". Também em Tralhariz há a Rua Central que atravessa a aldeia em direção à igreja e à sede da freguesia e que é entroncado pela Avenida do Pinheiro Manso, mais recente e que representa o acesso norte do solar. O terceiro caminho referido nesta obra, é imaginado a partir de outra aldeia da mesma freguesia, Foz-Tua, localizada nas margens do rio Douro e a poucos quilómetros de Tralhariz. Da junção das duas localidades imaginei "São Cristóvão do Covelo", anichada à sombra do monte: "Sempre fora o “Caminho de Cima”, que nascia no lado norte do solar dos Montenegro, percorria a parte superior da aldeia, a meia encosta do monte do Covelo até entroncar com o “Caminho do Povo”. Este, passava em frente ao lado sul do solar, atravessava a povoação e encontrava, mais à frente, o “Caminho de Baixo”, que passava entre o rio Douro e as casas e conduzia à estrada principal"
No extremo poente da aldeia, temos uma vista maravilhosa do vale do Tua, ao mesmo tempo que somos assoberbados pela grandiosidade do espaço em redor e, à semelhança de Avelino Montenegro, também eu passei muito tempo, tisnado pelo sol ou mordido pelo frio, a observar a paisagem que não cansa e a ouvir a voz da natureza: "O nevoeiro deixara um ar húmido e frio, mas límpido. Conseguiam-se enxergar quilómetros, a partir daquele temível promontório, debaixo das nuvens negras e ameaçadoras. O vento, era a voz de Deus, que sussurrava pelo vale com o restolho dos pinheiros e sobreiros das encostas.
De chapéu bem enterrado na cabeça e cachecol a proteger o nariz e a boca, deixou-se ficar por ali, olhar perdido nos montes longínquos. O imponente Marão, no limite do horizonte, exibia as cristas cobertas de neve."
Se em "Lágrimas no Rio", abordei o tema da apanha da azeitona, no conto "Corrécio", a colheita é a das uvas, a vindima que dá vida à região do Douro. A aldeia transmontana espelha bem o velho ditado do povo "Nove meses de inverno e três de inferno" que eu pessoalmente pude comprovar nestes anos e que é referido nesta história: "O sol estonava as pedras da calçada e as paredes das casas causando ondulações de calor transmitindo uma sensação de irrealidade. A rua deserta, que levava ao centro da aldeia e à sua casa, era um forno que o cozia lentamente sem que ele notasse."
"Corrécio" envolve uma vez mais ricos e pobres que, embora incapazes de viver uns sem os outros, travam relações tensas e de reações inesperadas. A vida dos trabalhadores divide-se entre o trabalho no campo quase de sol a sol, a casa onde dormem e ceiam e a taberna, igual a tantas outras por esse trás os montes fora: "O interior era escuro e apenas umas poucas velas davam alguma luz às paredes enegrecidas por décadas do fumo da lareira que acendiam nos dias frios. Três mesas com os respetivos bancos corridos preenchiam o espaço em conjunto com o balcão sebento de milhares de mãos que pousavam moedas e levantavam géneros." No conto "Tudo em Jogo", também a taberna é descrita: "Naquele fim de tarde, a pequena e escura taberna estava enevoada de fumo de tabaco e as vozes tonitruantes de homens enchiam o espaço.
Por entre as mesas toscas de madeira, ladeadas de bancos corridos, o chão de lajes grosseiras estava manchado e sujo de anos de vinho entornado. Os candeeiros a petróleo, nas paredes de madeira enegrecida, travavam uma luta desigual com as trevas e o fumo que dominavam o estabelecimento. Uma enorme lareira crepitava e emprestava mais um pouco de luz bruxuleante ao ambiente."
De resto, em todas as histórias tentei falar um pouco sobre a vida dura no campo, que pode ser visualizada nos fantásticos painéis de azulejos existentes nas estações ferroviárias do Pinhão e Pocinho, na linha do Douro e que utilizei como capa do livro "Daqueles Além Marão".
E é assim que a minha imaginação vai sendo alimentada com estas paisagens e estas gentes maravilhosas que povoam esta região tão bela, mas que consegue ser tão agreste. Brevemente sairão mais histórias onde as paisagens transmontanas estarão representadas.
Para encerrar, coloco aqui as palavras de agradecimento que utilizei em "Lágrimas no Rio" e que acho que são bem aplicadas neste contexto:
"No alto de um cabeço coroado de granito e espraiando o olhar pela imensidão de montes e vales a perder de vista, é difícil não nos sentirmos esmagados pelo poder da Criação. As fragas ciclópicas, os olivais alcantilados e inacessíveis, as vinhas esculpidas pela tenacidade do Homem, são estes os adornos dos vales do Tua e do Douro e são a minha fonte de inspiração.
O meu agradecimento, vai para o Grande Arquiteto, que estava certamente inspirado, no dia em que criou uma das mais belas regiões do mundo."
By Manuel Amaro Mendonça
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Bibliografia
Baçal, F. M.-A. (2000). Memórias Arqueológico-Históricas do Distrito de Bragança. Bragança: Camara Municipal de Bragança.
Morais, C. (2014). Por Terras de Ansiães. Carrazeda de Ansiães: Camara Municipal de Carrazeda de Ansiães.
O Archeologo Português. (1900). Estação Romana da Ribeira (Tralhariz). Lisboa: Museu Ethnologico Português.
Queiroz, A. M. (2007). A Casa de Tralhariz e a Capela do Bom Jesus. Edições Universitárias Lusófonas.
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gostei muito da descrição, nunca tinha lido. Parabéns Manuel por quem tenho afecto, não fosse marido de uma amiga de infância, de quem também nutro muito afecto .Parabéns e um grande abraço Getta Vitorino
ResponderEliminarLi esta descrição que me levou em parte há minha doce infância, obrigada pelo miminho, a Casa de Tralhariz também pertenceu aos meus avós paternos e foi a casa onde o meu pai nasceu, passei muitas férias na Quinta da Ribeira pertença que foi da minha familia. Foi-me oferecido o livro sobre a Casa de Tralhariz e a Capela do Bom Jesus que relata com grande precisão a história de todas as familias que foram proprietárias. Um grande bem haja para si da Maria Tereza Frias Filipe
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