sábado, 13 de outubro de 2018

A Santa e a Leitoa

Por: Antônio Carlos Affonso dos Santos
(colaborador do "Memórias...e outras coisas..")
São Paulo (Brasil)
Prequeté, prequeté, prequeté! A charrete subia a rua principal. Na boleia, mascando um pedaço de bom fumo goiano, ia o Souza, um legítimo africano de quatro costados. Pouco abaixo de seus pés, entre as rodas murchas do pneu careca e à sombra, ia o Viajante; um querido, e legítimo canino puro-sangue tomba latas. Vez ou outra alguém gritava para ele: - dia Souza!, ao que ele apenas murmurava um “dia” de muito mau grado. 
O Souza trazia na parte traseira da charrete, enrolada dentro de um saco de aniagem, a Neguinha; uma leitoa que foi criada dentro de casa, junto com os gatos e os cachorros da casa do Souza. Pois é, a pobre da Neguinha estava indo para o sacrifício, ou seja, estava sendo doada pelo Souza ao Padre Tito, vigário de Passa-Tempo, sendo a pobre uma das prendas que seriam rifadas na quermesse. 
Três quartos de hora depois, e novo prequeté, prequeté, prequeté. Na boleia o Souza, olhos cheios de lágrimas a responder:  “dia”’, entre uma cusparada e outra , e entre um esfregar de olhos e outro. O Souza estava chorando!. Todos em Passa-Tempo gostavam do Souza, e ao vê-lo chorando, perguntavam-se: o que teria acontecido?. Parou a charrete na venda dos Signorini, e depois de meia garrafa da branquinha, contou para a plateia de compadres e o vendeiro, a razão do choro. Foi o seguinte o que contou o Souza: - “...e que ninguém aguentava mais a Neguinha. 
Todo dia ela tombava o balde de leite da Dona Zéfa, mulher do Souza; por três ou quatro vezes pisara com os pés enlameados a roupa branca  no quarador, brigava a dentadas com os gatos e cachorros da casa, que viviam escalavrados. Mas, ontem foi o fim da linha!. A Neguinha deu um verdadeiro “baile” no “Souza e família a quatro”: - não se sabe como, a Neguinha conseguiu subir até o telhado da velha casa!. Da cumeeira, choramingava feito criança nova: - tinha medo de descer! O Souza tentou pegá-la pelo rabo, usando uma escada, mas ela escapara vezes seguidas, e ainda de quebra, dera-lhe uma dolorida dentada na perna!. Imagine só, morder a quem a tinha alimentado desde pequeninha!. A Dona Zéfa, aos gritos, quando viu  a “sangueira”, desmaiou. Um vizinho do Souza, o compadre Titõezinho, quis ir chamar o Dr. Valdomiro para atender a  comadre Zéfa, no que foi impedido pelo Souza: -... ele é um dotô marca barbante, purisso mêmo num achô nem a duença da fia do cumpade Justino!. Mal acabara de dizer estas palavras, o Souza viu o compadre Titõezinho cair da escada, o que resultou na quebra das duas pernas do mesmo. Quando a filha menor, a Magali, tentou chegar perto da Neguinha, uma ripa se partiu e ela caiu com “Neguinha e tudo” sobre o forro de madeira, que também veio abaixo. Por azar, caíram sobre a cristaleira e quebraram todos os pratos e todos os copos; e até uma reprodução da foto de casamento da dona Zéfa com o Souza. A mesa com as doze cadeiras dispostas no meio da sala também não resistiu. Praticamente não sobrou nada da sala. Depois do ocorrido,  resolveram que iriam matar a Neguinha; que ela seria transformada em torresmo e linguiça no dia seguinte. 
Arranjaram um cantinho para a Neguinha dormir num canto da sala, agora sem os entulhos, ao lado do rádio Capelinha de quatro faixas e do quadro em feitio de televisão, com a imagem de Nossa Senhora Aparecida. Este quadro, que a Dona Zéfa trouxe de Aparecida do Norte, era o oráculo da família, portanto centro das orações; e estava em lugar considerado sagrado. 
Tudo pronto para a “matança” do dia seguinte: o Souza já deixou as folhas de zinco lavadas, as palhas no jeito (para sapecar a Neguinha); além das facas, bacias e um balaio para pegar a barrigada. Tudo pronto e decidido. E os Souza foram dormir quando ainda não era nove da noite! 
Duas horas da manhã: um grito horripilante ecoou no ar, acordando e atraindo inclusive a vizinhança. A Magali e o Souza encontraram a Dona Zéfa, olhos arregalados e sem voz; por incrível que pareça tanto ela, que havia dado o grito, quanto todos os demais que chegaram presenciaram a cena chocante: a Neguinha estava de joelhos ao pé da santa!
- Daí a estória do prequeté, prequeté, prequeté, com o qual comecei o “causo”: onde já se ouviu falar que alguém fizesse linguiça e torresmo de uma leitoa tão católica?


Antônio Carlos Affonso dos Santos – ACAS. Nascido em julho de 1946, é natural da zona rural de Cravinhos-SP (Brasil). Nascido e criado numa fazenda de café; vive na cidade de São Paulo (Brasil), desde os 13. Formou-se em Física, trabalhou até recentemente no ramo de engenharia, especialista em equipamentos petroquímicos.  É escritor amador diletante, cronista, poeta, contista e pesquisador do dialeto “Caipirês”. Tem textos publicados em 8 livros, sendo 4 “solos” e quatro em antologias, junto com outros escritores amadores brasileiros. São seus livros: “Pequeno Dicionário de Caipirês (recém reciclado e aguardando interesse de editoras), o livro infantil “A Sementinha”, um livro de contos, poesias e crônicas “Fragmentos” e o romance infanto-juvenil “Y2K: samba lelê”.

Sem comentários:

Enviar um comentário