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SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

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COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

terça-feira, 27 de novembro de 2018

O XANECA

Por: António Orlando dos Santos (Bombadas)
(colaborador do "Memórias...e outras coisas...")
Alto de corpo, seco de carnes e rosto comprido, O Xaneca era já adolescente, ainda eu era menino. O nome era de guerra e apenas uma corruptela de Alexandre, nome magnífico que associamos ao grande da Macedónia, filho de Filipe, e como que se cola aos assim chamados, para o bem e para o mal.


A amizade comigo partilhada tinha origem em duas simples causas distintas, a saber: éramos vizinhos e ambos adeptos do Sporting. Para aquele tempo, ambas as causas eram importantes, mesmo atendendo à relativização que se impunha, pois não devendo ser-lhe atribuído valor elevado, já que na rua, onde ambos nascemos, havia outros rapazes que eram também vizinhos e lagartos. A verdade é que éramos de facto amigos.
Trabalhava o Xaneca de moço auxiliar no antigo cinema Camões, local e fábrica de mil sonhos de menino que, quando lhe surgia a ocasião de possuir três escudos para comprar um bilhete para a geral, corria à bilheteira que abria às 15.00 horas e pedia à menina Zulema, filha da tia América, o respetivo ingresso.
Os filmes mais populares, naquele tempo, eram os de cowboys, também os de guerra e os do Cantinflas, aos quais Mário Moreno dava um ar de Charlot mexicano que nos fazia chorar de riso. O Ben Hur, com Charlton Heston no protagonista e sendo realizador Cecil B. de Mille, tinha acabado de ser estreado e fazia sucesso.
Indissociável do Xaneca, era um privilégio, que eu lhe atribuía, poder ver as fitas sem ter de pagar bilhete. Às vezes, quando falava comigo, dava-me autenticas lições de sabedoria, adquirida ao visualizar nas películas os atores mais diversos, quase sempre americanos, que usavam nomes que, sendo pronunciados em Inglês, me transportavam para a zona do fantástico mundo onde não havia Zés, nem Antónios, nem sequer Alexandres, mas sim Alexanders que era assim como coisa mais fina e convincente. Falava-me de Jonh Wayne que havia gravado A Desaparecida e Rio Bravo, duas películas que fizeram sucesso, de Errol Flynn, de Anthony Quinn ou de Hamphrey Bogart, que em Casa Blanca tinha chegado ao pico da sua carreira. A banda sonora incluía a canção As time goes by, da qual eu não entendia a letra mas adorava a música. Havia milhentas outras películas que nos davam heróis compartilhados pelos dois, como coisa fantástica que o facto de ele poder ver sem restrições nos dava vantagem sobre os outros que apenas os mencionavam como artistas o que me parecia pouco para quem gostava tanto de cinema. Quanto mais não valia chegar à Praça da Sé e escrutinar o grande cartaz que o Cantaria, que era engraxador, bombeiro, e já tinha sido jogador de futebol do Desportivo, pontualmente colocava a anunciar a próxima sessão da noite e poder identificar o Errol Flynn e a Olivia de Havilland, que contracenavam em Todos morreram calçados, onde a sorte do General Custer e de Cavalo Louco, chefe índio, feriram a batalha épica de Little Big Horn, que foi a passagem mais heróica da guerra para o alargamento do território que ainda não era de todo dos EUA.
Mas, mas como nunca há bela sem senão, o Xaneca foi influenciado pelas imagens de celulóide e, copiando Humphrey Bogart no filme Casa Blanca, cedo começou a fumar. Foi exatamente o cigarro que concorreu para o acontecimento mais dramático que marca a amálgama de recordações da minha infância e tem o Xaneca como ator principal de um drama real, onde o cansaço e o cigarro se encarregaram, certa noite, de marcar com fogo o resto da vida deste promissor rapaz e de lhe imprimir na alma uma tristeza que o acompanhou para o resto da sua vida.
Vivia no Bairro de S. João de Deus, logo acima da linha do caminho de ferro, pois este ainda passava por aquilo que é hoje a Avenida Sá Carneiro, numa casa de pedra e cimento que seu pai construíra com heroísmo e não menor orgulho. Habitava com sua mãe e mais alguns familiares que agora não recordo. O facto é que, como a casa era pequena para todos, construíram um anexo em madeira no logradouro em frente à casa, para o Xaneca dormir. Enquadrava-se harmoniosamente no conjunto da casa e passou a ser o seu dormitório. Fizeram-no porque ele chegava tarde, vindo do cinema que terminava às 11.00 ou 11.30 e, tendo ele o encargo de preparar o espaço onde, no dia seguinte, passaria outra película, só chegava a casa por volta da 01.00 da manhã. Não incomodava, assim, os que já estavam dormindo havia duas ou três horas.
No anexo, o Xaneca tinha a cama de dormir, uma mesa de cabeceira, uma cadeira e um tapete. Nas paredes estavam coladas separatas do Mundo de Aventuras com atletas do Sporting, a solo ou em grupo, e também com atletas da seleção de hockey em patins que tinha como vedetas Jesus Correia e outros consagrados hoquistas vindos de Moçambique que eram o nosso orgulho. Havia também uma imagem da atriz Sophia Loren que preenchia o seu imaginário feminino.
Nessa noite terrível, o Xaneca entrou no anexo e fechou a porta, tendo deixado as chaves na fechadura. Antes de se estender na cama, acendeu um cigarro que pensava fumar antes de adormecer. Era já hora adiantada e o cansaço já começava a tomar conta e a embrutecer-lhe o cérebro. Adormeceu com o cigarro aceso na mão. O torpor do sono fez o cigarro cair para o tapete e a tragédia consumou-se num ápice. Quando o instinto de conservação o despertou, já as chamas dominavam a construção de madeira. Levantando-se, ainda foi até à porta e tentou abri-la, mas as chaves caíram-lhe da mão quentíssimas devido ao calor que reinava no aposento. Não conseguiu encontrá-las. Deram o alerta os vizinhos mas, quando os bombeiros chegaram, o anexo era um monte de brasas e o Xaneca, embora vivo, estava completamente queimado.
Vimo-lo dias depois quando o Dr. Pires, pai, autorizou as visitas. Numa cama do Hospital da Misericórdia, Enfermaria de S. José, dentro de uma gaiola de madeira, vimos o Xaneca completamente coberto com algo roxo que presumo que fosse hidratante. Cobria o conjunto medico-sanitário uma espécie de oleado para evitar a poeira e prevenir infeções.
Estas imagens perduram até hoje em mim, vividas como no momento em que o meu cérebro as registou. Eram do meu amigo feliz que, estando vivo, havia sido marcado pelo infortúnio e que carregaria consigo para o resto da vida as sequelas que nas mãos eram mais visíveis e mais condicionavam a sua passagem por esse purgatório que a fatalidade lhe impôs.
Não se rendeu o Xaneca! Ele era feito da massa com que foram feitos os seus maiores. E, não se rendendo, continuou o Xaneca a dar-nos outras lições que já não tinham a ver com índios ou Cowboys com a história de E tudo o vento levou, interpretada por Clark Gable, Leslie Horward e Vivian Leigt, que fazia o papel de Scarlett O`Hara. Sendo um clássico do cinema, era também uma paixão para ele, pois tinha Clark Gable que interpretava o papel de Rhett Butler. Os dedos do Xaneca ficaram encolhidos e colados à parte próxima da palma da mão. Nunca mais se abriram!
Foi posteriormente contínuo na Delegação de Saúde, ao tempo da direção do Dr. Lico Lopes, o Dr. Jota. Transferiu-se para o Cachão no tempo do Complexo Agro-industrial, sendo amigo pessoal do Eng.º Camilo Mendonça. Quedou-se solteiro, ele que era um sonhador, e que possuía uma quase adoração por mulheres bonitas. Tinha retratos na parede de Grace Kelly e de Liza Minelli. Passou a vida solitário, sem queixumes e sempre com o rosto descoberto como só os homens honrados o podem fazer. Sem culpas para expiar mas sem mulheres e filhos, foi homem amargurado por razões compreensíveis.
Passaram anos, fui para a tropa, regressei, fui para Inglaterra e, algumas vezes quando em férias, encontrava-o sentado num banco, no largo do Correio em frente à CGD. Vi-o algumas vezes caminhando, levemente fletido para a frente, na rua que parte da antiga estação do caminho de ferro e vai até ao Bairro da Mãe d´Água onde, penso, ele morava. Era sempre com alegria que nos encontrávamos. O seu sorriso era de alguma satisfação por ver-me e eu sempre correspondi ao seu diálogo de amizade que invariavelmente nos levava às velhas referências – Sporting, caleja e cinema.
Há cerca de dois anos passei no meu carro em frente da igreja da Misericórdia. Vi parados os amigos da Caleja – Armandinho Gaioso e o Zé da Amélia Chingla. Vi também a minha prima Rosa do meu tio Bocage. Estacionei o carro e vim à igreja pois eu sabia pelos sinais que alguém da Caleja jazia ali defunto. Ao entrar, vinha saindo o meu amigo Carlos Gonçalves, um dos nossos, que me atirou:
- Já te ia marcar falta!
Perguntei:
- Quem morreu?
- Não sabes? Foi o Xaneca e o funeral é já hoje, às onze.
Fiquei e chorei as lágrimas que correm pelo rosto antes de decidirmos que um homem não chora. A minha cabeça começou a doer-me. Eram tantas as recordações – Caleja, Sabor, Sporting – mas mais amizade que tudo o resto. Dei graças a Deus por me ter levado por ali naquela manhã. Segui o funeral até ao cemitério onde o sepultaram em jazigo de família. Algumas lágrimas mais. Voltei para pegar o carro. No caminho, tive a certeza de que só morremos pela ausência física. Quem tem amigos, família e conhecidos está sempre presente no pensamento de uns e outros. Às vezes, nas poucas ocasiões em que nos encontrávamos, dizia-me: “ como estás, Toninho? Há tempos que não apareces. Lembro-me bastante de ti, amigo. Começo a sentir o inverno que pousa nos meus ombros”. Pressentimento? Sim, penso que sim.
Terminou a vida do Xaneca, homem que arrastou uma cruz pesada, sem recriminações nem lamurias. Eu continuo a tê-lo como o amigo com quem partilhei o tempo mais belo das nossas vidas, a juventude que a primavera não trará.
Que Deus o recolha no Seu seio.






A. O. dos Santos
(Bombadas)

1 comentário:

  1. Tenho presente na memória, caro amigo Toninho, a maior parte dos episódios que tão bem descreves; sobretudo o mais dramático que lhe condicionou imenso a vida. Todos na família era-mos seus amigos; contudo o meu irmão Neca, (que era sensivelmente da idade dele) tinha, como tu tiveste, uma relação mais próxima do XANECA, Paz à alma deste nosso amigo e conterrâneo.

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