Henrique Nunes nasceu por 1620 na vila de Colmenar, arredores de Madrid e ali foi batizado. Foram seus pais Francisco Nunes, de Torre de Moncorvo e Ângela da Veiga Nunes, natural de Viseu.(1) Pelos 11 anos vivia em Jaén, onde seu pai o terá iniciado na religião judaica e onde também foi crismado, como verdadeiro cristão. Posteriormente, a família ter-se-á mudado para Ciudad Real, terra da Andaluzia.
Em 1635, Henrique Nunes deixou Castela e veio para Portugal, a viver em casa de seu tio paterno, Jorge Nunes,(2) em Vila Flor. O tio Jorge era casado com Branca Dias e o casal não tinha filhos. Com eles vivia Inês Dias, sobrinha de Branca. Muito naturalmente seguiu-se o casamento de Henrique Nunes e Inês Dias a quem, por certo, foi logo destinada a herança do mesmo tio, falecido poucos anos depois.
Breve se apresentava ele como um mercador “de tenda grossa” e homem de cabedal. Muito viajado e frequentando as mais diversas feiras, ele conhecia muita gente e andava em deslocações constantes “pelo reino, com seu trato de comprar e vender e dar provimento à sua loja que tem na dita vila”.
Ao findar da década de 1640, as comunidades hebreias de Trás-os-Montes sofriam um verdadeiro arraso, por parte da inquisição. E, baseados nos testemunhos de António Lopes Álvares, do Mogadouro, Diogo Lopes, de Chacim e Francisco Brandão, de Torre de Moncorvo, presos em Coimbra, com quem Henrique Nunes se terá declarado seguidor da lei de Moisés, os inquisidores decretaram a sua prisão. Deu entrada na cadeia de Coimbra em 17.3.1651, ali conduzido pelo familiar Manuel Coelho de Azevedo, de Torre de Moncorvo.
Correu o seu processo com bastante celeridade, pois ele entrou logo a confessar seus erros e denunciar seus cúmplices. Saiu no auto-da-fé de 14.4.1652, condenado em cárcere e hábito perpétuo, significando isso que, no regresso a Vila Flor, tinha de se apresentar vestindo o sambenito e com ele ir à missa aos domingos e outros dias santos.
Era uma situação humilhante e Henrique, como outros mais, procurava escusar-se o mais possível ao cumprimento da pena, metendo-se em constantes viagens de negócios. Obviamente que os olhos dos esbirros da inquisição, beatos e padres que em Vila Flor havia, andavam em cima dele e a notícia chegou a Coimbra. E dali foi expedida uma carta que, na rua pública foi entregue ao destinatário, o padre Domingos Pimentel, conforme ele próprio escreveu na resposta:
— Hoje, 3 de agosto (1652), recebi uma carta de Vossas Mercês em que se me ordena faça e obrigue a Henrique Nunes, desta vila a cumprir sua penitência, na forma da dita carta. Tanto que me foi dada, logo fiz diligência por ele e achei ser partido para Lisboa há dois dias. A dita carta fica em meu poder e tanto que ele vier, farei toda a diligência com a pontualidade que farei todas as mais que da parte do santo ofício me forem mandadas…(3)
Henrique Nunes só voltou a Vila Flor quase um ano depois, a crer na informação do padre Pimentel, que dava para o facto uma explicação. É que a carta do santo ofício lhe foi entregue em público, quando estava com outras pessoas e na ocasião lhe exigiram um registo de entrega da mesma. E isso fez logo levantar a suspeita de que a carta respeitava ao comportamento de Henrique Nunes. Este terá sido avisado e, por isso, concluía o dito padre, em mais uma missiva para a inquisição:
— Se ausentou há coisa de 11 meses, entrando e saindo ocultamente desta vila, sem eu o poder admoestar e que fizesse o termo. E porque me constou que não trazia a penitência imposta por VV MM, nem tão pouco acudia às missas, antes vendia fazenda de raiz sem necessidade e se desfazia da tenda que tinha, publicando seus amigos que ele se ia para Castela, e confessando-o a sua própria mulher e filhos.
Logo que pôde, o padre não esteve com meias medidas. Arranjou testemunhas a confirmar que Henrique estava a preparar a fuga para Castela e, no cartório do notário apostólico de Vila Flor, padre Gaspar de Meireles Almeida, mandou fazer um “auto de fuga”(4) que enviou para Coimbra.
Em simultâneo, também o sambenitado escreveu aos senhores inquisidores uma longa exposição dizendo, nomeadamente:
— Vindo ele suplicante do Vimioso, onde andou cobrando certas dívidas, no mesmo dia, o padre Domingos Pimentel e seu tio Belchior Rodrigues Pimentel, juiz ordinário, por serem seus capitais inimigos, e bem o mostram, pois sem ser cura nem pároco, amotinando o povo, com o dito seu tio prenderam a ele suplicante, sem lhe dizerem a causa nem porquê.
Com esta carta mandava uma certidão assinada pelo padre António Gil, cura da igreja matriz, em como ele cumpria a penitência indo à missa com o sambenito, confessando-se e comungando como obrigação cristã. De resto, justificava alguma falta escrevendo que “lhe é necessário algumas vezes ir a Lisboa, Porto, Lamego e outras partes comprar fazendas em que trata, para sustentar sua mulher e família, porque de outro modo perecera a pura necessidade”. E queixava-se de possíveis testemunhos falsos do padre Pimentel e “outros muitos seus apaniguados, que são capitais inimigos dele suplicante” e terão dado informações falsas aos senhores inquisidores. E a súplica que fazia era como que um desafio ao tribunal: que o mandassem soltar e deixar ele ir a justificar-se e a provar a sua inocência ou então que mandassem um comissário da inquisição a averiguar se tinha alguma culpa e merecia algum castigo, pois o padre Pimentel não merecia confiança.
Pragmáticos, os inquisidores ordenaram ao padre Pimentel que mantivesse o preso por 8 dias e que da cadeia fosse levado por 2 oficiais de justiça à igreja em dois dias santos a ouvir missa, vestido com o sambenito. As custas com os mesmos oficiais de justiça seriam pagas pelo réu.
Henrique Nunes tinha a cobertura do padre Gil mas, para maior eficácia e menos escandalosa se tornar, certamente de combinação entre ambos, Henrique queixou-se ao vigário-geral da comarca dizendo que o padre Gil, cura da igreja, se negava a passar-lhe a certidão que, naquele ano, precisava mandar para a inquisição. Claro que o padre Gil logo a passou “em cumprimento do despacho do reverendo vigário-geral”, em 27.4.1653.
Nota-se bem que entre o padre Pimentel e o padre Gil haveria uma luta surda mas intensa. E se aquele era um executor de ordens da inquisição, este teria mais apoio no paço arcebispal de Braga, pois fora nomeado cura da igreja matriz, lugar antes ocupado pelo outro. E agora, a propósito, saboreiem um naco de prosa enviado pelo padre Domingos para a inquisição em 9.8.1653:
— Suspeitando ele (padre Gil) que eu tinha ordem de VV. MM. para lhe fazer cumprir sua penitência, o meteu, domingo passado, de madrugada, no coro para de lá ver a missa e depois lhe dar certidão. Disto sabem os padres António Correia, Gaspar Meireles, Manuel Correia e António Luís, que iam ao coro cantar a missa como de costume. E o dito que serve de cura, lhe proibia que fossem ao coro porque tinha lá fechado Henrique Nunes; e eles padres porfiando, com provança de força, abriram a porta e acharam dentro Henrique Nunes, a um canto do coro, coberto com a capa. Este clérigo António Gil já em outro tempo, tirando o vigário-geral desta comarca, Paulo Castelino de Freitas, uma inquirição secreta, meteu um Diogo Henriques Julião debaixo de uma escada, de onde ouviu tudo…
Nota - No próximo texto veremos o desenvolvimento do processo de Henrique Nunes.
Notas:
1 - Ângela da Veiga, em 1629 morava em Viseu, sendo presa pela inquisição de Coimbra. Saiu no auto-da-fé de 17.8.1631. ANTT, pº 9969. Para além de Henrique, Ângela e o marido tinham 5 filhos vivos, todos casados, todos morando em Castela.
2 - Henrique Nunes tinha mais 2 tios paternos casados, moradores em Torre de Moncorvo, 1 em Vila Flor, 1 em Vilar Torpim, 1 em Ciudad Real e 1 em Cidade Rodrigo.
3 - Inq. Lisboa, pº 2747, de Henrique Nunes.
4 - Testemunharam neste auto: Manuel Alvarenga, homem nobre, de 58 anos; Sebastião Coelho Meireles, filho do anterior; Francisco Borges de Lemos, homem nobre, morador em Freixo de Espada à Cinta, capitão de ordenanças e Gregório Montes Coelho, homem nobre, capitão de infantaria. Veja-se um pouco das declarações deste último: — Sabe que o dito Henrique Nunes se deixou penhorar nas casas de viver e outra mais fazenda, por quantia que bem pudera remir com móveis e o não quis fazer; de onde se presume que é conluio e que os homens da nação desta vila, quando se querem ausentar do reino, se deixam executar, como poucos dias há, fez um Manuel Mendes da dita vila, que se foi para Castela.
António Júlio Andrade / Maria Fernanda Guimarães
in:jornalnordeste.com
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