São Paulo (Brasil)
(colaborador do Memórias...e outras coisas)
Desde criança, Nenzinha tem um sentimento de culpa. A responsável por esse sentimento era uma cadelinha que ela tinha quando criança, numa fazenda pros lados de Angicos, no Rio Grande do Norte.
Quando ela tinha cinco anos de idade, seus pais, mais ela e um irmão de sete, embarcaram num pau-de-arara, com destino ao sul maravilha. O pai vendeu por apenas uns trocados, a velha palhoça, onde moravam, sete galinhas e dois porcos magros e seis cabritos (um macho e cinco fêmeas). O sítio ressequido, de dois alqueires de terra, quase nem foi levado em conta.
Da chegada em São Paulo, bairro do Brás, ela só lembra do frio e da fome, depois de comer só farinha de aipim por seis dias consecutivos; ainda que nos primeiros dois dias a farinha era acompanhada por rapadura, que se acabou, pois o pai da Nenzinha, toda vez oferecia às outras pessoas do caminhão, e quase sempre, um ou outro aceitava, pois tinham ainda menos para comer; pelo menos eles trouxeram um saco de farinha...
Mas, voltando ao sentimento de culpa: quando a Nenzinha, sua mainha e o painho, junto com o Edinilton subiram no caminhão, que os aguardava numa estradinha a uns dois quilômetros da palhoça onde viviam, sua cadelinha, a Baleia, veio correndo atrás. Ela latia e abanava o rabo em desespero. Nenzinha chorava e pedia ao pai para apanhar a Baleia, mas ele, impassível, fingia nem escutar; talvez prevendo as dificuldades que enfrentariam na viagem e no início da vida, numa cidade grande. De objetivo mesmo, ele tinha apenas o endereço de um primo em segundo grau, o Raimundo; que morava na Vila Carrão, na Zona Leste da cidade. Milhões de vezes, durante a viagem, ele abriu, leu e tentava decorar o endereço, enquanto imaginava como seria sua vida em São Paulo.
Enquanto isso, Nenzinha via a Baleia perseguindo o caminhão; primeiro correndo rente ao caminhão, depois ficava um pouco para trás, talvez com as patas feridas pela terra seca e pelas pedras do caminho. Também deveria estar cansada e sedenta. Depois de uns dez quilômetros, a Baleia foi ficando para trás. E quanto mais a baleia se afastava, mais a Nenzinha sentia uma dor no peito; ela gostaria de pegar sua cadelinha, dar-lhe água da quartinha e uns afagos. Hoje, aos trinta anos de idade, moradora no Itaim Paulista, na zona leste, ela tem uma cadela de nome Baleia, que nem de longe supera em amor o que sentia por aquela que ficou pelas estradas da vida.
O pai de Nenzinha tornou-se pedreiro e conseguiu fazer uma casinha para a família e, aos trancos e barrancos, é o provedor da casa. A mãe adquiriu uma tosse forte durante um daqueles invernos de São Paulo, com frio de quatro graus; acabou por contrair pneumonia e morreu, quando Nenzinha tinha doze anos de idade. O irmão, Edinilton, estudou e cursa tornearia mecânica no SESI do Brás e pretende ser engenheiro. Uma pena que ele já esteja com trinta e dois anos de idade. (Parece que vai se casar o ano que vem). Nenzinha tem dois filhos, um de quatro anos e outro de dois; casou-se com o filho do primo do pai, que os abrigou nos primeiros tempos de Sampa.
Antônio Carlos Affonso dos Santos – ACAS. É natural de Cravinhos-SP. É Físico, poeta e contista. Tem textos publicados em 8 livros, sendo 4 “solos e entre eles, o Pequeno Dicionário de Caipirês e o livro infantil “A Sementinha” além de quatro outros publicados em antologias junto a outros escritores.
Nota do Autor:
Significado de Pau de Arara:
Pau de arara é o nome dado a um meio de transporte irregular, que embora em número infinitamente menor, ainda é utilizado no Nordeste do Brasil, em pleno Século XXI. Consiste em caminhões adaptados para o transporte irregular de passageiros. Os caminhões paus de arara foram bastante utilizados durante o êxodo de nordestinos para o sudeste do país, principalmente para o Estado de São Paulo o termo refere-se também ao passageiro que utiliza esse tipo de veículo e, de uma forma genérica, refere-se também a todos os migrantes nordestinos.
O termo pau-de-arara, segundo Câmara Cascudo, tem a ver com caminhoneiros que vendiam pássaros, ilegalmente, e os transportavam de caminhão. Instalavam várias barras (de madeira ou ferro)no sentido transversal da carroçaria do caminhão, fechavam as laterais e cobriam a “carga”. Ali, sobre as barras, colocavam as araras, os papagaios, os periquitos, as jandaias e maritacas, que ficavam pousadas sobre as barras, ainda que fizessem enorme alarido; tal como as pessoas, com a diferença de que, a invés de barras, têm bancos de madeira. O alarido, no entanto, é bastante parecido.
Sobre a carroceria do veículo são colocadas tábuas, que servem de assento, e a instalação de uma lona como cobertura a proteger das intempéries completam a adaptação deste para o transporte. Suas origens remontam aos tempos em que não havia outras formas para o transporte de maiores quantidades de pessoas, além de estradas bastante precárias, na Região Nordeste, além da instalação, no país, da fábrica de caminhões FNM, que popularizaram este veículo de carga, capaz de vencer os terrenos mais difíceis.
Os paus de arara foram bastante utilizados durante o êxodo de nordestinos para o sul do país, mormente o estado de São Paulo – ganhando também, entre os sulistas, as acepções do passageiro destes veículos e, de forma pejorativa, às pessoas nordestinas.
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