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SOBRE O BLOG: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira..
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blog, apenas vinculam os respetivos autores.

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019

Oh meu rico S. João

Homem, por Luís Borges
Ao meu espírito, como aos de toda a gente, dá-lhes às vezes para fazer ventolas no passeio dominical. Sentida a guinada, desvio-me, como não pode deixar de ser. Ainda bem, se o imprevisto é consolador. Ir à Serra da Estrela e parar no caminho para o comes-e-bebes. O sol a derreter o vale apinhalado como a um caçoilo de resina. Odores bravios. Deixei os amigos a devorar futebóis na TV e esgueirei-me por uma caleja ladeirenta, bem acompanhado por um reguinho de água. De onde conheço este velho cuja sombra de castanheiro solitário me interrompe? E ali se fez o diálogo com fundo de águas em torcicolos rumorejantes.

– Era aí nesse buraco. A cascata fazia-se aí. Fazia-a eu. Eu e os outros.

Reparei no vão de uma escada de pedra, que se prolongava debaixo de uma varanda de madeira já carcomida. A calceta era recente, mas o fraguedo teimoso aflorava junto aos pardieiros.

– E já não se faz porquê?

As mãos dele regressavam na prata dos olhos. Os tempos eram outros. Outros? – perguntou ironicamente um pardal que pousava uma velha nuvem no beiral do silêncio que nos rodeava. A ruinha – disse-me – era uma estrumeira, do cima ao fundo. O estrume é necessário – sorriu por dentro. Mas, antes do S. João, a gente varria a merdice e ia roçar umas carradas de mato. O chão ficava como novo. E trazíamos também ramos de árvores para a cascata. O buraco limpava-se muito limpinho. Até luzia antes da luz. E trazíamos ainda um molhinho de ervas – alfazema, poejo. belas-luzes e amargaças – e outro mais ancho de rosmaninho e alecrim, aí está, para a fogueira. Que não era aqui, é o eras, mas num terreiro acolá, mete-se por aquela canelha – disseram as mãos.

– E a fogueira já não se faz porquê?

O cacaréu do tempo a cair, a partir-se, e o azeite a subir às palavras, mais leve do que elas.

– Durante uns anos a fio era eu e mais dois, que já morreram. Íamos por essas casas e juntávamos uns tostões. Para o azeite, para as grisetas, e para o papel de seda das lamparinas. Luminárias coloridas que se suspendiam de arames esticados sobre a viela. O padre, já sabia, tinha de emprestar o S. João, olha se não emprestas. E à tardinha, depois de o sino deitar ao vento as ave-marias, rapazes e raparigas iam em farrancho animado buscá-lo ao altar.

“Oh meu rico S. João, / a tua capela cheira a cravo, / cheira a rosa, cheira à flor de laranjeira”. E também: “Ai orvalhadas, orvalhadas” , etc. “Ai repapoila, repapoila”, por aí fora.

Oh meu rico S. João, a tua capela cheira a cravo, cheira a rosa, cheira à flor de laranjeira.

– E os rapazes e raparigas já não vão porquê?

O velho levantou-se do poial. De onde conheço eu este homem, este espelho incrustrado no fundo da memória, à entrada de cada túnel?

– Aqui é onde era a cascata. Ao fundo e aos lados, está a ver?, ramos de árvores, quase só pinheiro, pinheiro com pinhas, pois. E vinha de lá uma rampinha aos degraus para que toda a gente pudesse ver o efeito, ora aí está. Ao alto, o S. João mais o seu cordeirinho, em cima dum penedo entre jarras de flores. E água a correr por uma calha de madeira, desde aquele canto até este: sumia-se na estrumeira e lá ia com Deus pela rua abaixo. Aqui, vê?, era costume prender um anho, que ficava muito bem, mas, quando lhe dava para berrar, cuidado lá com ele, tínhamos de o levar ao dono, aí está.

– E a cascata já não se faz porquê?

O ouriço do tempo a abrir-se. No buraco cabiam mais coisas, muitas, a lua, estrelas, sonhos, anjinhos gorduchos, até brinquedos e ovos para o leilão. E no larguinho, a meio da canelha, saltava-se à fogueira. Que rico cheirinho te botavam as ervas, amigo! Metia-se cá dentro. E dançava-se. Gente rapioqueira. “ Estas é que são nas saias, / estas saias é que são. / São dançadas e bailadas / na noite de S. João “. E, às tantas, quando a gente não contava, podia aparecer uma rusga com bombos e ferrinhos. “ Fui ao S. João a Braga, / de Braga fui ao Bonfim / e vi tudo embadeirado / com bandeiras de cetim./ E há-de ser, há-de ser e há-de ser: / as raparigas é que hão-de vencer. “ Ora queriam vencer as raparigas ora os rapazes, já se vê.

– Olhe, eu nunca fui a Braga nem ao Bonfim, por falta daquilo com que se
compram os melões, aí está. Mas lá é que o S. João deve ser uma festa de truz. Melhor do que aqui, muito melhor.

– Melhor porquê?

– Ora por que há-de ser? Dinheiro, dinheirinho…

A resina da tarde acendia-se nos gestos daquele homem que talhava os mistérios da vida, as nostalgias da vida. O sol reduzido ao bruxuleio duma lamparina.

– O balão, pois, ah, o balão só o fazíamos subir lá pràs tantas, meia-noite, que era prò pessoal não arredar pé, aí está.

Quando acabou o futebol televisivo, os meus amigos foram-me descobrir com o simpático ancião, a beber junto de um pipo e a comer broa com coelho do monte, sabor a carqueja. Ganhámos, pá, ganhámos – conclamaram, arrotando a uma cerveja maluca. Mandei-os bugiar.




António Cabral
antoniocabral.com.pt

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