Contam as escrituras que, com a tomada de Jerusalém pelo rei da Babilónia, muitos judeus foram para a Pérsia onde uma judia chamada Ester conseguiu casar com o rei e obter regalias para o seu povo, naturalmente. Isso despertou a inveja de muitos persas e o ódio do primeiro-ministro, Aman, que planeou a morte dos judeus. E tirou sortes para escolher o dia em que seriam sacrificados. Calhou em 13 do mês de Adar. Mardoqueu, líder dos judeus e tio de Ester, seria o primeiro a morrer. A rainha Ester, contudo, levou o rei a mudar de ideias. Assim aconteceu e quem foi sacrificado foi Aman e os seus partidários, que morreram às mãos dos judeus, ascendendo Mardoqueu ao poder. Seguiram-se dias de festa entre os judeus, naturalmente, a Festa da Rainha Ester.
Claro que, antes, a rainha Ester recorreu ao Deus de Israel para obter as graças do rei persa e pediu ao povo que jejuasse com a mesma intenção. Nasceu assim o Jejum do Purim, palavra hebraica que significa “sortes”. Mas vejam-se as próprias palavras, tiradas da Bíblia:
— Assim foi o dia 13 do mês de Adar e no dia 14 descansaram, transformando-o em dia de festa. Os judeus de Susa reuniram-se nos dias 13 e 14 e no dia 15 descansaram, transformando-o em dia de festa. É por isso que os judeus do campo, que vivem nas aldeias, fazem do dia 14 do mês de Adar um dia de alegria, banquetes e festa, e trocam presentes. Para os judeus das grandes cidades o dia festivo é o dia 15 do mês de Adar, quando mandam presentes aos seus vizinhos.(1)
Não coincidindo o calendário judaico com o gregoriano, resta dizer que a data do Purim varia entre fevereiro e março, calhando este ano nos dias 20 a 22 de Março.
Vejamos agora como os cripto-judeus de Trás-os-Montes celebravam a festa da rainha Ester e o jejum do Purim. Antes de mais, refira-se que a palavra Purim raramente aparece no seu vocabulário, geralmente referindo o jejum da rainha Ester. Uma das exceções aparece no processo de Gabriel Serrão, de Vinhais, acusado por Diogo Mendes, de Miranda do Douro de ser ele o mestre e ensinar aos cristãos-novos de Vinhais as festas judaicas, a começar pela “festa do Purim e o jejum da rainha Ester”.(2)
Depois do jejum do dia grande (Kipur) o da rainha Ester será o mais referido, em todas as comunidades de Trás-os-Montes. Veja-se, por exemplo, o processo de Branca Henriques do Vale, cristã-nova de Chacim:
— Disse que em fevereiro haviam de jejuar o jejum da rainha Ester, que será de três dias e três noites, vestindo na primeira camisa lavada e estando em todos eles sem comer nem beber senão na última noite e que haviam de rezar a oração do padre-nosso sem dizer Jesus ao final e ofereciam os ditos jejuns ao Deus do Céu.(3)
De modo idêntico se expressava Afonso Manuel, mercador de Vinhais que “jejuava o jejum da rainha Ester e era de espaço de três dias e quando queriam pedir alguma coisa a nosso senhor jejuava três dias com suas noites sem comer senão na derradeira noite”.(4) Ainda em Vinhais, Beatriz Álvares, foi denunciada por dizer “que vinham aí os três dias de jejum da rainha Ester, os quais se haviam de jejuar todos três”.(5)
Podíamos multiplicar as citações em processos de Bragança ou Moncorvo, Miranda ou Vila Flor… provando que todos eles tinham ideia concreta do jejum da rainha Ester que caía por altura do carnaval (fevereiro-março) e se prolongava por três dias.
Embora falando em “festa do purim” ou da rainha Ester, não encontramos nos mesmos processos qualquer descrição festiva. Certamente porque, à semelhança dos judeus exilados e sob o domínio de Amon, eles se sentiam também vivendo no exílio, sujeitos ao domínio tirano da inquisição. Não tinham, pois, qualquer motivo para festejar. Ou fá-lo-iam em segredo, sem dar nas vistas, pelo que o caso não é referido nos processos?
Caso extremamente significativo aconteceu em Miranda do Douro, ao entardecer do dia 25.9.1640, primeiro dia de uma novena que os cristãos faziam na sé catedral em honra de N.ª Sr.ª do Rosário, cuja festa celebravam no primeiro domingo de outubro. Ao fim da novena, chefiados por dois padres, um grupo numeroso foi em arruada à Rua da Costanilha, à porta de Francisco Henriques e Ana Rodrigues, com pretexto de que a sua filha Ângela se vestira de Rainha Ester, engalanada com cordões, argolas e pulseiras de ouro, em manifestação clara do orgulho judeu. Tocando bombos e matracas, os arruaceiros gritavam:
— Viva a Senhora do Rosário e Morra a Rainha Ester!(6)
No rito sefardita o primeiro dia do Purim é de jejum. No segundo dia é obrigatória a leitura da “Meguilah”, que é o Livro de Ester. Ao terceiro dia trocam-se presentes e mandam-se ofertas a casa dos mais pobres. Nesse dia come-se e bebe-se com fartura e expressa-se toda a alegria. É o dia da festa, por excelência.(7)
E em Trás-os-Montes como a festa da Rainha Ester seria festejada pelos judeus e marranos?
Não temos informações concretas e precisas. No entanto, algumas descrições apontam nesse sentido. Por exemplo, em Carção, onde o padre Francisco Fernandes, “muito da fação dos cristãos-novos” foi denunciado por usar paramentos religiosos em festas pagãs. Terá sido na festa da Rainha Ester, que vem antes da Páscoa? Veja-se a denúncia:
— (…) Ter algumas vezes ataviado os filhos em festas com ornatos da igreja como são cortinas, capas e asperges, cortinas de sacrário, véus de ombros e dos cálices; e tanto assim que querendo certo clérigo dizer missa em domingo de páscoa da Ressurreição, não achou véu para cobrir o cálice, senão um de cor preta, porque os de branco e vermelho os tinham os filhos dos cristãos-novos (…) De contrário, em festas profanas esgotou a igreja dos ornatos melhores que nela se achavam, tanto assim que um sobrecéu da Senhora do Rosário, que era o melhor que havia na igreja, andou servindo de cobertura de um carro, puxando a ele uma égua pelas ruas do lugar de Santulhão; e das cortinas dos altares se fizeram calções ou saias para vestir alguns cristãos-novos de soldados à turquesa…(8)
Outros processos sugerem que, na festa da Rainha Ester, os marranos de Trás-os-Montes usavam celebrar com máscaras e fazer “jogos de burraço” e “pandorcadas”.
Seria o caso de Quintela de Lampaças onde, no último quartel do século de 500 se criou a “confraria do burraço” cujos rendimentos eram utilizados em “comezainas, bebedeiras e jogos de burraço”, em atos e celebrações promovidas para ridicularizar a ordem social cristã da aldeia, fazendo barulho pelas ruas, com brados de denúncias de situações mais ou menos parvas e de papalvos.(9)
Sobre as “pandorcadas”, diremos que, apesar das proibições e castigos impostos por vários bispos da diocese de Miranda do Douro, elas sobreviveram até ao limiar do século XX, nomeadamente em Vilarinho dos Galegos onde se fazia a “pandorcada” em honra de “S. Membrum”. A propósito, escreveu o Dr. Casimiro Moraes Machado:
— A função era absolutamente profana e brejeira, constando de intermináveis bailados e copiosas libações. Dançava-se ao ar livre, em volta do povoado e em redor da igreja, ao som do pandeiro, em ensurdecedora algazarra. Para que tudo fosse ao contrário e tudo se amesquinhasse, as mulheres cavalgavam os homens. É tradição que uma mulher gastou sete pares de chinelos de liga numa única dessas tropelias. Das muitas quadras habitualmente cantadas no decorrer da ronda, pude colher duas que arquivo:
Senhor S. Jerónimo
Que estais no altar,
Livrai que a peste
Nos venha ao lugar.
Senhor S. Miguel,
Louvado ele seja;
Que saiu borboleta,
Da nossa igreja.(10)
Notas:
1 - Livro de Ester, 9:17-19.
2 - Inq. Coimbra, pº 6791, de Gabriel Serrão.
3 - Idem, pº 7105, de Branca Henriques do Vale.
4 - Idem, pº 7512, de Afonso Manuel.
5 - Idem, pº 7517, de Beatriz Álvares.
6 - ANDRADE e GUIMARÃES – Judeus em Trás-os-Montes a Rua da Costanilha, pp. 151-153, Âncora Editora, Lisboa, 2015.
7 - HA-LAPID, n.º 17, de fevereiro – março de 1929: — Costuma-se fazer um banquete onde se deve comer e beber mais que ordinariamente e estar alegremente. É obrigação mandar às famílias amigas dádivas e presentes de comidas.
8 - Inq. Coimbra, pº 8016, de Domingos Rodrigues Galo, documentos anexos. Ver: ANDRADE e GUIMARÃES – Carção Capital do Marranismo, p. 172, Associação Cultural dos Almocreves de Carção, Associação CARAmigo, Junta de Freguesia de Carção e Câmara Municipal de Vimioso, 2008.
9 - MEA, Elvira Cunha de Azevedo – A Inquisição de Coimbra no século XVI, a Instituição, os Homens e a Sociedade, pp. 464-465, Fundação Eng.º António José de Almeida.
10 - MACHADO, Casimiro Henriques de Moraes – Mogadouro um olhar sobre o passado, p. 137, Mogadouro, 1998.
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