domingo, 27 de dezembro de 2020

BRAGANÇA - A CASA E A RUA. CONTINUIDADES E RUTURAS

Além da informação topográfica da planta de 1762, algumas das injunções do rol dos arruamentos de 1762-1764, realizado para o lançamento da décima, revelam-se, a vários níveis, uma fonte de grande utilidade. Desde logo porque permitem a constatação da existência de linhas urbanas compostas por cheios e vazios, numa sucessão irregular em que os cheios correspondem às volumetrias do edificado, quase sempre sem grande desenvolvimento vertical, enquanto os vazios correspondem a espaços livres que, em regra, se configuram como logradouros ou quintais particulares. Verificação que, no mesmo âmbito cronológico, era comum no quadro geral do urbanismo do País, porque as cidades mantinham um convívio estreito com as atividades mais características do mundo rural.

Plano urbanístico de 1960 para a Cidadela de Bragança, nunca concretizado

Quando, num outro trabalho, publicámos a lista das casas, destacámos os nomes de alguns proprietários como Francisco José de Morais Pimentel, Inocêncio de Sousa Coutinho e João da Costa e Gabriel Pissarro. Mas o que mais nos interessa é a possibilidade de nos aproximarmos da configuração física dos edifícios que, em geral, apresentavam um espaço destinado a loja dos animais e, no que respeita ao desenvolvimento em altura, não ultrapassavam os dois andares. Porém, o panorama habitacional era dominado pelos edifícios com um andar, cujo número era bastante superior aos que apresentavam um piso térreo ou dois andares. A Rua Direita revelava-se como um caso de exceção, pelas 61 casas de dois andares e 37 com um andar.
No quadro que se segue, relativo ao ano de 1762, a quantificação da “realidade construída” em duas das principais artérias urbanas, contando-se as casas existentes na parte do sol e na parte da sombra, ilustram-se algumas das mudanças que ocorreram até aos nossos dias, uma vez que o espaço com aptidão construtiva seria paulatina e integralmente ocupado, enquanto os edifícios, com poucas exceções, receberam mais um ou dois pisos. Com as alterações dos modos de vida, alguns equipamentos e funcionalidades que respondiam às exigências de um certo quotidiano, fossem os fornos, os lagares, os celeiros, os palheiros, as acomodações para os animais, foram sendo relegados dos arruamentos principais ou das suas proximidades e o seu espaço aglutinado pelo casario que se reformulava ou pelo ordenamento municipal que tendia a regularizar os pavimentos e alinhamentos das ruas e das travessas. Nas margens do Fervença conservar-se-iam as estruturas quase elementares de alguns moinhos, enquanto as casas das tinturarias, na sua simplicidade construtiva, acompanharam a indústria da seda, uma atividade económica que conheceu períodos de grande fulgor mas que, pelos anos de 1886-1887, nas palavras de Joaquim de Vasconcelos, já não fazia mover em Bragança “nem um tear nem um torno”.


A antiga relação da casa com o quintal, espaço essencial para depósito de matérias orgânicas domésticas, tendeu a transformar-se à medida que as posturas municipais adotavam os avanços da investigação médica e se colavam com maior ou menor ênfase à ligação de algumas epidemias com os preceitos de higiene e às teorias pneumáticas. Da mesma forma, a construção de canos gerais e outras empreitadas que potenciaram a transformação da fisionomia dos arruamentos acentuou a repetição de certos valores de uniformidade.
Mesmo assim, vários fatores concorreram involuntariamente para impossibilitar a repetição de elementos e de volumes de forma a que da sua conjugação pudesse resultar uma toada uniforme. De algum modo, o casario da Rua Direita e da Rua do Espírito Santo, na sua diversidade morfológica, traduz uma certa realidade sociológica do mundo urbano, onde pontificavam o militar de patente, o eclesiástico, o notário, o comerciante, o que se ocupava na administração e um ou outro mesteiral.
Seria esta multiplicidade de funções que iria definir o novo caráter da rua, enquanto os seus complexos mecanismos, em boa medida, continuavam a determinar as formas como o espaço se estruturava. Submetendo-se a processos de regularização, a Cidade superava as curvas de nível que, na longa duração, aproximavam algumas das suas linhas de circulação dos processos do mundo rural. Ao mesmo tempo, articulavam-se as fachadas invólucros da habitação, da loja e da oficina, apesar de progressivamente se ir cavando o fosso de separação entre a função residencial e as variantes do mundo do trabalho. Como a arquitetura monumental e erudita nunca alcançou os cumes da preponderância, a rua reduziu-se a uma sucessão de fachadas de modesto delineamento, ainda assim com força para se afirmar como um espaço de espetáculo e como um espaço de classe, embora já muito distante dos antigos arruamentos profissionais. Contudo, essa sucessão de fachadas configurava-se como um ecrã em que se refletiam práticas e funções e, simultaneamente, como uma cortina que separava o espaço público e o espaço privado.

Trasfogueiro utilizado nas cozinhas de Bragança

Com raízes nas duas centúrias anteriores, algumas das casas largas e baixas em que dominam as linhas 
horizontais, compostas fundamentalmente de rés-do-chão e andar nobre, com várias portas, janelas de fachada e balcões, continuavam a definir com grande evidência o traçado de algumas artérias. Todavia, eram casas nascidas numa outra realidade. Já na Rua Direita, por exemplo, os parâmetros de mentalidade configuravam uma tipologia diferente, caracterizada pela sobreposição de sobrados e pelo crescimento em altura, mesmo quando a largueza de espaço era sofrível. Da valorização dos solos e do posicionamento comercial resultaria a casa alta e estreita, pois as dimensões do seu prospeto principal eram muito inferiores à sua profundidade.
Contudo, retenha-se que entre estas duas tipologias cabiam outros delineamentos, ainda detetáveis em várias ruas, sendo até possível surpreender o burguês endinheirado a instalar-se em antigos solares da fidalguia ou a procurar enraizar o risco da sua nova morada num figurino que entronca numa variante da casa nobre. No primeiro caso, o patriarca Sá Vargas adquiriu o palacete da família do bispo Veiga Cabral, enquanto no segundo exemplo olhamos para o edifício da Rua Direita que a Câmara adquiriu para instalar os seus serviços.
Nos dois exemplos, o plano térreo seria afeto a atividades lucrativas, como uma tipografia no primeiro exemplo, ou comércio indiferenciado no segundo exemplo. Uma característica que, de forma progressiva, seria adotada pela maioria do casario dos arruamentos comerciais, já que reservavam o rés-do-chão para o estabelecimento comercial. Podendo ter ou não uma porta independente, como o comerciante gostava de dormir sobre a mercadoria – “a propriedade é um direito sagrado e inviolável”, escrevia-se na Constituição de 1822 –, a sua residência ocupava os pisos superiores, fazendo-se o acesso por uma porta e escadaria de madeira que podia ter a sua nascença no próprio estabelecimento ou então, a fórmula mais corrente, a partir de uma entrada independente.
Exteriormente, estas casas não apresentam atributos decorativos que mereçam um destaque especial, até porque alguns dos materiais usados no crescimento das paredes – a cantaria não se usava na arquitetura civil com muita frequência –, pedras de xisto de pequenas dimensões, ligadas com barro, não consentem o pormenor do lavor. Além do madeiramento e escadas interiores, a madeira, sobretudo de castanho, usava-se ainda na molduragem de portas e janelas, nas varandas que, muitas vezes, corriam em todo o alçado ou no cornijamento, a que se procurava dar balanço para permitir o avanço do beiral da cobertura. O gosto pelo efeito de serra, consequência das incisões que, com alguma profundidade, se praticavam nas pontas dos caibros que suportavam os beirais, correspondia à continuidade, em versão popular e de baixo custo, das cachorradas que ainda perduram em alguns edifícios medievais. Todavia, como os apontamentos de tipo naturalista estão sempre ausentes, os efeitos estéticos circunscrevem-se à animação sugerida pelos contrastes de sombra e de luz. Como aconteceu em todo o território nacional, aqui e ali também se surpreendem algumas cornijas que incorporaram o sistema amouriscado, alcançado pelo progressivo avançamento das telhas que se sobrepõem umas às outras em número variável.
Nas aberturas de iluminação, paulatinamente, as antigas gelosias ou adufas foram cedendo o lugar ao processo de guilhotina que os ingleses trouxeram para Portugal com a intensificação das transações vinícolas.


Ao mesmo tempo, generalizava-se a utilização do vidro. Estas frontarias raramente ostentavam mais de duas janelas em cada piso, permitindo uma boa iluminação e arejamento interior. Este desiderato também era alcançado pelo uso frequente de sacadas ou varandas que, com exceção das casas mais pretensiosas da fidalguia, tinham sempre uma estrutura de madeira de castanho, o material em que também se produziam os balaústres.
A recusa dos efeitos torneados é um exemplo de como a simplicidade de linhas foi a marca maior destas peças. Uma característica que, em regra, foi respeitada nos raros modelos em que o ferro foi material eleito.
Embora a maioria das varandas se virasse para as ruas secundárias, não significava que o pitoresco dos vasos de flores que as engalanavam não suscitasse desconfiança sobre um ou outro transeunte, especialmente por parte dos que tivessem sido apanhados pela trajetória descendente da massa de terra, folhas verdejantes e pétalas coloridas.
Claro que o desenvolvimento vertical destas casas obrigava à utilização de materiais mais leves, prática visível nos muros das divisões interiores. Por isso, era frequente o recurso a uma estrutura de madeira que suportava o fasquiado ou um enchimento de barro misturado com palha e até caroços de milho.
Interiormente, os compartimentos e a sua amplidão eram muito condicionados pela frente da casa, sempre menos que a sua profundidade. Infelizmente, temos alguma dificuldade na aproximação ao quotidiano doméstico dos residentes. Importa, por isso, que a investigação prossiga de modo a determinar, por exemplo, se a família de um militar graduado usava a sala da mesma forma como a usava um advogado, um padre ou ainda um comerciante.
O conhecimento de peças de uso diário, decorativas e artísticas ou do mobiliário, mesas, camas, arcas, armários, bancos, cadeiras, escrivaninhas, mesas de jogo, por exemplo, permitirá interessantes conclusões sobre o pulsar urbano da vida familiar e social nestas residências, em que o paradigma da vida burguesa se pautava por padrões cada vez mais distantes dos antigos comportamentos que muito valorizavam as façanhas de espada na mão.
Fosse como fosse, a Constituição de 1822 traduzia bem o ambiente do novo ciclo do País, quando estabelecia que “a casa de todo o português é para ele um asilo”, um reconhecimento explícito de que a esfera do mundo privado só em casos excecionais podia sujeitar-se à devassa.
No entanto, a Cidade não se reduzia a este tecido mais lustroso e influente. Outras áreas havia em que a maioria dos moradores não dispunha dos meios de fortuna que bafejavam alguns dos seus conhecidos e vizinhos como os residentes da Rua Direita.
A maioria do casario que acompanhava a corrente do Fervença ou o que, por exemplo, se mantinha no interior das muralhas do castelo refletia, além do modo de vida, os limites da ambição dos seus moradores. Nesta perspetiva, parecem-nos muito ajustadas palavras as palavras do médico Artur Martins Morgado, quando, logo nos começos do século XX, analisava um certo tipo de casario e as condições em que viviam os seus ocupantes.
Aqui se vê como as palavras do médico, na sua crueza e talvez com algum excesso, descreviam o ambiente doméstico de muitas famílias bragançanas, não muito diferenciado do que era possível surpreender em muitas regiões do País, especialmente do Norte e do Centro. Ao mesmo tempo, justificava-se a afirmação de Bruno Zevi para quem a arquitetura era, entre todas as artes, a que mais sofria os condicionamentos das condições económicas e sociais. O panorama traçado para o parque habitacional da Vila, correspondente à generalidade do casario existente no interior do castelo, perduraria durante mais algumas décadas.


Como se fosse uma ilha, os moradores do castelo partilhavam o espaço público com os soldados alojados nos quartéis de Caçadores n.º 3, militares que, na maioria dos casos, não eram olhados pela fortuna com aquela desprendida benevolência que leva os homens a sentirem-se membros de uma Pátria. A partir do momento em que o regimento que ocupava os quartéis do castelo deixou a Cidade, acentuou-se a situação periférica da Vila relativamente ao conjunto da tessitura urbana. Talvez por isso, nos anos de 1960, alguns setores de opinião acarinharam um projeto que, se tivesse sido concretizado, varria completamente as habitações existentes no interior da muralha do castelo. Esta ideia marcava um tempo e implicava conceitos, designadamente no âmbito do património, cujos fundamentos seriam profundamente abalados por novas estruturas de pensamento que propunham abordagens inovadoras relativamente aos modos de habitar as cidades. Em consequência, em vez de ser olhado como um fardo para a tesouraria das instituições, o tema do património adquiriu foros de cidadania uma vez que, mediante uma gestão moderna, se pode tornar uma fonte de riqueza material e de desenvolvimento para as cidades e regiões que o promovem.

Título: Bragança na Época Contemporânea (1820-2012)
Edição: Câmara Municipal de Bragança
Investigação: CEPESE – Centro de Estudos da População, Economia e Sociedade
Coordenação: Fernando de Sousa

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