O Teatro Municipal de Bragança, para além de ser uma das obras mais representativas da arquitetura contemporânea trasmontana, alberga duas das suas melhores expressões plásticas, a nível da produção cerâmica, da autoria de Graça Morais e de José António Nobre. Não iremos debruçar-nos sobre a temática tratada por Graça Morais, mas unicamente sobre a proposta apresentada pelo segundo artista, mais conhecido pela sua atividade na área da escultura, e que aqui revela uma outra faceta, a de ceramista, que nos conduz a uma questão prévia, reveladora da sua qualidade estética: a sua versatilidade na disciplina por excelência, o desenho.
Na Sala dos Atos do Município, os dois painéis cerâmicos propõem-nos uma temática de leitura fácil para todo aquele que sempre viveu ligado às raízes do Nordeste Trasmontano, mas simultaneamente de grande complexidade, já que mergulha na intemporalidade do consciente coletivo da comunidade rural.
Foram quatro as propostas elaboradas pelo artista (Estudos A, B, C e D), sendo interessante vermos como, recorrendo à figuração de elementos incontornáveis (a casa, a igreja, a velha, o velho, o pastor, o lavrador, os pauliteiros, os tamborileiros, os mascarados), a sua interpretação é tão distinta.Destes quatro estudos foi escolhido o quarto (D), parecendo-nos ter sido selecionada a versão mais completa e esteticamente de melhor qualidade. A ligação profunda entre o Homem e a Terra perpassa nos dois painéis, onde a comunidade rural transmontana é retratada, respeitando-se o ritmo cíclico que pauta a sua existência. A forma como se estruturam as duas cenas, cuja leitura é autónoma, mas também interligada por elos de conexão não percetíveis numa primeira análise, revela uma dicotomia de grande significado, surgindo em ambas, como elemento omnipresente, os cardos ligados à terra.
No primeiro painel são colocados de forma simbólica elementos vitais para a comunidade rural: a Casa, pontuando a necessidade da existência do espírito gregário para os humanos, onde a lareira, como nos tempos ancestrais, era o núcleo em torno do qual se desenrolava o quotidiano, representando a promessa da continuidade da própria vida; a Igreja, cuja função sacralizadora possibilita a permanência de práticas propiciatórias oriundas dos tempos pagãos, em que a Terra-Mãe, na sua contínua renovação, era a força vital que permitia a sobrevivência; a Velha, a matriarca, detentora da sabedoria, garantia da transmissão da tradição às gerações futuras; as atividades rurais associadas às figuras do Lavrador e do Pastor, e dos animais ligados às suas vivências (o macho, o burro, a vaca, os rebanhos, o cão); os Pauliteiros, com as suas danças, ligados aos momentos lúdicos que amenizam as agruras da vida penosa que sempre caracterizou o ciclo anual das aldeias.
No segundo painel, é representada a simbologia mágica das máscaras e do poder que lhes é conferido desde tempos imemoriais. Os Caretos de Podence, os Mascarados de Ousilhão, o Chocalheiro da Bemposta, o Carocho de Constantim, a Velha de Vila Chã da Braciosa, são outras tantas ligações a esse passado pagão, onde os rituais do solstício de Inverno eram celebrados pelas populações. A associação dos mascarados a ritos de iniciação, o seu aspeto demoníaco potencializado pelos ruídos estridentes e ensurdecedores dos chocalhos, cuja bárbara dissonância provoca o terror, marca a passagem da morte invernal para a vida ciclicamente trazida pela Primavera.
O espectro da Morte, associada aos longos meses de letargia, era afastado pelo poder dos mascarados ligados ancestralmente à força fecundante da Terra-Mãe que, através das colheitas, trazia a promessa da continuidade da vida aos humanos. A máscara, na sua dualidade, entre o passado e o futuro, marca no presente das gentes transmontanas um momento onde os sentidos imperam, onde o terror afasta o mau-olhado, propiciando a fecundidade feminina através da invocação de forças poderosas desconhecidas simbolizadas pelo princípio fálico, com a promessa da renovação da Natureza onde todos os seres vivos são convidados a participar.
Ao terminarmos esta nossa visão sobre as obras da autoria do escultor José António Nobre, recordamos as suas palavras, de julho de 2011: “A Arte é sempre pedagógica, tem uma leitura própria, e as coisas dependem como as pessoas as sentem dentro de si”. “A Arte não pode ser feita com pressa, tem de ser sentida.”
As esculturas que analisámos, bem como os painéis cerâmicos, fazem-nos hoje compreender melhor a obra do artista. Com efeito, em todos os exemplos que escolhemos, pudemos verificar que têm um cariz pedagógico, uma vez que possuem implicitamente uma mensagem muito forte, não perdendo, porém, uma leitura específica, dependendo também da interpretação daquele que a vê. A Arte tem, no entanto, de ser sentida e essa leitura não pode nunca ser feita na superficialidade da vida dos nossos dias, mas sim indo buscar à nossa matriz mais profunda, às nossas raízes, a verdadeira explicação da nossa existência. Esta é a forma, “sem pressas” como José António Nobre reproduz a vida e a paisagem que o acompanham desde sempre, quando coloca nos painéis os cardos emergindo da terra queimada, e a águia sobranceira planando sobre as falésias escarpadas do Douro.
Título: Bragança na Época Contemporânea (1820-2012)
Edição: Câmara Municipal de Bragança
Investigação: CEPESE – Centro de Estudos da População, Economia e Sociedade
Coordenação: Fernando de Sousa
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