terça-feira, 1 de outubro de 2019

Portugueses vivem cada vez mais, principalmente em Trás-os-Montes

Só no Algarve é que a esperança média de vida diminuiu, o que preocupa especialistas. Já Trás-os-Montes é o campeão das estatísticas, porque as pessoas vivem mais a partir dos 65 anos. No geral, os portugueses vivem cada vez mais, mas com pouca qualidade, segundo o INE.

Aos 12 anos, Maria de Jesus já trabalhava arduamente no campo, na sua terra, Tomar. Levou uma vida humilde, dedicada à agricultura, num Portugal pobre de início do século XX. Morreu a janeiro de 2009 com 115 anos, como a mais velha mulher portuguesa de que há registo. "As pessoas mais afetas à terra nunca param" e isso possibilita que "vivam até mais tarde", avança o delegado de saúde regional de Lisboa e Vale do Tejo, Mário Durval. O que pode ajudar a explicar por que razão é que Trás-os-Montes tem a maior esperança média de vida aos 65 anos a nível nacional, embora os especialistas mostrem resistência em levantar justificações. Segundo dados divulgados pelo Instituto Nacional de Estatística (INE) ainda este mês, no triénio de 2016-2018, a esperança foi de 20,14, o que significa que, a partir dos 65 anos, os residentes podem esperar viver 20 anos e um pouco mais. Nesta terça-feira celebra-se o Dia Internacional do Idoso.

A seguir a Trás-os-Montes, está Coimbra (20,13 anos) e depois Leiria (20,10). Contudo, se compararmos dados de cada região do país, é na Área Metropolitana de Lisboa (19,81 anos) onde esta expectativa de vida é maior, seguida pela região centro (19,75) e norte (19,71). No lado oposto da tabela estão as regiões autónomas dos Açores e da Madeira, respetivamente, com uma esperança de vida de 17,24 e 17,69.
Em todo o país, desde 2008 que a esperança média de vida, quer aos 65 anos quer à nascença (número médio de anos que uma pessoa à nascença pode esperar viver), tem aumentado. No primeiro caso, subiu de 18,59 no triénio de 2018-2010 para 19,49 em 2016-2018. Já quanto ao segundo, sofreu um aumento de 79,29 para 80,80 anos, no mesmo período. Ambos os aumentos são "significativos", não hesita em dizer a demógrafa Maria João Valente. "As pessoas nascem e é quase certo chegaram a idades cada vez maiores. E isto diz-nos que, em vários campos, temos evoluído para melhor."

A análise dos dados não é simples e depende de local para local. Mas há conclusões imediatas a tirar: "A saúde é fundamental para uma esperança de vida elevada", começa por dizer Maria João Valente. "e quando falo de saúde falo sempre numa perspetiva mais ampla e lembro-me da definição que a Organização Mundial da Saúde adianta: saúde é o estado completo de bem-estar físico, mental e social", explica. Ou seja, "não falamos só de doenças", mas sim do bem-estar aos mais variados níveis, "que pode ou não refletir-se nas doenças". "Isto implica que falemos de várias dimensões, como a alimentação, o meio ambiente, estilos de vida, naturalmente acessos aos cuidados de saúde e educação."

Sobre este último fator, a educação, a especialista lembra um relatório recente da Comissão Europeia (designado Health at a Glance ), publicado em 2018, "que diz que o ensino faz toda a diferença na esperança de vida". O estudo diz que, aos 30 anos, comparando as pessoas com alto nível de educação com aqueles que têm baixo nível de educação, as primeiras vivem muito mais anos do que as segundas. "Isto tem que ver com os estilos de vida adotados por estas pessoas e com a maior consciência sobre comportamentos de risco", diz Maria João Valente.


O Algarve é a única no país onde a esperança média de vida aos 65 anos tem diminuído e "situação é preocupante"

Entre as estatísticas, são os homens o grupo que mais sai prejudicado. Enquanto as mulheres têm uma esperança média de vida aos 65 anos de 20,88 anos e à nascença de 83,43, os homens podem esperar viver mais 17,58 anos além dos 65 e 77,78 desde que nascem. Ou seja, o sexo feminino pode viver sensivelmente mais três anos do que os homens, quando idoso, e quase mais sete desde a nascença.

Relativamente à análise geográfica da esperança média de vida à nascença, é no Cávado (81,81 anos) que se regista o valor mais elevado. Depois, em Leiria (81,50) e Coimbra (81,47) - também presentes entre as cidades com maior esperança de vida aos 65 anos. Numa perspetiva mais ampla, por regiões, é o norte (81,18) com maior esperança média de vida, seguida da região centro (81,11) e da Área Metropolitana de Lisboa (80,94).

À semelhança do que acontece com a esperança média de vida aos 65 anos, também é nas regiões autónomas que se destacam os níveis mais baixos.


Algarve em contraciclo
Em 2018, existiam em Portugal mais de dois milhões de idosos (pessoas com idades iguais ou superiores a 65 anos). Mais do que a totalidade de cidadãos com menos de 15 anos, que se situam nos 1,5 milhões. Isto significa que, atualmente, um em cada cinco portugueses tem mais de 65 anos - nos anos 70, esta relação era de um em cada dez. "Espera-se que no futuro sejam ainda mais. O envelhecimento não será travado, a não ser que alguma catástrofe natural aconteça", explica a demógrafa Maria João Valente. Aliás, de acordo com o INE, estima-se que até 2080, o número de idosos passe de 2 para 2,8 milhões.

Um cenário que acontece em contraciclo na região do Algarve, a única no país onde a esperança média de vida aos 65 anos tem diminuído. Desde o triénio de 2012/2014 que o fenómeno é visível, tendo descido de 19,33 para 19,08 anos (em 2016/2018). Por ser uma exceção à enorme regra ditada pelo país, "a situação é preocupante", diz a especialista, que não adianta ainda explicações para os dados.

"Pode ter a ver com uma dimensão ou muitas em simultâneo. É preciso estudar, mas estes dados deixaram-me francamente preocupada. Porque é expectável que a esperança de vida continue a aumentar e, no Algarve, está a acontecer em sentido inverso", adianta. E reforça: "há aqui um sinal de alerta que importa aprofundar para compreender o que está a motivar este cenário".


O país está mais velho e isso é bom
A verdade é uma: os dois milhões de idosos (com idades iguais ou superiores a 65 anos) já superam o número de cidadãos com menos de 15 anos (1,5 milhões). Portugal é considerado um dos países mais envelhecidos da União Europeia e isso "é muito positivo", diz a demógrafa Maria João Valente.

Não é preciso recuar muito no tempo para ver como o país evoluiu: "quando nasci, na década de 1960, Portugal era um país muito pobre, com altos níveis de analfabetismo, mas principalmente uma esperança de vida e umas taxas de mortalidade que nos envergonhavam face à atual composição da União Europeia", lembra.

"Temos uma tendência terrível para dizermos disparates quando analisamos o envelhecimento humano. Associamo-lo a uma sociedade doente, mas é exatamente o oposto." A especialista recorda que "os países mais desenvolvidos do mundo do ponto de vista médico e sanitário são aqueles que evidenciam mais sinais de envelhecimento", porque se são cada vez mais as pessoas a chegar a idades avançadas, "é natural que as populações envelheçam".


"O grande problema aqui é que a sociedade não está a tirar os reais proveitos do envelhecimento", pois "o corpo da sociedade alterou-se e agora temos de olhar para as pessoas de uma forma diferente de quando olhávamos quando éramos todos muito jovens e não vivíamos muito tempo"

A demógrafa Maria João Valente descreve um país em negação sobre a superioridade numérica de idosos e garante que esta divergência tem trazido problemas na convivência social. "Continuamos a utilizar o critério etário como se fosse importante para definir o valor e interesse social das pessoas, mas a idade não é um atributo e mérito de alguém e isto leva a que não aproveitemos pessoas que estão a crescer", frisa.

Aliás, acrescenta, "a idade não está prevista na Constituição da República Portuguesa". Refere-se ao Artigo 13.º, onde está previsto que "ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual". "Mas aqui não há referência à idade como fator de não-discriminação, o que é revelador da forma como pensamos enquanto sociedade", remata.

Segundo a especialista, "o grande problema aqui é que a sociedade não está a tirar os reais proveitos do envelhecimento", pois "o corpo da sociedade alterou-se e agora temos de olhar para as pessoas de uma forma diferente de quando olhávamos quando éramos todos muito jovens e não vivíamos muito tempo". Até porque, relativamente aos idosos do passado, lembra, "vão sendo pessoas muito mais escolarizadas e mais próximas das novas tecnologias".

Mas há países que já são um exemplo nesta matéria. Maria João Valente dá o exemplo do que já acontece em algumas micro localidades no Japão, onde a esperança média de vida é elevada, situando-se nos 83 anos. "Nestes locais, olha-se o envelhecer como algo natural e não antinatural, mas não numa ótica de caridade. Percebem que os mais velhos continuam a ter um lugar na sociedade e inserem-no na vida ativa." Este deveria ser "o próximo passo para Portugal", diz.


A maioria do tempo passado após os 65 anos, em Portugal, é vivido com incapacidade


Vivemos mais, mas sem qualidade
A tendência é o aumento. Até 2080, o INE prevê que, face ao decréscimo da população jovem e o aumento da idosa, o índice de envelhecimento (relação entre a população idosa e a população jovem) mais do que duplique, de 147 para 317, por cada 100 jovens. O que não significa "nem que vivamos com mais qualidade nem que vivemos até aos 100", esclarece a demógrafa.

É preciso não confundir longevidade humana com esperança média de vida, alerta Maria João Valente. Pois a primeira significa o tempo limite de vida de um ser humano, "que é uma incógnita". Até agora, o mais longe que alguém viveu foi 122 anos. O título é atribuído à francesa Jeanne Calment, que morreu a 4 de agosto de 1997. Mas até D. Afonso Henriques foi considerado uma pessoa longeva na sua época: reza a história que terá morrido com 76 anos.


"Existem registos de pessoas longevas em todas as épocas, e algumas até bem recuadas, por isso, não é a novidade da época moderna. Mas também não é a longevidade humana que está a aumentar", faz questão de dizer. "O que está a acontecer é que há cada vez mais pessoas que chegam a idades avançadas e que podem esperar viver mais tempo", embora não com mais qualidade, alerta.

Desde 1960 que o índice de dependência dos idosos (relação entre a população idosa e a população em idade ativa) tem aumentado significativamente, de 12,7 para 33,6 em 2018. Além disso, a maioria do tempo passado após os 65 anos, em Portugal, é vivido com incapacidade.
Maria João valente escolhe fazer a comparação com Dinamarca, país com o qual Portugal partilha a mesma esperança média de vida. Apesar de partilharam este número, "na Dinamarca só 42% destes anos a partir dos 65 é que são vividos com incapacidade, enquanto os portugueses dizem que é mesmo 70% que passam com incapacidade". E "por incapacidade entendemos a limitação de atividades consideradas habituais para a generalidade das pessoas, no dia-a-dia".

A especialista diz ser urgente "garantir que quem vive mais também viva com mais qualidade".


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