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SOBRE O BLOG: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blog, apenas vinculam os respetivos autores.

terça-feira, 5 de novembro de 2019

DO INTERIOR OU DA ALEGORIA DA CAVERNA

Por: Fernando Calado
(colaborador do Memórias...e outras coisas...)

Nasci e cresci na aldeia à beira do velho tanque. Parece que ainda ouço a mãe, com o seu ar sereno, dizer como quem beija, de mão em riste, numa ameaça que não convencia ninguém: — Se cais ao tanque mato-te!

As juntas de vacas, os rebanhos, os burros, os cães, vinham ao entardecer saciar a sede no tanque amigo. Era verão.

As mulheres enchiam os cântaros na torneira, os homens tiravam o chapéu, vindos da segada e bebiam água tão boa, como se não houvesse amanhã. A criançada da escola regalava-se a aguardar a vez para beber água, ou molhar o amigo descuidado. No Inverno o tanque repousava num longo manto de gelo. E aquele “carambelo” partido aos pedaços sabia que nem trigo com nozes. Tempo de fome e servidão, da meia sardinha para cada membro da família, das jeiras escassas, da casa cheia de gente, da emigração, do medo.

Ainda continuo a viver na aldeia, junto do velho tanque. Nunca fui muito longe para conhecer o mundo. Mas conheço a minha aldeia e quase todas as aldeias do nordeste como se me estivessem coladas à pele, às memórias, ao sentir.

As casas e os casebres continuam a cair, numa derrocada medonha que assusta. Tudo se vai com os donos.

Nalgumas ruas ainda cheira a centeio quente mas o forno já não coze. Fica a nostalgia do pão nosso de cada dia, da segada, da acarreja, das malhas, do medeiro, do moinho, da forja. Tudo está tão presente como o carolo de centeio que sabia a beijos, ao lume aceso, à alheira que amaciava o inverno.

Hoje, em quase todas as aldeias do nordeste transmontano já não há fome. Os poucos habitantes vivem com o mínimo de dignidade nas suas casas. Muitos ainda cultivam a horta, apanham as castanhas, a azeitona e cuidam da capoeira. A magra reforma vai chegando para o essencial. Mas, o que há nas nossas aldeias é uma imensa solidão, idosos que se arrastam ao peso dos anos, doenças, lágrimas, memórias, ausências, silêncios. Todos os dias converso, demoradamente, com estes idosos e sinto o seu sentir. E dói-me esta investigação participada e este abandono.

Há muito que a grande maioria das escolas do primeiro ciclo fecharam pela falta de crianças. Em muitas aldeias já se conta quem será o próximo a morrer e calcula-se com uma previsibilidade assustadora quando a aldeia vai capitular pela partida do último habitante. Raramente nasce uma criança e os sinos poucas vezes tocam festivamente para os batizados, mas tocam com excessiva frequência a finados.

Contudo, abundam as magníficas teses sobre o desenvolvimento e sustentabilidade do nordeste. Com frequência vou a seminários e congressos onde se afirma que o nordeste tem futuro. Doutos oradores dissertam sobre medidas inovadoras para combater a desertificação e promover o povoamento. Às vezes quase acredito que eu vivo na caverna da alegoria de Platão e só vejo as sombras do mundo exterior, enquanto iluminadas personalidades vivem realmente no exterior desenvolvendo magníficas teorias, garantindo os apoios necessários para salvar uma região do interior que morre paulatinamente.

É difícil acreditar no futuro da nossa terra, mas temos que agarrar a esperança, muito mais agora que a investigadora Isabel Ferreira, com centenas de artigos científicos publicados, “que exerceu funções de vice-presidente do Instituto Politécnico de Bragança, foi diretora do Centro de Investigação de Montanha, doutorada na área da Química e licenciada em Bioquímica” é a atual Secretária de Estado da Valorização do Interior. Talvez ela seja capaz de ajudar a enxugar as lágrimas de tantos idosos, a semear sorrisos de esperança, a criar investimento, a transformar a teoria numa prática criadora de riqueza que todos desejamos para que as nossas aldeias, vilas e cidades se povoem de casais, de crianças e jovens com futuro.

Entretanto acendemos o lume, afagamos a esperança nos homens e nas instituições e esperamos que nenhum vizinho morra esta noite de tristeza, velhice e abandono.

Fernando Calado nasceu em 1951, em Milhão, Bragança. É licenciado em Filosofia pela Universidade do Porto e foi professor de Filosofia na Escola Secundária Abade de Baçal em Bragança. Curriculares do doutoramento na Universidade de Valladolid. Foi ainda professor na Escola Superior de Saúde de Bragança e no Instituto Jean Piaget de Macedo de Cavaleiros. Exerceu os cargos de Delegado dos Assuntos Consulares, Coordenador do Centro da Área Educativa e de Diretor do Centro de Formação Profissional do IEFP em Bragança. 
Publicou com assiduidade artigos de opinião e literários em vários Jornais. Foi diretor da revista cultural e etnográfica “Amigos de Bragança”.

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