(colaborador do Memórias...e outras coisas...)
“Todos os dias os ministros dizem ao povo
Como é difícil governar. Sem os ministros
O trigo cresceria para baixo em vez de crescer para cima.
Nem um pedaço de carvão sairia das minas
Se o chanceler não fosse tão inteligente. Sem o ministro da Propaganda
Mais nenhuma mulher poderia ficar grávida. Sem o ministro da Guerra
Nunca mais haveria guerra. E atrever-se ia a nascer o sol
Sem a autorização do Führer?
Não é nada provável e se o fosse
Ele nasceria por certo fora do lugar.”
Bertolt Brecht
Houve um tempo em que até o pensamento queriam controlar. Impedidos de nos manifestarmos, de livremente dizermos o que pensávamos e muito menos o que queríamos, às escondidas líamos, entre outros, Bertolt Brecht.
Eles tinham o poder de controlar as nossas vidas de condicionar o nosso futuro de limitar as nossas justas ambições. E nós, ouvíamos Zeca Afonso.
As manifestações eram proibidas e, em certas datas, até os pequenos ajuntamentos eram dispersados com autoritários bastões policiais. Em reservado, recitávamos Manuel Alegre.
A cultura era a gazua com furávamos o cerco, era a lima com que ensaiávamos cortar as grades, era o pincel com que pintávamos raios de sol na noite negra.
De qualquer forma, apesar deles, o sol nascia sempre no mesmo sítio e nós víamo-lo nascer. Todos os dias. Quisessem ou não. Talvez por isso eles preferiam a noite para fazerem os seus mais torpes ataques, as suas mais cobardes e traiçoeiras iniciativas.
E nós, quando o dia nascia, limpávamos as feridas noturnas com bálsamos de poesia.
Felizmente para as novas gerações, a literatura é, essencialmente, um meio de fruição, de conhecimento, de sublimação, em tempo de liberdade. Para a minha geração, sendo-o igualmente, não deixou de ser uma velha aliada, uma companheira de resistência, uma cúmplice incondicional nas lutas contra todas as formas de tirania. Por isso, não tenho a menor dúvida que, qualquer ataque que lhe seja dirigido é um ataque a todos e cada um de nós; qualquer desrespeito é uma bofetada no rosto de todos e cada um de nós; qualquer atitude déspota de exercício indevido de poder, é uma facada nas costas de todos e de cada um de nós!
Perpetrada, significativamente, de madrugada, a ação ignóbil, ilegal e sobretudo desrespeitadora da vontade e dos princípios democráticos de retirada do busto do grande escritor moncorvense, Abílio Adriano de Campos Monteiro, é um atentado à cultura, é uma afronta aos munícipes, é uma estalada a todos e cada um de nós.
Em período de confinamento, em plena pandemia, uma simples e ridiculamente autoritária nota de serviço do Presidente da Câmara Municipal de Torre de Moncorvo datada de 14 de maio de 2020 determinou o desmantelamento do monumento de homenagem ao grande escritor Abílio Adriano de Campos Monteiro, e a retirada, para parte incerta do busto, em bronze, daquele ilustre cidadão, mandado colocar, como agradecimento, no Largo do Castelo, há mais de oitenta anos, por um grupo de munícipes que suportaram todos os custos, do seu bolso.
Foi um ato inqualificável!
Foi um acontecimento inaceitável que merece já o repúdio generalizado em Moncorvo.
É, supostamente, disso estou muito convencido, ilegal esta “intervenção” decidida unilateral e arbitrariamente pelo autarca, num monumento de interesse público, ao arrepio das respetivas instituições democráticas e sem respeito pela necessária concordância das instituições tutelares. Mas, mesmo que estivesse, inexplicavelmente, protegida por qualquer disposição legal, ancorada em qualquer ínvia e desprezável brecha de regulamento desajustado, suportada por qualquer suposto poder inerente ou delegado, não deixaria de ser o que é: um atentado arrogante, cobarde e desprezível à literatura, à memória comum da boa gente de Moncorvo e uma inexplicável ingratidão para com o autor e, sobretudo, para com aqueles que se solidarizaram para custear uma sentida e significativa homenagem ao grande vulto cultural do nosso concelho.
Sendo o que é, é um insulto a todos os moncorvenses de bem.
Mas é também um insulto a todos os nordestinos, amantes e respeitadores da cultura.
E ainda de todos os que, em Trás-os-Montes, cultivam e respeitam a liberdade e a democracia.
Não pode deixar de se sentirem incomodados todos os cidadãos que abominam a autocracia, a prepotência e sobranceria dos que desprezam, quando eleitos, o sentir profundo de quem os elegeu.
Dizem-me que, enquanto escrevo estas linhas, foram já destruídos os alicerces que suportavam o monumento e tapado o buraco (da vergonha) que ali foi feito aquando da retirada.
Nada disso é, não pode ser, definitivo.
Outros alicerces serão rasgados, no mesmo lugar para onde o busto de Campos Monteiro regressará e de onde nunca deveria ter saído.
Esta exigência dos munícipes de Torre de Moncorvo será, não duvido, partilhada por todos os que honram a memória dos antepassados ilustres, que respeitam as instituições democráticas e que honram a vontade soberana dos cidadãos diretamente expressa ou pela voz de TODOS os seus legítimos representantes!
Carcavelos, 7 de junho de 2020
José Mário Leite
José Mário Leite, Nasceu na Junqueira da Vilariça, Torre de Moncorvo, estudou em Bragança e no Porto e casou em Brunhoso, Mogadouro.
Colaborador regular de jornais e revistas do nordeste, (Voz do Nordeste, Mensageiro de Bragança, MAS, Nordeste e CEPIHS) publicou Cravo na Boca (Teatro), Pedra Flor (Poesia) e A Morte de Germano Trancoso (Romance) tendo sido coautor nas seguintes antologias; Terra de Duas Línguas I e II; 40 Poetas Transmontanos de Hoje; Liderança, Desenvolvimento Empresarial; Gestão de Talentos (a editar brevemente).
Foi Administrador Delegado da Associação de Municípios da Terra Quente Transmontana, vereador na Câmara e Presidente da Assembleia Municipal de Torre de Moncorvo.
Foi vice-presidente da Academia de Letras de Trás-os-Montes.
É Diretor-Adjunto na Fundação Calouste Gulbenkian, Gestor de Ciência e Consultor do Conselho de Administração na Fundação Champalimaud.
É membro da Direção do PEN Clube Português.
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