quinta-feira, 11 de junho de 2020

Há dias em que a mente parece que é tomada de frenesim e que nos faz entrar em desassossego…

Por: António Orlando dos Santos (Bombadas)
(colaborador do "Memórias...e outras coisas...")



À falta de entretenimento, que noutro tempo era espontâneo, sente-se agora um certa madorra que a falta de adrenalina ocasiona. Esta constatação é apenas física já que no respeitante às coisas da mente um caleidoscópio está constantemente girando e incessantemente nos fornece imagens que continuam a serem agradáveis.
Dá-me assim a possibilidade de revisitar a minha vida passada e com a possibilidade de encontrar personagem que esteja no centro da ação que se desenrola nos lugares que ainda existem, mas aos quais foi retirado o cenário que as enfeitava outrora. As cenas precisam desse adorno que as várias componentes lhes conferiam.
Tomemos como exemplo a artéria que hoje está moribunda e que era noutro tempo anterior, uma autêntica Babel que tinha em si dezenas de "comércios", de todas as variedades de utilidades, a Rua Alexandre Herculano. Longa, teremos que a dividir em secções para melhor a recordar no seu dinamismo fervilhante e encantador. Era ali que se desenrolava a grande comédia humana dos que socializavam, comprando, vendendo, conversando, ralhando, discutindo, pesando, embrulhando, escrevendo, selando, rindo chorando e sendo parte do todo vivendo e fazendo a história que só as gentes fazem, pois que a história só existe para a gente. 
Quando hoje penso nas pessoas e lhes recordo o nome e o perfil compreendo as suas virtudes e concluo que misturadas com o seus defeitos e só com esta soma, elas eram o que eu pensava delas. Isto de se ser só bom, fica muito aquém do humano e é apenas uma quimera sem substância. O mesmo serve para o contrário e hoje vivo já com a convicção que a sociedade só é tão fascinante porque é constituída por tipos tão contrários e tão semelhantes, tão diferentes e tão complementares.
Havia no meu tempo de menino, dois comerciantes que tinham os seus estabelecimentos literalmente um oposto ao outro na rua que menciono. Vendiam os mesmos produtos e ambos tinham classe e sabedoria para serem os melhores no género não só porque tinham ambos uma ideia moderna de estar como a dinâmica necessária ao sucesso. Vendiam fazendas e tudo o que tinha que ver com confeções, fazendas e miudezas. Tinham as Costureiras da Cidade, sempre com elas algumas raparigas recém-saídas da Escola como aprendizes. Eram elas que faziam os "recados”, como irem comprar linhas, botões, agulhas ou miudezas que fossem necessárias e que estivessem em falta. Dirigiam-se para tal a um destes estabelecimentos, um conhecido por TOZÉ e outro por QUEIRÓZ. O Queiróz era cunhado do Tozé e até tinham uma relação boa entre si, fora do âmbito comercial, mas o Queiróz era uma figura rara no seu entendimento das coisas da vida, era um homem de extremos em questões de socialização. Sendo uma pessoa de coração grande era também um brincalhão, mas compulsivo. Ele adorava pregar uma partida, fosse a quem fosse.
Não tinha preferência por classes, género, idade ou cor.
A sua outra parte de caráter era grande suficientemente para que fizesse as traquinices que fizesse, nunca as pessoas se ressentissem com as suas ações, às vezes a roçarem o inconveniente. Tudo o que fazia era para dar cor à vida. Assim capricho do Queiróz era tomado como brincadeira, mesmo que após consumação a "vítima" se quedasse um tanto sentida e se rebelasse até vingativa. Haveria sempre alguém que deitasse água na fervura e a convencesse que aquilo era apenas brincadeira do Queiróz.
Ora as costureirinhas que saíam para comprar botões ou outras passamanarias se entravam no TOZÉ e por alguma razão, não comprassem e resolvessem dirigir-se ao QUEIRÓZ para obter o que não haviam conseguido no TOZÉ, eram recebidas com uma fúria tempestuosa: - Ponha-se lá fora sua desavergonhada, então você vai comprar àquele "lafrau" e só porque ele não tem é que resolve vir aqui? Diga à sua patroa que vá comprar à feira dos Chãos que não falta lá nada.
Bom, eram cenas que as moçoilas não esperavam e às quais algumas delas reagiam chorando ou assustadas se retiravam medrosas, mas havia-as também que reagiam em consonância e o insultavam a ele.
As raparigas também eram da Caleja, do Loreto, de Além do Rio, da Vila etc. e eram também das frescas e assim se toca assim se danças descascavam no Queiroz impropérios de vernáculo variado que ocasionava o delírio da população e a lástima de algumas beatas, que também as havia em número suficiente.
Era isso mesmo que o Queiróz desejava. Terminada a cena o Queiróz esfregava as mãos de contentamento porque o seu caráter se realizava nestas brincadeiras. O seu pensamento era sempre um turbilhão interior escondido por um rosto prazenteiro e sorridente mas onde o pequeno mafarrico da traquinice trabalhava incessantemente. De par com outros comerciantes e homens bons da Cidade marcou uma época de quase meio século de vivência em que a capacidade comercial a par de uma verdadeira fraternidade para com os seus concidadãos e uma atitude de brincadeira contínua em que o seu pensamento irrequieto inventou milhentas "fajardices", o Senhor Queiróz foi uma figura maior da Rua Alexandre Herculano e da Cidade de Bragança.
Foram seus condiscípulos outros homens de espírito que também seus parceiros no comércio e que intervenientes nas suas histórias, são hoje saudade, que se estende à própria rua que exangue foi tornada numa sombra do passado.
Devo acrescentar que o Senhor Queiróz era um filho adotivo de Bragança de quem esta cidade recebeu a maior fidelidade e dedicação. Casou em Bragança com uma Senhora que foi uma sua companheira de todas as suas horas e que foi quem manteve sempre o equilíbrio entre os dois modos distintos da sua personalidade. Amou-a de verdade e ela o amou a ele como esposa e segunda mãe. Tive a honra que ambos fossem meus amigos e sei o que digo, pois nunca se referia ao marido que não fosse pela fórmula de: - O meu Queiróz e onde se adivinhava uma ternura indescritível.
O Senhor Queiróz nasceu em Lamego tendo vindo para Bragança ainda jovem. O Senhor TOZÉ era outro Homem que marcou o tempo que o viu passar como um Português verdadeiro na honra, no Comércio e na Indústria.
Um dia falarei dele.





18/04/2020
A. O. dos Santos
(Bombadas)

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