segunda-feira, 3 de agosto de 2020

A adaptação da águia-real à modernidade com admirável mérito

Num ecossistema em mudança constante, muitas espécies animais lutam pela sobrevivência. 
O padre António Vieira chamou apropriadamente à águia o “lince do ar”. A imponência e adaptabilidade da águia-real facilitam a sua sobrevivência.
Faltam dois minutos para a uma da tarde e, do ponto de vista dos humanos, diria que está na hora do almoço. Num barranco nesta margem de uma ribeira alentejana, alguns abelharucos manifestam-se num tom invulgar. Nitidamente, é um sinal de alarme. Para mim, não pode ser melhor indicador. A “minha ave” está nas redondezas.

Espreito pela janela do abrigo e vejo a sombra da águia-real deslizar por cima das copas e matos da encosta. Com as rémiges esticadas, como dedos bem abertos, a silhueta desce a ribeira em direcção ao Guadiana. A sua envergadura ultrapassa os dois metros de comprimento. Passa pelo ninho e poucos metros à frente dá meia volta e entra na plataforma. A cria quer atenção e alimento, piando a todo o pulmão. Desta vez, receberá meia dose de perdiz ao natural.

Se na época de reprodução, em plena Primavera, a disponibilidade alimentar é maior, no Inverno nem sempre é assim. Para a bióloga Bárbara Fráguas, é a capacidade de adaptação desta ave de rapina que lhe vale a sobrevivência em tempos de escassez alimentar. “As populações das grandes necrófagas têm tendência para aumentar e isso poderá indicar que têm alimento disponível. Havendo animais mortos para elas, também estão disponíveis para a águia-real”, diz. Normalmente, os animais mortos são portadores de grandes quantidades de biomassa, exigindo escasso investimento energético na caça.
Com câmaras remotas e numa posição favorável a este ninho num penhasco alentejano, o fotógrafo Luís Quinta acompanhou a actividade de um casal de águias-reais. Actualmente, existem cerca de sessenta pares nidificantes da espécie em território nacional.
No ninho, é fundamental a limpeza, afastando os restos de comida para não atrair as moscas. Minutos depois, o adulto abandona a plataforma e voa para a outra margem. Pousa numa escarpa, mas um batalhão de pegas-azuis não lhe dá descanso. Vencido mas não convencido, o predador salta da rocha para o vazio, voa em espiral e sobe progressivamente. No alto, bem por cima do ninho, voa em círculos, controlando o aguioto. Fecha depois as asas e cai a pique mais de cem metros até abrir as asas e voltar a subir mais uns metros, como um ser humano preso a uma corda invisível de bungee jumping.

Uma hora depois e de papo cheio, a cria adormece à sombra. É o animal sobrevivente de uma ninhada de dois pintos. À passagem das três semanas, a cria mais velha atacou a irmã, deixando-a tão maltratada que ela morreria no dia seguinte. Este acto bem documentado, conhecido como “cainismo”, é típico desta espécie.


Para o biólogo Luís Palma, que tem estudado as grandes águias do Sul de Portugal, as águias-reais têm uma distribuição irregular. “Contando com os casais que nidificam em cursos de água que fazem a separação entre Portugal e Espanha, teremos cerca de 15 pares no Alentejo”, diz. No Norte e Centro, os números são mais elevados e o habitat é favorável, pois existem mais vales e zonas rochosas para nidificação. A preferência por rocha para os ninhos é notória nas estatísticas nacionais, já que apenas 5 a 10% dos casais optam por árvores. Para Bárbara Fráguas, “trata-se de uma espécie em progressão. O número de casais no Nordeste tem aumentado nos últimos 15 anos, com a ocupação de novos territórios. Estes territórios são quase exclusivamente antigos territórios da águia-de-bonelli”.
A cria mais velha atacou o irmão e infligiu-lhe feridas fatais. O cainismo recorda-nos que é desaconselhável humanizar os comportamentos animais. 
No início da década de 1990, os casais de águia-de-bonelli e de águia-real nos vales do Douro e Sabor apresentavam uma distribuição intercalada. “Agora, com a regressão de uma espécie e o aumento da outra, isso já não se verifica, aparecendo vários casais de águia-real seguidos.”

Dias depois, volto à ribeira. A quantidade de espécies que convivem neste vale é enorme. A boiar no curso de água, vejo vários cágados. Abaixo da superfície, peixes nadam entre as pedras enquanto as lontras não aparecem. Várias espécies de chapins cantam perto do meu esconderijo. Com tantas horas de espera pela frente, preparo o equipamento fotográfico e, como um predador, mantenho-me imóvel. Ao meio-dia a generalidade dos animais tende a diminuir a sua actividade, mas é a hora a que águia costuma picar o ponto. Quinze minutos depois das doze, a fêmea entra no ninho. Presa nas garras, traz meia dose de coelho já esfolado.

Nas minhas costas, oiço a irritação dos gaios, um sinal estranho, pois a grande ave está à minha frente. Na verdade, eles reagem ao movimento do macho que se junta agora à fêmea. Em círculos, as duas águias desfrutam dos ventos favoráveis, exibem o seu poder e controlam os gestos da cria enquanto ela depenica o coelho.

A penugem branca vai desaparecendo e o boneco de pelúcia vai dando lugar a uma ave de patas robustas, garras enormes e penas escuras. Após dois meses e meio no ninho, o juvenil está pronto para sair do berço. Os ensaios de voo vão fortalecendo os músculos e, nos próximos tempos, passará para as aulas de caça com os pais.


Estudos realizados pelo Instituto da Conservação da Natureza e da Biodiversidade, coordenados pelos biólogos António Monteiro e João Paulo Silva, revelaram, através de emissores colocados em águias prestes a sair do ninho, que a aprendizagem das jovens aves pode demorar meses. Nos primeiros sessenta dias, a maioria das crias não pernoita longe do ninho onde nasceu, num raio máximo de seis quilómetros,. Depois, aventura-se em deslocações progressivamente maiores para longe da área natal.
O coelho e a perdiz são as presas favoritas desta espécie.
Com o Sol a descer no horizonte, os animais intensificam o movimento. Às sete da tarde, o curso de água parece uma estrada em hora de ponta. A biodiversidade deste recanto alentejano é surpreendente. Sessenta e cinco dias depois de ter eclodido do ovo, a águia-real juvenil está pronta para explorar o seu território.


Estive três dias no esconderijo para assistir ao primeiro voo da jovem ave. No dia 18 de Junho, por fim, após saltos preparatórios para rochas vizinhas, a águia aventura-se e voa para a outra margem. A primeira fase da sua vida está terminada. Os seus desafios são enormes. Aprenderá a caçar e a reconhecer ameaças, incluindo as criadas pelo homem. Os tempos modernos exigem novas soluções, mas as águias-reais parecem adaptar-se às rápidas mudanças.

Texto e Fotografias: Luís Quinta

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