terça-feira, 25 de agosto de 2020

Nós Transmontanos, Sefarditas e Marranos - MANUEL LOPES, UM JUDEU DO TEMPO DA INQUISIÇÃO

 
Manuel Lopes esteve em Itália apenas uns 10 meses, entre Outubro de 1700 e Agosto de 1701. Obviamente que um dos primeiros objetivos que prosseguiu foi o de se fazer circuncidar. Ele não contou especificamente como as coisas aconteceram, mas fez uma descrição genérica da cerimónia, baseado na sua experiência de circunciso e em outras cerimónias de circuncisão a que assistiu. 
Veja-se: — Para se circuncidar, juntam- -se 10 homens e um deles serve de padrinho. E este se senta numa cadeira e tem o menino sentado nos joelhos. E logo o homem que faz de ministro, com uma faca, abre a parte do prepúcio e logo com as mãos afasta a pele e com uma tesoura corta um pouco daquela pele e lava a ferida e dois homens lhe aplicam uns unguentos dos vasos que têm nas mãos.(1) Acrescentou que a circuncisão dos meninos se faz normalmente em casa dos pais e não há ministros designados, antes são os pais que os chamam, entre aqueles que estão capacitados para isso. E disse mais: — A parte do prepúcio cortada se guarda num vaso de vidro, que está na sinagoga, e havendo muitos, se entregam aos judeus que vão de Jerusalém a Livorno, para os levarem a Jerusalém e para os lá enterrarem e disseram a ele confitente que os enterravam na ocasião em que enterravam algum judeu.(2) 
Falou depois da Yeshiva, a escola onde as crianças, a partir dos 4 anos e até aos 8, aprendiam a ler e escrever. E aprendiam também os preceitos da Lei Mosaica, lendo por “um livro pequeno do tamanho de umas horas” em língua castelhana. À escola vão as crianças de manhã, de tarde e à noite. Três vezes por dia vão também os adultos à sinagoga onde “todos os homens se punham pelos ombros um pano à maneira de toalha, a que chamam Tallit e dizem significar capa de Deus, que é de tafetá branco”, o qual tem nas pontas 4 cordões de fios de seda e pelo de cabra, unidos por 3 ou 4 nós e a que chamam “Tzitzit”. E enquanto isso, na sinagoga, rezam em hebraico uma oração que Manuel traduziu assim: — Bendito Adonay nosso Deus, rei do mundo, que nos santificou em suas santas benditas encomendanças e que nos ensinou a pôr os Tzitzit.(3) Manuel Lopes descreveu depois o uso e a forma de cada judeu colocar os Tefillin, em volta do braço, antes da oração na sinagoga e a respetiva oração que ele recitou em hebraico e em castelhano: — Bendito Adonay nosso Deus, rei do mundo, que (…) nos ensinou a pôr os Tefillin.(4) Manuel não soube explicar o significado da usança dos Tallit, dos Tzitzit e dos Tefillin como elementos de preparação para a oração na sinagoga. 
Continuou, porém, explicando que, depois de estar assim equipados, cobriam a cabeça com o chapéu e se sentavam nos bancos, dizendo 3 orações, sendo que a primeira, chamada Tefillah, era cantada. As outras duas são o Shemá e o Amidá. Também não soube explicar o significado de cada uma destas orações, nem porque as duas primeiras as rezavam sentados e a última “estando em pé e tendo os pés juntos”. As mulheres assistiam, separadas dos homens, sentadas nos bancos que havia nos corredores, à volta do espaço central da sinagoga, mas liam por livros iguais aos dos homens e a que chamavam Minchah, nome que ele não sabia explicar. 
As ditas cerimónias prolongavam-se por cerca de hora e meia e havia uma sessão de manhã e outra de tarde. Havia um judeu encarregado da sinagoga e que percorria as ruas da cidade chamando os crentes para as orações – o chamador. À noite também havia “juntas” na sinagoga, se bem que com menos gente a frequentá-las. E nesta “junta”, para além do Shemá e do Amidá, havia uma oração que era cantada e se chamava Arbit. Estas cerimónias e ajuntamentos faziam todos os dias da semana, exceto à sexta-feira, dia em que, “logo que saíam da junta, voltavam para as suas casas e os homens despiam os vestidos que ordinariamente traziam e vestiam camisas limpas; e as mulheres, de vestidos compostos, voltavam para a sinagoga, até ao pôr-do-sol”. 
A essa hora iluminavam a sinagoga, com “grande número de lâmpadas e aranhas e alquimia ao redor da sinagoga”, seguindo-se especial celebração a que apenas acorriam os homens, como o Manuel Lopes explicou para os inquisidores: — As mulheres não vão a estas juntas, porque vão para suas casas, limpando-as e compondo-as e fazendo o que se há-de comer no sábado, porque nele não se acende o fogo nem se faz coisa de trabalho, nem se toca em dinheiro.(5) As lâmpadas na sinagoga ficavam acesas até se gastar o azeite e se apagarem por si. Tal como em casa onde, ao entardecer de sexta- -feira, se acendia a “Menorah, que tem 7 luzes” – acrescentou Manuel, que continuou dizendo a seguinte oração: — Bendito Adonay, meíssima criatura e maravilha para fazer o sábado que guardam em observância da lei dos judeus.(6) No ajuntamento do sábado na sinagoga não punham os filactérios, mas apenas o Tallit. E, além das 3 orações referidas, Manuel disse que cantavam “certos Salmos de David”, acrescentando mais informações: — E logo se põe o Tebah, que é a modo de tribuna, no que chama para o ofício de Hazan um porteiro que apregoa a ordem de Hazan para correr a cortina da Arca aonde está a Lei e para abrir as portas e tirar dali a Lei e levá-la até à Tebah (…) e voltam a colocar na Arca a Lei, e correm as cortinas e o dinheiro que isto importa se distribui e reparte entre os pobres, em diferentes dias da semana, que não seja sábado, porque no sábado não se pode mexer em dinheiro. 
E o judeu que leva a Lei desde a Arca à Tebah, a entrega ao Hazan e este, sem dizer palavra, a mostra ao povo donde para que todos a vejam. E na junta de sábado à tarde, o dito Hazan sobe à tribuna e diz Daras (?), que é o sermão em que explica segundo a Lei de Moisés…(7) Chamado a falar sobre as celebrações festivas judaicas, ao longo do ano, Manuel Lopes começou pelo Pessah, semelhante à Páscoa dos cristãos. Prolonga-se a celebração por espaço de 8 dias “em que não comem pão levedado, nem o amassam as mulheres, nem tão pouco trazê-lo para a celebração na sinagoga”, que enfeitam com tafetás e terciopelos, acendendo muitas luzes pelos corredores e também “no solo, no meio da sinagoga”. E durante aqueles 8 dias que dura o Pessah, cantavam e rezavam orações distintas e também alguns salmos. 
Sobre a Páscoa das Cabanas, o Sucot, disse que cada um a celebrava em sua casa, em parte não coberta, fazendo uma cabana de canas, coberta com murta. Na cabana ceavam e acendiam a Menorah de 7 luzes. Acrescentou que não sabia por quanto tempo a celebravam. O mesmo sobre a Festa das Rosas, Roshaná: que não recordava do tempo nem das cerimónias que especificamente faziam. Disse também que não sabia a data em que caía o Kipur, festividade maior, celebrada em memória da destruição de Jerusalém. Porém, acrescentou as seguintes informações: — Comem em sua casa às 3 da tarde, assentados no chão e com sapatos e sombreros, vão à sinagoga, adornada em conformidade. E nas ditas páscoas, estão assentados no chão, toda a noite, até ao outro dia de tarde, cantando e rezando orações pertencentes à dita destruição de Jerusalém. 
E pela dita tarde, o Hazan sobe ao Tebah e dizem o Doras em idioma castelhano; e acabado, se levantam do solo e se sentam nos bancos e começam com a oração da noite, que se chama Arbit e o Shemah e Amidah e acabada, voltam para suas casas. E em todo o tempo que dura a festividade, não comem até ter saído a estrela; e alguns, saindo da sinagoga, vão para sua casa, mas não dormem na cama, mas no chão, em memória dos judeus de Jerusalém que naquelas noites dormiram no campo, na terra. E estas cerimónias e o jejum observam todos os judeus.(8) Falámos já de muitas pessoas, familiares e amigos, conhecidos de Portugal que Manuel Lopes encontrou em Livorno fazendo vida de judeus e usando nomes hebraicos. 
Resta apresentar o líder da nação sefardita de Livorno, o Trasmontano Gabriel de Medina, de que Manuel Lopes disse: — Conheceu em Livorno a Gabriel de Medina, não sabe de onde era natural, nem se era batizado, mercador de ofício, que tinha 4 ou 5 navios por sua conta para o comércio, mas sabe que era judeu e o viu assistir na sinagoga. E ouviu dizer que era casado e tinha um filho de 13 anos, e no dia em que os completou, ofereceu à sinagoga o fabricar de novo a escola da dita sinagoga; e não se recorda ter ouvido o nome de sua mulher e filho.

António Júlio Andrade / Maria Fernanda Guimarães

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