segunda-feira, 24 de agosto de 2020

O legado da decência

 

Não sei em concreto o que é viver num regime não democrático. Aquando da madrugada libertadora daquele dia de abril inteiro e limpo em que do cano das espingardas brotaram cravos, ainda só era um rapaz espigadote. Não sei, pois, o que se passa quando nos cortam a raiz do pensamento e a liberdade de escolha.

O que sei, no entanto, é que como disse Churchill, a democracia é o pior de todos os regimes, com exceção de todos os outros. Sinto-me um democrata que sabe que a democracia não se impõe, se pode exigir e que ninguém a pode oferecer numa bandeja.

Também sei que ela começa e acaba em cada atitude individual de cada cidadão, assim como sei que jamais em tempo algum e onde quer que seja, ela medra sem que exista um solo fertilizado pela decência, um húmus exclusivo dos seres humanos sob a forma de sentimento.

Hoje em dia ando pelo tempo em que são já muitos os cabelos brancos na minha cabeça porque não vou para novo. Por isso tenho firme alguma experiência que tento não deixar que seja a mesma repetida em cada ano, aproveitando as lições que a vida me vai dando.

Quase diria que me posso situar entre aqueles que a única coisa que sabem é que nada ou pouco sabem. Acontece que entre o migalho que sei e o muito que sinto, desponta-se-me a sensação de que a democracia está globalmente em perigo neste pouco admirável mundo novo.

O tempo corre, a humanidade evolui, mas não avança. Parece-me até que recua para a idade das trevas. Julga que ganhou muito, e ganhou, mas perdeu também muito sem que dê conta. Paulatinamente vai perdendo a noção dos limites entre o que é certo e o que é errado. Vai deixando que se esbata a linha firme entre s verdade e a mentira.

Vive vertiginosamente a espuma dos dias, não olhando a factos, não deixando amadurecer os conceitos, seguindo o rumo dos rumores, vivendo temores e olhando de soslaio os horrores que somente causam um leve movimento na maçã de Adão na garganta.

Enquanto isso, palhaços pantomineiros travestidos de líderes desenvolvem nos palcos mediáticos e globais breves peças alarves e grotescas debitando dislates e coisas sem sentido. Praticam ritmos ininterruptos sem contraditório e com muito falatório. Convencem e vencem, recebendo aplausos sem que caia o pano.

Não há tempo a dar ao tempo. A mensagem cola, mas não descola. Fica na retina e germina. A verdade passou a ser o que se afirma. Nada se confirma, porque a página de imediato se vira tocada pelo forte bafo conspurcado dos tolos que nos prometem bolos.

Na nossa modernidade os bobos afirmam o seu poder vazio de saber tomando posse quase total das luzes da ribalta. Brilham e estrilham moldando a verdade à sua vontade. Mentem, mas não sentem. Matam a decência com cadência. Nem sabem o que é a consciência. Finou-se-lhes afogada na ignorância.

Não sabem que a decência é aquilo que a nossa avó nos ensinou. Julgam que ganham, mas perdem. Perdemos todos. Vamos legar um mundo pior quando podia ser o melhor de sempre, por isso falhamos. Roubaram-nos o legado da decência e deixamos.

Veremos se temos perdão.

Manuel Igreja

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