segunda-feira, 28 de setembro de 2020

A minha avó Filomena

 
Uma pessoa nasce por sorte e um bocado ao calhas. Mercê de milhares de acasos no tempo e nos lugares, alguém a todo o momento se cruza com alguém e se entrelaça física e emocionalmente.
Quanto a mim, deu-se a bendita circunstância de quando o século XX ainda era acabado de despontar, de o meu bisavô Genésio e a minha bisavó Maria se terem conhecido e entendido ao ponto de fazerem nascer a minha avó Filomena.
Dizem que ele foi estroina e um valdevinos, e que ela foi e é uma santa pelo que padeceu por causa dele, mas isso são linhas de outra costura. Depois um dia conto-lhes mais em pormenor. Não os conheci, mas pelo que ouvi dizer, vale a pena contar, ainda que tenha que se dar algum desconto em cada ponto.
Gabiru de todo, meteu-se na política e na luta entre monárquicos e republicanos com situações de faca na liga. Dizem os mais velhos que era aguerrido e pingueiro, se é que me entendem. Se calhar por via disso trabalhar não era com ele.
No entanto, teve arte para ir a Lamego encantar a minha bisavó Maria Rebelo para lhe desencantar a vida na quinta em Queimada que acabou por vender arruinado e sem bens ao luar. Andou sempre na boa-vai-ela, ao contrário da mulher coragem que sofreu ao ponto de ganhar por direito um lugar no paraíso.
Moldada pelo que viu e porque teve a sorte de ser mais enxertada na mãe que no pai, a minha avó Filomena foi um assombro de pessoa. Grande e inteira, digna e honesta, generosa em toda a essência, visionária e lutadora, nada regateou e tudo deu.
Soube ser e soube estar. Caseira na Quinta da Seara situada mesmo no centro da vila de Armamar, teve o condão de fazer daquele pedaço de terra um microcosmos onde todos entravam e todos saíam. A força da gravidade era tal, que nem o enorme cão a preceito chamado Fiel, metia medo ou era impedimento para qualquer visitante. Sabia que ali também era o reino dos sem eira nem beira, terra onde não medra a erva daninha da maldade.
Pelo enorme portão de ferro que dava acesso a um largo terreiro, entrava quem queria unicamente dois dedos de conversa, quem quisesse saber ou falar de novidades, quem quisesse matar a fome, quem quisesse umas brasas de vides para o lume, quem quisesse guarita para uma noite por andar sem destino e ao sabor do vento.
Ricos e pobres, todos cabiam no coração da minha avó. Aflitos ou tranquilos, certos ou duvidosos, todos podiam contar com os ouvidos dela para escutar aperreações ou alegrias. A enorme cozinha onde crepitava uma enorme lareira era chão onde medrava a partilha. Floria fortificada pelo raiar daquele sol que era a minha avó.
Faleceu quando eu já era homem acabado de entrar às “sortes” e prestes a receber convocatória para ir assentar praça no quartel militar. Passei muito tempo com ela. Cuidou de mim com esmero e carinho. Fui bafejado pelo seu exemplo.
Por isso a tenho comigo. Faz boa parte daquilo que tenho cá dentro e me diz de onde vim e para onde devo ir. O meu bisavô Genésio se calhar também, quando às vezes me puxa para o arredio. Mas não me importo. Valeu a pena ele ter existido, pois foi pai da minha avó.

Manuel Igreja

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