terça-feira, 1 de setembro de 2020

Campónios e Extraterrestres

Por: Manuel Amaro Mendonça
(colaborador do "Memórias...e outras coisas...") 

O sol principiava grandiosamente a aparecer no topo das montanhas a leste. Raios de fogo projetavam-se em todas as direções, anunciando a chegada do astro-rei e o início de um novo dia.

Caminhando, no trilho calcado que seguia entre as árvores, o homem conhecido por Tone Canhoto, bufava com as costas carregadas por um grande saco de lona. Trazia um chapéu surrado e envergava um casaco demasiado grande. À cinta, no pedaço de couro que lhe segurava as calças, que não chegavam às botas cansadas, uma faca e a coronha decorada de uma pistola de fecho de pederneira espreitavam.
Repentinamente, apercebeu-se que não seguia ninguém atrás dele e pousou o saco no chão, olhando em volta, confundido.
— Xico…? — Chamou quase a medo. — Zé?
Ninguém respondia e não havia meio de aparecer alguém, nos cerca de cinquenta metros de caminho que conseguia ver até à curva.
— Raios partam… — Gemeu baixinho. — Onde demónios se encafuaram aqueles dois?
Com esforço, tornou a carregar o saco nas costas e avançou em sentido contrário, a procurar os companheiros.
— Vais morrer!!! — Uma voz forte gritou de entre as árvores, enquanto dois vultos lhe saltam ao caminho.
— Credo, em Cruz, mãe de Deus! — O Canhoto arregalou os olhos de susto e soltou um grito estrangulado, antes de reconhecer os amigos, que riam do terror que lhe haviam infligido. — Seus gandulos, artajeiros! Quase que me esfoiro todo de susto!
— Só queria que visses a tua fuça! — O mais magro do trio, chorava de rir, encostado a uma árvore.
— Mijaste-te, maninho? — Também o mais forte, a quem chamavam de Xico Zangão, tinha lágrimas de tanto gargalhar.
— Ah, vão à m**. Isto não se faz. — O Canhoto ainda tinha as pernas a tremer.
— Coitadinho… — O mais magro, conhecido por Zé Patranhas, fez menção de o acarinhar, mas foi prontamente sacudido.
— Sai-te daqui! Pincha-Grilos de um raio! Andas sempre à turra e à maça com o meu irmão, mas me fazerem galdrumeiras, já se ajuntam!
— Então, Tone. — Tornou o Xico. — Não sejas assim, borraste as ceroulas foi? — Soltou nova gargalhada em uníssono com o Zé.
— Raio que vos pele! — Amuou Tone, alombando novamente o saco e virando-lhes as costas, retomando o caminho.
Os outros dois, ainda a rir, correram a buscar os seus sacos, que esconderam no mato e tornaram para junto do companheiro, para o atazanar mais um pouco.
— Valeu a pena assaltar a casa do velho Menezes ou não valeu? — O Patranhas queria reconhecimento. — O Badocha deu-nos uma boa dica.
— Até gostava de voltar lá… — Riu o Canhoto. — A criadita era bem engraçada.
— Mesmo a mulher do Menezes, um velho asqueroso com uma lasca daquelas! — Acrescentou o Zangão. — E sorria-se toda para mim, parecia até que gostava de ser assaltada.
— E gostava! — Gargalhou o Patranhas. — Estava toda consolada, que eu estava a apalpar-lhe as cascas!
— Mentiroso! — Xico enfureceu-se. — Pantominas de um raio…
— Vá, calem-se lá, já vão começar novamente? — Interveio Tone, conciliador. — Temos aqui um bom saque para dividir e ir vender ao Galego de Chaves. Ou só se juntam contra mim?
Ai, é verdade! — Xico soltou uma sonora gargalhada. — Precisavas mesmo ver a tua cara de cagaço!
Enquanto estavam nestas brincadeiras, um enorme objeto voador, fortemente iluminado, passou a baixa altitude, quase roçando as copas das arvores e levantando uma nuvem de poeira, folhas e ramos soltos. Logo de seguida, o silvo grave que perseguia o objeto, ensurdeceu-os por segundos, até tudo se quedar num silêncio pesado. Uma enorme árvore seca caiu, mais à frente deles.
— Que demónios foi isto? — Perguntou o Patranhas assustadíssimo.
— Vinha a voar, com muita luz! Era um anjo! — Exclamou o Canhoto.
— Com aquele barulho dos infernos?!? — Discordou o Zangão. — Era na certa obra do mafarrico!
— Vamos embora, depressa. — O Zé não tirava os olhos da direção tomada pelo estranho objeto.
— Acho que está ali, por trás daquelas árvores. Vêm-se as luzes. — Apontou Tone. — Deve estar naquela clareira que há ali abaixo.
— Vou lá espreitar. — Anunciou o Zangão.
— É melhor não… — O Patranhas tremia visivelmente. — Anjo ou demónio, pode não gostar de ser visto.
— Sim, acho que, seja lá o que for, devemos deixá-lo em paz… — Concordou o Canhoto, para as costas do irmão, que abandonara o saco no chão e já se pusera a caminho.
— Oh, raios me partam, lá vai ele meter-nos em sarilhos! — A voz do Zé também tremia. — Com homens grandes ou mal-encarados eu cá me entendo, mas com estas coisas, não gosto nada de estar por perto.
Como o companheiro os ignorasse e, de varapau na mão, descesse o carreiro na direção da clareira, os outros dois olharam um para o outro, indecisos.
— É meu irmão… — Desculpou-se o Canhoto, empunhando a sua pistola.
Sozinho no caminho, o Patranhas olhou em volta, para as sombras das árvores, ainda mal saídas das sombras para o brilho do sol que nascia. Ficar ali, enquanto eles iam, também não lhe parecia grande ideia. Num resmungar choramingado, tirou os sacos abandonados no caminho para a vegetação e correu atrás dos outros dois. Tirou a pistola do cinto e armou-a.
Quando chegou junto dos outros, eles estavam escondidos na vegetação, fora da estrada e fizeram-lhe o gesto de silêncio, antes de lhe indicar que se aproximasse.
Para além do giestas e ramos onde se acoitavam, ficava uma enorme clareira, de mato rasteiro, que era por onde se arrastava um pequeno ribeiro, nas fúrias repentinas das chuvas invernais. Eles chamavam-lhe a praça dos recos bravos, pois, normalmente, viam-se imensos por ali. Agora, porém, era verão e o ribeiro estava quase seco e grande parte da clareira estava ocupado pelo que parecia ser uma imensa, luminosa e fumegante casa, sem janelas. Sentia-se uma forte emanação de calor que partia da inusitada construção.
Quando o Patranhas ia manifestar o seu espanto, o Zangão voltou a gesticular para que fizesse silêncio e apontou para o lado direito da construção, onde havia quatro pequenas pessoas vestindo o que parecia ser uma roupa inteiriça, cinzenta, da cabeça aos pés.
Os elementos do pequeno e estranho grupo gesticulavam entre eles apontando o céu e emitiam assobios e estalidos. Um deles, com o que parecia um pequeno graveto luminoso começou a escrevinhar em pleno ar e o extraordinário é que os gatafunhos apareciam e ficavam estáticos na frente dele. Outro deles, apagava alguns símbolos e substituía por outros, numa aparente correção, enquanto tagarelavam animadamente.
— Aquela porcaria vale uma pipa de moedas! — Sussurrou o Canhoto, olhando espantado para os outros dois.
— Vamos botar-nos a eles. — Sentenciou o Zangão. — Aparecemos-lhes de três lados diferentes. Eu quero uma caneta daquelas, como não sei escrever, pode ser que com ela não seja preciso.
— Mas… já viste? — Observou o Patranhas, pouco animado. — Eles são tão estranhos… que tipo de bicho são eles?
— São de fora, que queres? Não podem usar os paramentos que quiserem? — Simplificou o Zangão, sussurrando. — Por mim, até podiam vestir a albarda do cavalo. — E continuou como quem fala com crianças. — Aparecemos, tu e o meu irmão apontam-lhes as pistolas, eu dou uma barduada ou duas, se for necessário, pegamos o que queremos e chispamos daqui para fora. Agora vamos!
— Xico. — Também Tone estava preocupado. — Aquilo parece mesmo bruxaria…
Enquanto estão neste debate, um dos estranhos pega num pequeno retângulo e começa, como que olhando através dele, em semicírculo. Quando fica alinhado com a posição em que se encontravam os nossos assaltantes, para e chama o companheiro com um gesto. Os dois olham pelo retângulo e depois sem ele. Os três perceberam que tinham, de alguma maneira, sido detetados.
— Tem de ser agora, já! — Ordenou Xico erguendo-se e caminhando temerariamente na direção dos estranhos, de varapau em punho.
— Maldição! — Exclamou o Canhoto, erguendo-se também, mas engatilhando a pistola.
— Lá vamos nós arranjar problemas por causa deste torgueiro! — Gemeu Zé, seguindo os companheiros.
— Santa manhã, amigos! — Exclamou o Zangão para os quatro surpreendidos estranhos. — Tendes aí uma casa muito bonita.
— E também umas coisas interessantes. — Complementou Tone. — Vamos aliviar-vos do peso delas.
Os símbolos flutuantes desapareceram e os estrangeiros cinzentos começaram a gesticular e a emitir os assobios e estalidos entre eles, apontando os recém-chegados.
Percebendo a ameaça, o que estivera a escrever no ar, fez um pequeno gesto com a "caneta" e as pistolas dos dois assaltantes saltaram-lhes das mãos e colaram-se ao chão milagrosamente. O mesmo caminho seguiu o punhal do Canhoto que, no trajeto, cortou-lhe o pedaço de couro que fazia de cinto, deixando-o literalmente com as calças na mão. Não aconteceu o mesmo ao Patranhas, porque o cinto era mais resistente e ele conseguiu livrar-se da faca que era irresistivelmente atraída para o solo. O Zangão viu-se de repente o único com uma arma e carregou sobre eles soltando um chorrilho de palavrões.
Outro dos cinzentos conseguiu atirar, do que parecia uma mão vazia, uma rede de fios finíssimos, que crescia à medida que voava na direção do atacante. A teia caiu sobre o assaltante e colou-se fortemente aos braços e às pernas fazendo-o cair.
Com o elemento mais forte imobilizado, o Patranhas e o Canhoto perceberam que precisavam de uma nova estratégia. Após uma fração de segundo de hesitação, fugiram para o mato.
O cinzento que atirara a teia, obviamente o chefe, fez um gesto aos restantes, que saíram a correr atrás dos fugitivos.
— Solta-me desta merda, espantalho! — Gritava o Zangão debatendo-se.
O chefe ignorava-o. Olhava para o pequeno retângulo com que os localizara e emitia os ruídos da sua fala, dando instruções aos companheiros.
— Quando me soltar desta bosta, vai levar tantas… — Insistia o Zangão.
O cinzento dignou-se a deitar-lhe um olhar do seu rosto inexpressivo, onde quase não existia nariz, entre os enormes olhos negros e a boca era pouco mais do que uma fissura sem lábios. Apontou-lhe a palma da mão e saiu outra das teias de aranha, mais pequena e que se colou na cara do furioso Xico. Com a mão esquelética de quatro dedos, compôs a cola sobre a boca do prisioneiro, de forma a reduzir os seus gritos a irados grunhidos. Após isso, ergueu elegantemente a mão atravessada sobre a boca, numa caricatura do sinal de silêncio. Depois regressou ao acompanhamento da caçada.
Não tardou que os três cinzentos regressassem com os dois aterrorizados amigos, o Canhoto ainda a segurar as calças. Mas é nesse momento que se dá a reviravolta; o furioso Zangão está a conseguir soltar-se das teias que o prendiam. Os incrédulos cinzentos olham para o homem a cortar os fios com uma faca.
— Vocês estão tão, mas tão f**! — Exclamou Xico empunhando a arma. — Isto é uma lâmina de osso, não de metal!
Mas mesmo assim, colocou a arma no cinto e pegou no varapau.
— Agora vou mostrar-vos com quantos paus se faz uma canoa! — Gritou Zangão começando a perseguir os apavorados cinzentos, que emitiam assobios aflitos.
Depois de uma curta, mas intensa perseguição, onde eles conseguiram furtar-se por pouco aos golpes de varapau, os quatro estranhos conseguiram reunir-se junto da estrutura e uma luz azul envolveu-os.
As pauladas de Xico estouravam ruidosamente sobre a luz azul, mas não conseguiam atingir os cinzentos, que mesmo assim se encolhiam de medo.
Tone e Quim, finalmente se recuperavam do medo e, vendo as criaturas encurraladas, atiravam-lhes com o que podiam, embora tudo fosse repulso pelo halo azul. O chefe das criaturas parecia escrever febrilmente no retângulo que já antes usara.
Por fim, abriu-se uma porta atrás dos cinzentos, de onde provinha uma fortíssima luz branca e ele correram de imediato para ela. Assim que a porta se fechou, o azul que os envolvia desapareceu e o Zangão conseguiu aproximar-se estrutura. Estranhou não ser metal nem madeira, nem nada que reconhecesse, mas era sólido o suficiente para o seu bordão e ele usou-o por várias vezes.
— Saiam daí, seus vassouros, venham cá para fora! — Gritava Xico. — Covardes!
Repentinamente, toda a estrutura ficou envolvida pela luz azul e os três amigos foram projetados para trás com violência. De seguida levantou voo silenciosamente e desapareceu em segundos no céu azul.
— Eu não disse que era bruxaria? — Gemeu o Canhoto sentado no chão. — Escapamos de boa.
— Escapamos? — O Zangão olhou para o irmão. — Eles é que nem sabem do que se safaram! Estiveram assim de levar um chuveiro de barduadas, que tão cedo não esqueciam!
— Este raivoso do catano! — Exclamou o Patranhas. — Está sempre a meter-nos em alhadas!
— Raivoso? — O Zangão ergueu-se com o varapau em riste. — Seu aldrúbias canastrão! Olha que eu…
— Lá estão eles outra vez! — O canhoto levantou-se e virou costas aos dois amigos que discutiam acaloradamente.
 
 
Nota do autor: Este acontecimento deu-se algures no século XIX, mas acredito que, por causa dele, são pouco vulgares em Portugal fenómenos envolvendo extraterrestres ou OVNIs).

Manuel Amaro Mendonça
nasceu em Janeiro de 1965, na cidade de São Mamede de Infesta, concelho de Matosinhos, a "Terra de Horizonte e Mar".
É autor dos livros "Terras de Xisto e Outras Histórias" (Agosto 2015), "Lágrimas no Rio" (Abril 2016) e "Daqueles Além Marão" (Abril 2017), todos editados pela CreateSpace e distribuídos pela Amazon.
Ganhou um 1º e um 3º prémio em dois concursos de escrita e os seus textos já foram seleccionados para mais de uma dezena de antologias de contos, de diversas editoras.
Outros trabalhos estão em projeto e saírão em breve, mantenha-se atento às novidades AQUI.

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