terça-feira, 1 de setembro de 2020

Vinho e azeite sobre seda (e o Douro)

 É conhecida como “vila manuelina” e está em território agreste e remoto, a planar nas arribas do Douro. Freixo de Espada à Cinta está a caminho de nenhures, mas com vontade de ser um destino: a geografia deu-lhe história convulsa, beleza natural e vida dura - um território único.
Maria Júlia Martins, 69 anos, é quem supervisiona o trabalho no Museu da Seda e do Território. Já perdeu a conta às vezes que ensinou a arte da sericultura

Maria Júlia Martins já quase perdeu a conta às vezes que foi chamada pela autarquia para ensinar a arte da sericultura e da tecelagem de seda. Aos 69 anos, já reformada e depois de uma operação devido a uma ruptura nos tendões, “por causa do tear”, está uma vez mais a supervisionar o trabalho no Museu da Seda e do Território (2015). “Nem todos fizeram curso, mas muita gente aqui na vila sabe a arte”, conta. Na sua família até havia tradição, mas ela não a seguiu. “Ia para a geira. Dos 14 aos 37 anos trabalhei no campo.” E, então, aos 37 anos entrou “para esta casa” e ficou sempre com um pé dentro. Tem muito orgulho no que faz. “É muito bonita a nossa seda”, exclama, “no nosso país este é o único sítio onde se faz como se fazia no século XVII. Nada de máquinas.”
Neste canto do país encostado a Espanha, a caminho de nenhures, como ouviremos repetidas vezes, a cultura da seda - a sua produção e tecelagem - manteve-se um anacronismo que desde alguns anos é cabeça-de-cartaz: Freixo de Espada à Cinta apresenta-se como “Terras de Seda”, parte de um esforço para recuperar uma actividade tradicional que está imbricada na história do concelho e que, reivindicam, se mantém como a única artesanal na Península Ibérica. Nos últimos 40 anos, duas associações tentaram manter vivo o ofício, mas a última extinguiu-se em 2019 e o município decidiu assumir a gestão da seda.
Maria Júlia começou com uma formação, ainda nos anos de 1980, e com ela Júlia Brás, 58 anos. “Comecei de solteira”, recorda, e “havia mais gente a fazer”. “Quando o artesanato [Associação para o Estudo, Defesa e Promoção do Artesanato] fechou, muitas venderam os teares. Fiquei só eu e a [Maria] Júlia.” “Isto é pouco rentável”, nota Maria Júlia, “aqui, estamos a recibos verdes, mas pode acabar”. “Logo no primeiro curso, se tivessem deixado três ou quatro efectivos podíamos ter uma indústria boa”, lamenta. Em 2018, foi promovida a mais recente formação, um curso profissional, e agora são oito as mulheres a trabalhar, sendo as duas Júlias as mais experientes no museu, onde todo o ciclo da seda se pode observar - ao vivo. Desde os bichosda-seda, dispostos em tabuleiros amplos margeados por arçã ou rosmaninho, com abundantes folhas de amoreira, (alguns já são casulos, brancos, “os melhores”, ou amarelos) às várias fases da preparação da seda, terminando no trabalho no tear.
É no tear, concentrada, numa sala envidraçada do primeiro andar, que está Júlia. Está a trabalhar algodão, por isso o toque “é forte”. Quando trabalha a seda, “muito fina”, o toque dos teares é feito “com carinho, devagarinho”, explica. “Se não for bem feito, fica solto.” Nesta sala, mais tranquila que a oficina do rés-do-chão onde toda preparação da seda se faz, tem a companhia de Otilde, e Elodie (“do curso, fui a mais nova a ficar, muitas não queriam” - tem 30 anos), que trabalham “maranhos” - “seda de segunda”, mais grossa, resultado de casulos rompidos, como nos explicara Maria Júlia - “para as franjas duma bolsa”. As incursões pelo tear ainda são tímidas - mas esse é o objectivo.
Júlia também passou pelo ritual. “Não sabia nada, iniciei a fiar e fui aprendendo.” Um dia, pediram voluntárias para trabalhar no tear.
“Eu fui.” E foi ficando; agora faz uma toalha em três semanas. Toalhas, carteiras, porta-moedas, porta-chaves, écharpes fazem parte da oferta na loja do museu - “antes só trabalhávamos por encomenda, agora fazemos, as pessoas vêm e compram”, assinala Maria Júlia -, onde se percorre a história da sericultura, que caminha paralela à da região.
Foi no final do século XVIII que a produção da seda atingiu o seu apogeu em Freixo de Espada à Cinta, território de fronteira com pergaminhos na defesa do país, que tem na sua natureza agreste a sua bênção e a sua maldição: belo de ver, difícil de trabalhar. Em pleno Parque Natural do Douro Internacional e região demarcada do Douro (a adega cooperativa local, Montes Ermos, tem como slogan “O Douro começa aqui”), este concelho é predominantemente rural e a vinha e o olival dividem o protagonismo - “não há mais olival porque não é valorizado”, opinam (e o amendoal parece estar a regressar, pelo menos atendendo às novas plantações que se avistam). Entre vinhos (e os brancos são especiais), azeites, cervejas e algo mais, percorremos as estradas sinuosas deste canto do Douro Superior.
Heranças e sonhos vínicos
Quando a mãe de Manuel Gomes Mota nasceu, em Lisboa, o avô levou um bocado de terra de Freixo de Espada à Cinta para a maternidade.
É um “apelo telúrico”, reflecte, que manteve a família ligada à vila mesmo já não vivendo aqui há três gerações, desde que esse avô, precisamente, deixou Freixo de Espada à Cinta para ingressar na Marinha. A família passou a vir apenas nas férias, na quinta dos avós. Não é essa a quinta onde estamos hoje, mas ambas faziam parte do conjunto de quintas que o trisavô de Manuel, José Junqueiro Júnior, pai do poeta Guerra Junqueiro, comprou em Freixo em meados do século XIX.
Na Quinta de Maritávora faz-se vinho há 150 anos e há uma vinha velha, “icónica”, de 1890, que fascinou o enólogo da quinta, Jorge Serôdio Borges. É uma vinha velha branca, “uma raridade”, de onde agora sai o Maritávora Grande Reserva Branco: “Acho que tem a ver com o facto de terem sido mulheres a tomar conta da quinta desde a minha bisavó”, brinca Manuel, “as mulheres sempre preferiram o vinho do Porto branco, por isso não a arrancaram”.
E vinho do Porto era o produto da Maritávora, que o vendeu sempre à Cockburn’s e à adega cooperativa.
Até que, em 2003, Manuel, que mantém a sua actividade profissional em Lisboa (é gestor), tomou as rédeas e fez uma “mudança radical”: decidiu começar a fazer o seu próprio vinho, DOC, e reactivou a adega, a que gosta de chamar a “adega mais pequena do Douro”.
O edifício branco está agora rente à estrada, que daí a umas poucas centenas de metros desagua na vila e guarda história. A sala dos lagares (onde a pisa continua a ser feita a pé) ainda mantém os originais; as pedras das paredes estão assinadas - “Eram do castelo, de certeza. As casas antigas por aqui têm-nas”. Guarda também uma cautionary tale: Manuel aponta o tecto, novíssimo - em 2012 decidiu fazer uma cuba de inox (“às vezes terminamos a fermentação lá”) à medida; quando esta chegou não passava pela porta. “Tive de desfazer o telhado para a instalar e mantive a cor diferente para me lembrar da burrice”, diz.
À espera de restauro estão alguns edifícios de pedra que espreitam na propriedade. Vão ser convertidos em unidades de alojamento, uma aposta no enoturismo, que terá como porta de entrada uma loja de vinhos com sala para provas orientadas. Porque, acredita Manuel, o vinho, como prática cultural que é, tem de ser explicado,
“como as gravuras de Foz Côa”.
“O vinho é expressão de tudo o que temos aqui, é necessário prová-lo com enquadramento”, defende. As castas, por exemplo, são “uma prática cultural” e aqui “resultam da tradição
de séculos”, que emprestam aos vinhos “uma personalidade muito própria”.
Na Quinta Maritávora essa é a filosofia. Na vinha velha, onde permanecem três oliveiras, a lembrar o tempo em que eram aqui culturas complementares, e a tradicional bordadura de amendoeiras, mantêm-se, por exemplo, 15 castas, Códega de Larinho à cabeça, a casta “nativa” de Freixo que esteve quase extinta, e Rabigato, por exemplo. Nos tintos, não foge às “três principais do Douro”, a Touriga Nacional, a Tinta Roriz e a Touriga Franca, “o trio maravilha”, avalia.
E, para tentar que os vinhos “sejam mesmo resultado de onde vieram”, em 2009 fez a transição para a agricultura biológica. Tem, admite, “outro tipo de mercado, com menos concorrência”. Mas é, sobretudo, mais sustentável, defende. “Eu herdei uma vinha com 130 anos porque só durante 20 ou 30 não foi biológica”, sustenta, “se a quero deixar para os Meus filhos tem de ser assim”.

Andreia Marques Pereira (texto) e Paulo Pimenta ( fotos)

Sem comentários:

Enviar um comentário