terça-feira, 27 de outubro de 2020

IR COM OS TEMPOS

 Há quem continue a recusar a nova ortografia, que já tem trinta anos. Não é de agora este tipo de birra, muito boa gente, inclusive o grande Fernando Pessoa, tinha feito o mesmo com a de mil novecentos e onze, a anterior. 
Por um lado, a nossa relação com a língua é de posse, portanto de afeto, o que fica claro pelo simples facto de lhe chamarmos materna. Daí opormo-nos a que toquem nela, ainda por cima sem nos dizerem água-vai. É como quando alguém nos invade uma propriedade, muda de sítio, usa, estraga objetos pessoais. Depois, também somos conservadores no sentido em que as novidades costumam deixar-nos inseguros. Instalados dentro das nossas zonas de conforto, como agora se diz, elas são incómodos que podem pôr-nos à defesa. Para outros, resistir prende-se ainda com vontade de afirmação, rebeldia, transgressão próprias de quem não gosta que lhe deem ordens. 
É mais disto que se trata, e não de racionalidade ou de um saber fundamentado. Como em tudo, nas línguas há factos de que as pessoas comuns não se apercebem. 
Para começar, existe a ilusão de que elas são lógicas. E de facto, em parte são. “Eu tenho sede” é uma frase que pode ser traduzida para qualquer outra língua por pertencer à parte lógica. Mas também estão cheias de anomalias, irregularidades, daquilo que sempre se disse ou escreveu sem que haja justificação racional para isso. É o que acontece com as expressões fixas e idiomáticas, os usos figurados, os provérbios, os aforismos, etc. são de tradução difícil, ou mesmo impossível. Como se pode traduzir “dar à sola” ou “arrear o calhau” sem que se perca quase tudo? Não pode. 
É por acreditar na coincidência entre língua e lógica que há quem faça questão de pedir “um copo com água”, não vá o interlocutor achar que lhe estão a pedir um copo fabricado com esse líquido se disser “um copo de água”. Ou declarar que vai “desfazer a barba” para que não se julgue que vai plantar pelos na cara se afirmar que a vai fazer. Mas não há que rir, todos nós usamos a toda a hora inúmeras incoerências destas: falamos de algo que correu os “quatro cantos do mundo” mesmo sabendo que o mundo não os tem, ou adiamos um serviço para “de hoje a oito dias”, quando nesse período nunca contaremos mais que sete. Do mesmo modo, não há muito a noção de que a língua propriamente dita são os sons que deitamos pela boca e que a escrita é apenas uma representação deles. Como os sons vão mudando com o tempo, a escrita deve procurar acompanhá-los, mesmo de forma imperfeita. Quem resiste às mudanças vê na ortografia algo fixo que deseja conservar assim, mas basta ler um texto do século dezasseis para ver a enorme evolução da escrita desde então: para além de letras diferentes das de hoje, tanto maiúsculas como minúsculas, não havia acentos gráficos, as abreviaturas eram estranhas e mais que muitas, hesitava-se entre juntar as palavras umas às outras (como quando falamos) ou separá-las, a pontuação quase não existia, a ligação das frases tinha muito pouco a ver com o que agora fazemos, uma palavra podia ser escrita de três maneiras diferentes na mesma página…
Um conhecido humorista dizia que retirar o “c” de arquitectas resulta numa palavra feia porque o “c” serve para abrir a vogal anterior. Mas nós abrimos e fechamos vogais mesmo que nada lá nos diga para o fazer, como em “gelo” e “pedra”, “novo” e “novos”. Geralmente um som representa-se por uma certa letra, mas poderia sê-lo por outra qualquer. Ou por duas, como em aqui, acho, assim. Ou nenhuma, pois costumamos pronunciar sons que não escrevemos, como acontece com “saiem”, “muinto”, “treuze”. Representamos o mesmo som por letras diferentes: as sublinhadas em “gato” e “mau”, por um lado, e em bem e pães, por outro, têm os mesmos sons. Até escrevemos letras de sons que não existem, como em escada, hoje, vale. Os teimosos só não sabem que todas estas estranhezas lhes são impostas. Se o soubessem, iam resistir. 
Estranho é aquilo a que não estamos afeitos, o que se pode aplicar a quase tudo. Por acaso a mim ainda não me entrou bem que a terceira pessoa do singular do presente do indicativo do verbo “parar” tenha passado a escrever-se “para”, por causa da confusão com a preposição “para”. Mas é uma questão de tempo. 
Por ora, depois de anos a praticar bastante (até por ser obrigado a isso), já consegui que me faça diferença ver escrito “actividade” ou “recepção”.

Eduardo Pires

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