segunda-feira, 16 de novembro de 2020

Arroz de gasalhos

 Desde que me lembro, e antes de antes disso, no dia um de novembro, é dedicado a lembrar mais um pouco os familiares falecidos, mantendo uma memória que é pátria inviolável de cada um de nós.
Este dia deste mês em cada ano, assume, pois, e para além disso, uma oportunidade de encontro entre familiares próximos e amigos chegados que ao longo do ano andam por lugares mais distantes. São horas dum dia que nos tornam e nos fazem ser um pouco mais especiais.
Durante alguns anos, tive a sorte de passar esse dia entre todos os meus em proximidade com aqueles que vindos da mesma cepa, não deixavam nem deixam de ser uma das muitas gavinhas que me seguram no arame forte, mas balanceador que é a vida.
Contrariamente ao que muitas vezes se pensa, a vida é feita de coisas belas e simples. Podem ser complexas ou ficar incompletas devido à sua simplicidade que nos leva a não as concretizar ou valorizar, mas são elas que nos ficam na retina, que nos moldam o ser, e nos dão sustentabilidade no caminhar.
Naquele tempo, depois se terem dado e recebido os aconchegos por entre as memórias dos fisicamente ausentes e de se terem feitos as rezas a preceito, era a hora da merenda em redor do lume já aceso em casa dos meus pais, núcleo central da família por inexistência da casa ancestral dos meus avós.
Como era a meio da tarde e eram para cima de duas mãos cheias os comensais, o repasto decorria em jeito de alegre convívio. Depois de consoladas que estavam as almas com o deve feito, havia que consolar os corpos com algo de se comer.
Mandava ali a tradição que se comesse arroz de gasalhos, um dos modos de se chamar o fungo mais comummente conhecido por cogumelo. Pode também comer-se assado nas brasas ou frito, como pedaço de carne sem que deixe de ser uma delícia, mas para dar para mais bocas, com arroz era o mais aconselhável.
A mesa era complementada com muitas coisas mais, ou não se estivesse em casa de lavoura, mas o que sabia bem e satisfazia os paladares era o arroz de gasalhos que fazia um cristão lamber os beiços e chorar por mais. Um naco de presunto e broa, uns pedaços de bola, e um copito de vinho a empurrar e estava armado um verdadeiro banquete.
Ficou-nos na memória e ainda nos sabe na boca a merenda do dia de finados, que se repetia igualzinha de ano para ano, enquanto as circunstâncias da vida permitiram que o quadro se mantivesse inalterado. Ainda se mantém dependurado nas paredes das memórias, mas já se ausentaram os seus criadores.
Mas quantos aos gasalhos. Eram apanhados pelo meu pai. Era dos melhores da aldeia nisso. Sabia dos solos com melhores condições para eles nascerem e ia a eles madrugador e com pé ligeiro. Como se sabe, o petisco em caso de engano do apanhador é mortal, mas ele distinguia-os bem e podia-se comer com confiança o fruto da sua recolha.
Por acaso eu também sei onde os há, mas não me atrevo. Em todo o caso, se alguém quiser, é só dizer. Eu envio e depois logo se vê, pois não tenho bem a certeza no distinguir. Tenho algum receio de me enganar.
O que sei, é que dava tudo para comer um daqueles arrozinhos de gasalhos outra vez e com as mesmas pessoas. Mas não pode ser. Pois não?

Manuel Igreja

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