terça-feira, 3 de novembro de 2020

O que guardamos em nós

Por: António Orlando dos Santos (Bombadas)
(colaborador do "Memórias...e outras coisas...") 

A foto que destapou as recordações
 da minha cidade.
Quase na base da árvore do
 lado esquerdo
vê-se a casa onde nasci.
Vi no Facebook uma foto publicada por Henrique Martins que me fez abrir o baú de recordações e me transportou para outro tempo que foi para mim marcante. 
A primeira reacção foi de nostalgia que se mudou em gáudio por me ser possível rever o local onde nasci, como era nos tempos idos da minha vinda ao mundo. Ainda resta algo das imagens que nos dão a perspectiva de uma cidade velha, quiçá decadente mas pronta para encetar a tarefa que lhe competia de se renovar para o futuro sem renegar o passado. 
E a vida na sua máxima expressão estava ali, naquela rua, naquela gente, naquela comunidade que vivia ali e trabalhava dispersa pela cidade em todos os lugares que foram os da minha criação e que hoje estão diferentes mas mais agradáveis pois que aconteceram factos e se fez obra que democraticamente se pode contestar mas que é palpável e concreta com o timbre das nossas forças e da nossa capacidade.
Mas não são as pedras, que contam, pois que elas não falam, foram as pessoas que me ensinaram, me deram carinho e me emendaram, me mostraram a estrada e me prepararam para a caminhada desta vida já quase passada, mas que se fez com os que me acompanharam nos caminhos lisos e nos penhascais, que alguns pisei com os meus iguais.
Essas imagens que hoje revi fazem-me lembrar de muita gente e muitos momentos que ficaram gravados na minha memória e é só destapar um pouco, para surgirem em catadupa e fluírem livres pelos olhos da minha alma.
Sou homem mas foram as mulheres que mais influenciaram o meu carácter, a minha mãe, a minha irmã mais velha e todas as outras, da minha rua ou não, que todas elas foram parte da minha criação. As  que viviam no tempo em que eu cirandava pelos quatro cantos da cidade em todas as ruas, umas mais serenas  e outras mais loquazes, as que me corrigiam e as que me ralhavam.
Eu era livre como os passarinhos e todos me conheciam, daí eu ter conversa com todos eles, e cedo aprendi que as pessoas sendo todas iguais, umas eram de um feitio e outros de diferente modo. Mas eu já apreendera que todas mereciam o meu respeito, a minha amizade e em lugar cimeiro a minha solidariedade.
E lentamente fui crescendo e assimilando a minha cidade que tinha em si tanta gente boa que trabalhava, estudava, ria e chorava. E a minha alma estava com eles, com os que comigo sentavam nas carteiras da Escola da Estação e obedeciam à ordem imperativa, mas de tom suave da minha querida professora Dª Isabel Belchior, ou comigo jogavam à bola na Cortinha da Albininha Guerra, ou me acompanhavam nos cânticos dolentes de índole religiosa, quando em Janeiro cantávamos à Senhora da Paz. Os que comigo iam ao futebol, ver o Zurdo e o Micá, o Olegário e o Chico Ferreira, o Zé Santana e o João Reis, o Simeão ou o Taiti.
Primeiro foram os tempos da inocência que a minha mãe cuidou e soma dos dias que me despertaram para o grupo de amigos de infância e depois o grupo que fez de mim um homem, mas foi com a geração mais velha a dos meus pais que me fiz capaz de ser quem sou com toda a humildade que seja necessária.
Tenho em outros desabafos mencionado alguns dos homens que me marcaram positivamente, os que me ensinaram com o seu exemplo e palavras certas a acreditar nos homens e a sentir-me seu irmão. O meu pai e o meu irmão mais velho, alguns dos que com eles labutaram na construção de muitas casas nesta cidade, o meu sapateiro, Senhor Malã, o meu amigo, Alberto Garrido, a esmagadora maioria dos comerciantes da Cidade, que nesse tempo eram muitos e sempre prontos a darem uma lição de boas maneiras aos garotos que diziam eram o futuro da humanidade. 
As lições que se escutavam na Barbearia Ideal, com gente de palavra escorreita e atitude equilibrada, foram luzes que me aclararam o caminho às vezes escuro que percorri. Não deixarei de mencionar o meu patrão Zé Poças que me ensinou a ser sereno, atento e trabalhador. Foi um homem de Bragança a quem a cidade muito deve e a quem ainda não se fez justiça, pela sua finura de trato e capacidade empreendedora e compromisso para com a Cidade. Um dia cumpriremos com o dever que temos de dizer aos nossos filhos e netos quem foi este homem, a quem nem uma pedra que diga que ele está ali sepultado fomos capazes de levantar.
Vai longo este relembrar de actos de uma vida que uma foto destapou.
Quero dizer-vos que eu como todos os outros tive mestres no meu ofício que foram influentes no construir da minha vida mas os que mais me transmitiram um sentido que me norteou neste tempo longo que se apressa, foram as mulheres que me criaram e os homens que me ensinaram. Eram gente da minha terra e por isso me sinto agradecido e orgulhoso de lhes pertencer. (Sentei-me à mesa redonda/Bebi da malga que esconda/Um beijo de mão em mão/Povo, povo eu te pertenço/Deste-me alturas de incenso/Mas a tua vida não/. (Pedro Homem de Melo).



Bragança 29/10/2020
A. O. dos Santos
(Bombadas)

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