terça-feira, 17 de novembro de 2020

O que a vida me deu - 1ª PARTE

Por: António Orlando dos Santos (Bombadas)
(colaborador do "Memórias...e outras coisas...")

Olho para trás, pensando no passado e tentando ser frio nas minhas análises. Esforço-me para não sentir aquela nostalgia quase mórbida que me leva a quedar-me isolado e passe a ser uma entidade em paragem cerebral, mudo de estado de espírito e volte  a ser a soma do antes, agora e depois cujo resultado é, Eu!
Para mim, as pessoas mais que os lugares são o princípio e o fim de todo o processo que começa com o nascimento e termina inexoravelmente no momento da morte. Mas a vida tem outras facetas qual delas a mais complexa e dificílimas de compreender e impossíveis de serem explicadas.
Vejamos o caso do sentimento que eu nutro pela Praça da Sé. Embora eu a sinta, à praça, claro, como fazendo parte integral do que são as minhas memórias não consigo entender porque tudo que hoje se lá passa, é automaticamente associado por mim a outra realidade física que não se enquadra naquilo que eu considero como Meu. Mas há uma maneira de fazer tudo de novo e conciliar a impressão antiga com a hodierna. Junto -lhe a gente que lá passava, ou trabalhava, ou vivia e consigo obter uma imagem mais condizente com as arquivadas na caixa craniana.
Assim revejo o Café Central, no tempo em que eu ia entregar os pastéis e o Zé Verde-gaio me chamava para o fundo do balcão para passarmos a Pastelaria para um tabuleiro que ele depois cobria com papel celofane e colocava em lugar de destaque, visando os que tomavam o galão de café com leite, em copo grosso de vidro com suporte de aço cromado, se decidirem a aumentar a despesa um pouco mais somando ao preço do galão 1$20 se pedisse pastel ou 1$00 sendo Bolo de Arroz.
Nos bilhares a azáfama era constante em um dos dois que era utilizado pelos rapazes estudantes, que vagava facilmente e ainda mais facilmente recomeçava com os "esperas" neófitos que olhando de soslaio iam assistindo à fleuma do Alferes Fernandes que passava os dias a dar pancada nas bolas e a roçar a calça de cós com pregas, que se deliam de tanto encostar ao bilhar. 
Encostado ao balcão, com um braço apoiado neste e um copo na mão em pose de palestrante, perorava o Dr. Gonçalves dizendo de sua justiça e satirizando os mais condescendentes ao mesmo tempo que ia por metáforas achincalhando o Governo.
O Snr Alberto Rodrigues a quem chamavam o Cinzento , o que não me parecia adequado era o proprietário do Central e também da Sapataria da Moda. Era tio de dois rapazes, um o Orlando que era pouco mais velho do que eu, pois andava na D. Beatriz Monteiro, o qual perdi de vista já que a vida dá muitas voltas e alguns foram e não voltaram e de outro ainda hoje meu amigo e conhecido por todos os brigantinos que gostavam de futebol. Falo do Jaime. O Águas que tomou o chamiço do famoso avançado de centro da equipa do Benfica que nesse tempo varria a Europa com a sua classe. Era já homem de certa idade o Snr. Alberto Rodrigues, mas como andava sempre bem ataviado (também usava polainitos), de fato Príncipe de Gales e camisa de colarinho com gravata de nó perfeito era para mim como alguém que sempre ali estivesse desde o tempo dos Afonsinhos.
Eram estes senhores os quatro personagens que davam vida ao Central no tempo em que li Os Três (4) Mosqueteiros de Alexandre Dumas e que pensava que os do Central também não eram três mas quatro.
No Chave D'Ouro a coisa piava mais fino, havendo no entanto espaços que tacitamente eram ocupados por uma elite que eu não contesto por ser algo não imposto, antes o reflexo do analfabetismo que inviabilizava a possibilidade de diálogo entre uma certa classe de pessoas e o trabalhador comum que era bem vindo e a quem apenas se exigia que fosse comedido em palavras e gestos.
Aqui comandava o Snr José Leão que era assessorado pelo Costa que já mancava um pouquinho e as sempre prontas Laura e Marquinhas. Era um passar de vivências e de diálogos, os mais díspares e impensáveis. Discutia-se sobre temas que hoje parecem banais, mas que nesse tempo implicavam algum perigo. 
Lembro que nas horas que se seguiam ao jantar, quando se juntavam alguns homens mais conhecedores das letras e que punham empenho em singrarem na vida, se discutia política, uma "soft politic" onde se discutia a Guerra em Angola baseadas as opiniões em testemunhos de antigos combatentes que passados à situação de disponibilidade davam a sua opinião baseados no que viram e ouviram.
Na parede do Solar dos Calainhos, entre o Café Central e a Barbearia do Gardel havia um escaparate onde todas as manhãs um funcionário do Governo Civil colocava a primeira página do Diário da Manhã e alguns outros recortes das novas mais favoráveis ao Governo. Este jornal serviu de base de politização de alguns dos nossos que se passaram para o gratificado dos Caciques, passando rumores para quem os farejava e não lhes pagou o opróbrio. 
Mas o Chave D'Ouro era muito mais. Era também o lugar onde o Snr Macedo pai do Germano, serralheiro de provas dadas e "Dandy" de fim de semana, cáustico e mordaz, ao domingo de manhã e quase à hora de almoço, enquanto o Senhor José Leão mexia o pote do café de saco, o Macedo sorrateiramente metia a cabeça para lá da porta e alto para ser ouvido gritava: -Viva a República. O Snr José Leão como se fora uma mola levantava-se e dizia: -tirem-me esse homem daqui que um dia perco a cabeça. O Macedo calmamente desandava e descia a Rua Direita até às escadinhas, fletia para a direita, descia-as  e ia almoçar que a mesa estava posta.



Bragança 14/11/2020
A. O. dos Santos
(Bombadas)

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