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SOBRE O BLOG: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blog, apenas vinculam os respetivos autores.

segunda-feira, 9 de novembro de 2020

Os ‘lobos bons’ de Montesinho

 Gostava de ver um lobo? É difícil, pois eles ainda fogem mais de nós do que nós deles. Mas nada como tentar.
O Nordeste transmontano é a nossa aposta


A abundância de presas silvestres, o coberto vegetal propício e a atitude de uma população humana que convive saudavelmente com este canídeo, fazem de Bragança um santuário do lobo em liberdade. Aqui, a história do ‘Capuchinho Vermelho’ faz pouco sentido, pois o que estas gentes veem é um predador que, ao invés de comer pessoas, se alimenta maioritariamente de javalis, corços e veados, os animais que realmente lhes causam prejuízos nas culturas agrícolas. As boas condições naturais, somadas aos hábitos de pastoreio no Parque Natural de Montesinho (PNM), com rebanhos não muito grandes, sempre com um pastor por perto, acompanhado por um ou dois cães de gado, fazem com que os ataques aos animais domésticos sejam muito menos por aqui do que noutros locais onde o gado é deixado em semiliberdade na serra.

É, pois, natural que estas gentes vejam o lobo como um animal idêntico aos outros, sem qualquer associação ao sobrenatural, a  lobisomens e quejandos e não lhe movam as perseguições que sofre noutros sítios. É uma sã convivência que a todos beneficia e que pode revelar-se um trunfo no futuro.

Afinal, os lobos, além de serem uma ‘espécie guarda- chuva’ — preservando-se o predador de topo, garante-se que as suas presas não cresçam desmesuradamente —, também são uma ‘espécie bandeira’, cuja notoriedade deixa poucos indiferentes.

Veja-se o caso do Parque Nacional de Yellowstone, nos EUA, onde um estudo avaliou em 32 milhões de euros as receitas que os turistas, atraídos pela presença do lobo, deixaram na região em 2006. Já em Espanha, na serra da Culebra — na província de Zamora, que faz fronteira com Trás-os-Montes —, onde a promoção turística é feita usando como bandeira este animal, estimou-se que a receita deixada pelos ‘visitantes do lobo’ em 2012, só em dormidas e refeições, alcançou os 600 mil euros.

Duarte e a sua cadela "Alice. Foto: João Paulo Galacho

Bragança tem a rondá-la algumas das alcateias mais saudáveis de Portugal, com o seu séquito de presas silvestres, que também nos aceleram o coração quando temos a sorte de as avistar. Ser surpreendido por um corço, o apelidado ‘duende da floresta’, que aparece tão de surpresa como se esfuma no momento seguinte; ouvir a brama dos veados, tentando descortinar ao longe os machos a exibirem-se às fêmeas; ser surpreendido por um restolhar e logo de seguida ver saírem disparados dos arbustos uma mãe javali, com os filhotes atrás e, claro, ter a sorte de vislumbrar um lobo, o troféu máximo, são situações que nesta região têm boas probabilidades de acontecer.

“ALICE” E OS LOBOS
Duarte Cadete, 41 anos, biólogo, mora em Rio de Onor, no coração do PNM, há cinco anos. Nasceu em Lisboa e o seu percurso profissional esteve sempre ligado ao lobo. Começou por estudar a pequena e frágil população a sul do rio Douro e depois de várias passagens por outras regiões, algumas no estrangeiro, escolheu o Nordeste transmontano para viver. Criou uma empresa, a Dear Wolf, onde biólogos especializados em vida selvagem prestam serviços nas áreas do ecoturismo, monitorização e consultoria, ao Estado – participam no Censo do Lobo que decorre atualmente –, mas também a clientes particulares, sempre em estreita e saudável colaboração com os serviços do PNM. Propõem uma visitação científica, para um público diferenciado, que procura experiências diferentes, num local onde o turismo não está massificado e que Duarte define como “um hotel de cinco estrelas para os animais, especialmente para os lobos, mas também para as pessoas. Aqui impera o silêncio, a tranquilidade, a etnografia é riquíssima, a gastronomia genuína e, com tempo, não é muito difícil observar a abundante fauna selvagem.”

“Alice”, uma cadela rafeira de sete anos, adotada há cinco, no canil municipal de Torres Vedras, é a grande companheira/ajudante de Duarte. Foi escolhida entre muitos animais testados em duas dezenas de canis, pela sua robusta condição física, mas principalmente pela vontade de brincar acima do normal, característica muito importante para um cão farejador. O treino destes animais — os casos mais conhecidos são os cães polícia que detetam drogas — baseia-se sempre numa recompensa para determinada ação, que no caso desta cadela, é uma simples bola para brincar. “Alice” é hoje a única intérprete a nível nacional, que usa o faro para encontrar dejetos de lobo. Parecendo coisa pouca, esses excrementos permitem analisar a dieta, o estado sanitário, o ADN e ainda os sítios por onde um determinado indivíduo andou, pois são marcados via GPS. Com estes dados consegue-se demarcar o território de uma alcateia, o número de animais que a compõem, a ocorrência de reprodução e os movimentos de dispersão, que no conjunto nos dão um retrato fiel do lobo nas zonas em estudo.

“Alice” salta para cima do dono, vai cheirar o cão que passa, fica desconfiada com o estranho que se aproxima, comporta-se como outra cadela qualquer, até ao momento em que Duarte lhe coloca o arnês vermelho, sinal de que vai começar o trabalho/ brincadeira. Nesse momento, transfigura-se.

Cola o nariz ao chão, corre da esquerda para a direita, embrenha se no mato, até que estanca e se senta, muito séria, de olhar fixo no dono. Duarte aproxima-se, certifica-se que o excremento encontrado é mesmo de lobo, tira a bola do bolso e é ver “Alice” a explodir, enérgica, a correr desalmadamente atrás da bola uma e outra vez, felicíssima com a recompensa do seu achado. “É como se percebesse que está a dar uma ajuda preciosa à conservação de um seu primo ancestral do qual deriva”, constata um embevecido Duarte.

Foto: J. L. Lourenço

MITOS, CONSERVAÇÃO E AMEAÇAS

A conversa com Duarte não se esgotou com a história de “Alice” e abriu-nos os olhos para muito mais factos sobre estes extraordinários carnívoros: sabia que não há um lobo alfa? O casal reprodutor é que assume esse papel mítico, o de ir ensinando os filhos, preparando-os para o momento em que abandonam a alcateia — que afinal não é um grupo de dezenas de animais e se resume a uma família composta pelos pais e pelos descendentes.

A ninhada mais velha coexiste com a mais nova, até ao ano e meio, dois anos, altura em que os irmãos do mesmo ano atingem a maturidade sexual e dispersam à procura de um/uma parceiro para formar uma nova alcateia. Este procedimento assegura a viabilidade genética, garantindo que não haja consanguinidade, ao mesmo tempo que propicia a ocupação de novos territórios e a expansão desta espécie. Daí a importância de corredores ecológicos, que liguem as diferentes áreas com potencial para receberem novas alcateias.

Os principais entraves à multiplicação destes animais são as autoestradas/vias rápidas, os incêndios e os acessos aos parques eólicos que rasgam os topos das serras — territórios refúgio dos lobos — e se tornam rapidamente percorridos por excursões domingueiras e, pior ainda, facilitam a vida aos caçadores furtivos, os únicos predadores deste canídeo. Já a instalação de uma mina de estanho e volfrâmio a céu aberto, em Espanha, a cinco quilómetros da fronteira do PNM e a anunciada via rápida Bragança-Puebla de Sanabria, podem afetar o território de várias alcateias e ameaçar o equilibrado ecossistema que se verifica neste momento em Montesinho.

O turismo de natureza é um dos nichos que apresenta maior crescimento em todo o mundo e é o principal alvo da mais recente campanha turística do município, que resume tudo numa expressão feliz e que lhe assenta como uma luva: “Bragança Naturalmente”. Que assim continue por muitos e bons anos e que a via rápida, uma antiga reivindicação destas populações, que sentem na pele o isolamento, seja pensada para ter o mínimo impacto neste importante núcleo do lobo-ibérico, uma das joias mais valiosas do Nordeste transmontano.


Onde estão as alcateias e para onde se podem expandir

O Censo Nacional de Lobo 2002/2003 — atualmente decorre o de 2020/2021 — identificou quatro núcleos populacionais de lobos em Portugal. Peneda-Gerês, Alvão-Padrela e Bragança, os três a norte do rio Douro e um a sul, que se divide em dois subnúcleos: Arada- Trancoso e Sabugal. Calculou-se que existiam 63 alcateias e um total de indivíduos situado entre os 220 e os 430. No início do século XX ainda havia alcateias nas serras algarvias, em todo o Alentejo e nas zonas interiores das Beiras, do Ribatejo e da Estremadura.

Atualmente admite-se a expansão da espécie, dado o abandono da exploração agrícola de muitas terras, mas também o crescimento das populações lupinas espanholas junto à raia e apontam-se as serras da Estrela, Gardunha, Caramulo e São Mamede, esta já no Alentejo, em Portalegre, como áreas de um possível regresso dos lobos a sítios por onde já vaguearam.

Contrariamente ao boato que corre há muitos anos, nunca houve uma reintrodução destes animais em Portugal — estando inclusive proibida pela lei —, pelo que a expansão das alcateias, a acontecer, será sempre de forma natural.


Mas, afinal, o que comem os lobos?

A dieta dos nossos lobos é maioritariamente constituída por animais domésticos — ovelhas, vacas, equídeos e cabras. Mas varia muito nos diferentes núcleos. Um estudo dos anos 90, a duas alcateias, uma de Bragança e outra do Gerês, revelou que enquanto na primeira as presas silvestres (javalis, corços e veados), constituíam quase 70% da dieta, na outra eram pouco mais de 10%. Já em relação aos animais domésticos, em Bragança eram pouco mais de 10%, enquanto no Gerês quase chegavam aos 80%. Claro que estes ataques ao gado doméstico geram conflitos com os criadores, mas o Estado, numa estratégia de proteção da população lupina, indemniza os proprietários por cabeça abatida. Os animais predados representam apenas 0,6% do gado que coexiste com os lobos.

TEXTOS: JOÃO PAULO GALACHO 
INFOGRAFIAS: CARLOS ESTEVES

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