quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

De novo o Carlinhos da Sé

Por: António Orlando dos Santos (Bombadas)
(colaborador do "Memórias...e outras coisas...")

Publicou o amigo Joaquim Conde, uma foto do Carlinhos com um aspeto fantástico, com a cabeça coberta por um boné ostentando uma chapa identificativa que presumo ser da farda do Albergue onde foi internado quando jovem.
Da crónica que faz algum tempo escrevi, pode ler-se que ele foi "às sortes" no dia em que o meu irmão mais velho foi também.
Reparem que há nesta foto algo de digno e direi belo que realça o semblante sereno de um jovem fisicamente saudável e quiçá recuperável do ponto de vista psíquico, assim houvesse meios hospitalares e médicos para se tentar. Outrossim em vez dessa sorte que não teve foi frequentemente sovado pelo pessoal que deveria usar todo o zelo e vontade para o proteger e lhes facilitarem conforto. Na pose em que esta foto no-lo mostra com a barba assim espalhada em curvas e requebros dá ideia de ser um actor de uma película americana que retrate uma personagem de Steinbeck nos contos de Tortilla Flat.
Sempre que recordo este homem concluo que foi das figuras humanas que menos fortuna teve, talvez cumprindo um destino que não se afigurava melhor, hoje que ontem.
Todo o anedotário à sua volta revela apenas que era sagaz sendo que a maior parte é uma invenção da "vox populi" que se divertia com a sua figura andrajosa dos anos últimos da sua via-sacra.
Por negligência ou ignorância as autoridades nunca tiveram a lucidez de olharem para este menino, rapaz ou homem, como alguém que merecesse apoio que ele não tivesse de pagar com pancadaria bruta que o feria no corpo e na alma.
O afastamento que ele impunha a si mesmo, afastando-se da família, que a tinha, e vivendo uma vida de vagabundo, deu-lhe a capacidade de resposta aos que o interpelavam tentando enganá-lo ou ironizando para provocá-lo.
Há a história da vinda da Polícia que chega atrasada à briga e ele comenta que chegaram os estorninhos após a fuga dos gaviões ou a renitência em prestar qualquer serviço a terceiros sem que lhe pagassem adiantado, revela um carácter onde havia dignidade e também uma certa altivez para com os "normais" que ele ludibriava facilmente dada a presunção destes em se considerarem inteligentes e a ele um mentecapto.
Atente-se na sua face que mostrando o trejeito da boca e a cabeça um pouco inclinada sobre o lado esquerdo, não deixa de ser bela e agradável e não deixarei de acrescentar alegre quando o seu espírito estava desanuviado e cantava para si próprio melodicamente, embalando a cabeça e colocando as mãos à altura do peito ficando a esquerda sobre a direita sempre na forma de acento circunflexo o que lhe dava o aspeto de Santo orando a Deus e cantando a ladainha.
Não é minha intenção combater quem vê o Carlinhos como uma figura que Deus pôs no mundo para divertir a malta, mas peço às pessoas que tentem ir mais fundo na análise e tenham em conta, o Calvário deste homem que foi menino sem cuidados recebidos e tendo o absoluto direito de os receber, foi mandado arbitrariamente para uma Instituição de onde fugia sempre que podia deixando para trás um monstro que só conhecia a linguagem da violência.
Quando subia a encosta que leva ao Bairro do Sapato em passo de corrida fugindo do polícia mau, as mulheres perguntavam-lhe: - Porque foges Carlinhos? Invariavelmente ele respondia: - Fujo do Albergue que só tem lá MALUCOS!
Que o Senhor lhe dê na morte a paz que lhe negou na vida. 
Viveu junto dos homens mas longe da humanidade. Morreu sozinho sem ninguém que o consolasse.
Foi filho da Caleja do Forte e eu tenho-o num pedestal na Galeria dos "Meus Tipos Inesquecíveis”.



Bragança 20/12/2020
A. O. dos Santos
(Bombadas)

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