quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

Perderam-se “irremediavelmente” soutos para o cancro do castanheiro

 O cancro do castanheiro é um problema “grave” nalgumas zonas do país. E “já se perderam irremediavelmente” alguns soutos, alerta uma investigadora do INIAV. A esperança vem agora da “gente jovem”, que está a “instalar novas plantações”. A FAO declarou 2020 o Ano Internacional da Fitossanidade.

Foto: Teresa Pacheco Miranda

Aquilino Ribeiro, que nasceu no Carregal de Tabosa, concelho de Sernancelhe, terra abundante em castanheiros com honras de denominação de origem protegida (DOP), chamou a esta árvore de crescimento lento e de soberba longevidade (pode atingir 1500 anos de vida), “o rei da vegetação lusitana” e “o derradeiro gigante da nossa flora”.

É, porém, uma espécie arbórea que vem sendo castigada pelas doenças. Entre elas, o cancro, desde o final dos anos 80 do século passado. O seu agente causal é o fungo Cryphonectria parasítica.

“Nos anos 90 ainda se supunha que a doença estava circunscrita ao nordeste do país”, mas, no início da década 2000, no âmbito de alguns projectos nacionais na ainda Estação Florestal Nacional, hoje integrada no INIAV - Instituto Nacional de Investigação Agrária e Veterinária (INIAV), foi possível “concluir que a doença já estava presente em todo o país”, conta ao PÚBLICO Helena Bragança, investigadora do Instituto.

Foto: Teresa Pacheco Miranda

Ao mesmo tempo, “detectámos cicatrização natural e provámos a presença de estirpes hipovirulentas do fungo, o que foi uma boa notícia”, prossegue a investigadora. Esse trabalho, diz, “também permitiu fazer um mapeamento da diversidade genética do fungo em Portugal e do seu modo de reprodução”. Um mapeamento que é, aliás, “ainda hoje, a informação mais abrangente e disponível para escolher as zonas que têm boas condições para fazer luta biológica”.

Apesar do esforço desenvolvido no combate à doença, “nalgumas zonas, a situação do cancro é grave, principalmente quando há cancro e tinta em simultâneo”. Helena Bragança constata que “já se perderam irremediavelmente soutos”, o que ela própria constatou “nalgumas zonas que foram reavaliadas agora no âmbito do projecto Biochestnut”. É o caso da Serra de S. Mamede, no Alto Alentejo, embora haja aí “uma população muito envelhecida e, como esta é uma doença de evolução relativamente lenta, enquanto as árvores forem tendo alguns ramos vivos, as pessoas vão tirando castanha sem fazerem grandes investimentos”, comenta a investigadora do INIAV.

“Ameaça à própria sobrevivência humana”

Se um castanheiro apresentar ramos secos na copa, fendilhamento longitudinal da casca, pequenas pústulas alaranjadas ou castanho-avermelhadas no tronco e nos ramos ou manchas de cor branco-amarelada em forma de leque sob a casca, é mau sinal. A árvore pode estar infectada pelo cancro. O fungo infecta o castanheiro através de uma qualquer ferida no lenho, provocada por cortes de poda ou através da enxertia. E os esporos são facilmente transportados pelo vento, pela chuva e, até, por insectos.

Foto: Teresa Pacheco Miranda

“Num tempo em que tanto se fala de como os agentes de doença podem ser tão devastadores e rápidos a dispersarem-se pelo mundo, poucos têm consciência de que com as doenças das plantas se passa algo muito semelhante”, alerta Helena Bragança. Refere mesmo que “as doenças das plantas são uma ameaça à própria sobrevivência humana”, já que, “sem plantas, não vivemos”.

Ora, “a frequência com que são detectados todos os dias novos agentes fitopatogénicos é muito preocupante”. A investigadora do INIAV não tem dúvidas de que “a globalização e os desequilíbrios ecológicos, eventualmente acelerados pelas alterações climáticas”, são “as causas mais prováveis para o aparecimento de novos focos de doença”.

E, na maior parte dos casos, “não há cura possível”, diz Helena Bragança. Contudo, “cientistas fitopatologistas em todo o mundo fazem um esforço para estudar e responder com as soluções possíveis”. A luta contra o cancro do castanheiro é, aliás, “um bom exemplo de como a ciência fundamental veio trazer soluções para que a ciência aplicada possa dar as respostas necessárias ao controlo da doença”.

Gente jovem a plantar castanheiros

Portugal, diz a investigadora, “está a fazer o que é possível fazer” para combater o cancro do castanheiro. Principalmente porque “surgiram outras doenças florestais com maiores impactos e que obrigaram a canalizar muitos recursos para o seu combate, como é o caso do nemátodo e do Fusarium circinatum, no pinheiro”.

Esta, como outras doenças das árvores, é, porém, “difícil de combater”. E “só com o conhecimento das dinâmicas das doenças” e uma “boa gestão” se podem atenuar os impactos. 

Apesar das dificuldades, Portugal, através da DGAV – Direcção-Geral de Alimentação e Veterinária, autoridade nacional para a Fitossanidade e o ICNF - Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (com delegação de competências para o caso das florestas) “têm feito um excelente trabalho”, com a colaboração técnico-científica dos laboratórios, na implementação dos planos de contenção impostos pela União Europeia para as doenças de quarentena. 

Por outro lado, “há gente jovem a instalar novas plantações” de castanheiros, nota Helena Bragança. Um esforço de investimento na espécie que “é muito importante, pena é que usem variedades importadas e não as variedades tradicionais”, lamenta Helena Bragança. É que, diz, a longo prazo, essa opção “pode originar perda de património genético” e gerar “implicações na fitossanidade”.

Fitossanidade foi, justamente, o lema do ano 2020 em matéria agrícola e silvícola. A Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) declarou-o como o Ano Internacional da Fitossanidade.

“Temos excelente castanha” em Portugal

“Na minha opinião, com a luta biológica induzida no caso do cancro, a obtenção de castanheiros resistentes à tinta, e o controlo da vespa das galhas, tendem a atenuar-se os impactos negativos no castanheiro”, diz a investigadora. Isto, “se outra doença não chegar entretanto”.

A responsável do INIAV deixa, no entanto, um aviso: “Antes de um ensaio de luta biológica, idealmente deviam ser feitas análises ao local, para verificar qual o tipo de reprodução e, principalmente, quais os grupos de compatibilidade vegetativa de fungo aí existentes”. É que, se não houver conhecimento sobre esses grupos de compatibilidade vegetativa (GCV) e for aplicado o bioproduto, “podem ser introduzidos GCV diferentes dos que lá existem e o tratamento não resultará”.

Foto: Teresa Pacheco Miranda

É que, “mais grave do que gastar dinheiro em vão, é o facto de, ao introduzir novos grupos num local, se estar aí a criar cada vez mais dificuldades a médio e longo prazo, quer ao tratamento induzido, quer à dispersão da hipovirulência natural”. Nestes casos, pode mesmo haver “um risco de se intensificar a gravidade da doença”.

Em Portugal “temos excelente castanha”. Helena Bragança é taxativa a afirmar que “esta fileira ainda é económica, social e culturalmente muito importante em muitas zonas do país”, apesar de estar “assente em minifúndio” e não ter, “eventualmente, o peso político que outras [fileiras] têm”, diz esta especialista do INIAV.

INIAV: “ao melhor nível do que se faz lá fora”

O INIAV, recorde-se, é um laboratório do Estado com equipas especializadas a fazer diagnóstico em todas as áreas da fitossanidade (Micologia, Entomologia, Virologia, Bacteriologia, Nematologia, etc).

“Recebemos anualmente milhares de amostras para analisar”, revela Helena Bragança, explicando que são Laboratório Nacional de Referência para a Sanidade Vegetal, onde trabalham com “as mesmas metodologias que são usadas nos melhores laboratórios de fitossanidade da Europa”. São, aliás, “escrutinados com avaliações internacionais, lado a lado com equipas de outros laboratórios europeus”.

A investigadora sublinha que “o que fazemos está ao melhor nível do que se faz lá fora”, tendo, inclusive, “equipas a trabalhar em investigação nas doenças das plantas em articulação com universidades e institutos nacionais e internacionais”. Cita, aliás, ao PÚBLICO o seu exemplo, pois fez parte do estudo do cancro do castanheiro no WSL-Swiss Federal Institute for Forest, Snow and landscape, perto de Zurique, tido como uma referência em patologia florestal. Esteve, posteriormente, um ano como investigadora convidada na Universidade de Aberdeen (Reino Unido), ao abrigo de uma licença sabática, a estudar doenças que afetam as raízes das árvores, como é o caso da tinta do castanheiro.

“No caso do castanheiro, o conhecimento que temos das doenças e da sua dinâmica tem ajudado a encontrar soluções, quer com a luta biológica para o controlo do cancro (ainda numa fase experimental e sujeita a autorizações especiais da DGAV), quer com programas de melhoramento que permitam a obtenção de plantas mais resistentes às doenças”, refere Helena Bragança.

Questões burocráticas “desgastam”

Consciente de que “nem tudo é perfeito” e de que “os recursos são escassos”, a investigadora do INIAV queixa-se, acima de tudo, do “tempo gasto a resolver questões burocráticas e de logística”. Isso, diz, “desgasta-nos e tira o foco do que é realmente essencial” e “talvez seja o nosso maior problema como país”.

O PÚBLICO questionou Helena Bragança sobre o Programa Operacional de Sanidade Florestal (POSF) 2014-2020 e sobre se os investigadores que trabalham no combate ao cancro do castanheiro beneficiaram de apoios no âmbito deste programa operacional.

A investigadora começa por lembrar que o “POSF enquadra um conjunto de princípios orientadores” que promovem a operacionalização de acções de prevenção e controlo das principais pragas florestais em território continental. Ela própria faz parte da equipa interinstitucional de técnicos e investigadores que o concebeu.

A revisão do POSF em 2018 instituiu os sub-programas operacionais, entre os quais o do castanheiro. “No caso dos investigadores, como é o meu caso, o nosso papel é o de dar uma contribuição técnico-científica que dê suporte”, diz Helena Bragança.

Por essa razão, “não posso dizer que beneficiámos directamente deste programa”, diz, embora a interacção com uma rede estruturada de I&D [investigação e desenvolvimento] lhes dê “uma visão mais integrada, prática e direccionada para a realidade”.

Em matéria de financiamento para a investigação, porém, “infelizmente” esse “é independente dessas linhas orientadoras”. Aliás, “não raras vezes obedece a critérios que pouco têm que ver com as necessidades reais de resolver os problemas fitossanitários mais importantes”. Dá, até, um exemplo: “durante anos, os painéis de avaliadores de candidaturas à FCT [Fundação para a Ciência e Tecnologia] na área da sanidade não tinham peritos da área da fitopatologia”.

Teresa Silveira

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