sábado, 20 de fevereiro de 2021

Porque estão a aumentar tanto as cegonhas-brancas em Portugal?

 O crescimento do número de cegonhas-brancas deixa poucos portugueses indiferentes, seja pela negativa ou devido à admiração por estas aves. A Wilder foi procurar saber o que se passa e se há soluções possíveis.

Cegonhas-brancas no Alvito, Alentejo. Foto: Inês Catry

A cegonha-branca (Ciconia ciconia) está cada vez mais presente na paisagem em Portugal, seja na época de reprodução – que está quase a começar – ou mesmo durante os meses de Inverno, uma vez que muitas já não migram para África.

Feitas as contas, os dados do último censo anual da espécie, realizado em 2014, apontaram para cerca de 12.000 ninhos ocupados – um aumento substancial face aos 1.533 ninhos que estavam ocupados 30 anos antes, no censo de 1984.

Esse aumento tem sido acompanhado por uma população residente cada vez maior, ou seja, cegonhas que já não migram anualmente para África. Estas passaram de 1.187 aves registadas no censo de Inverno realizado em 1995, em que se contaram cegonhas que não tinham migrado, para um total de 19.295 que o não fizeram em 2020, segundo os dados do censo de Inverno feito em Outubro passado. Também a área de distribuição ocupada pela espécie tem vindo a crescer.


Mas será que este crescimento da população de cegonhas em Portugal é “demasiado elevado”? Bruno Martins, investigador ligado à equipa do projecto Birds on the Move e ao centro de investigação CIBIO/InBIO, nota que o número actual destas aves nunca tinha sido atingido. E admite que talvez já se tenha chegado ao máximo de capacidade de carga, ou seja, a população máxima de cegonhas que um determinado território consegue sustentar.

Foto: Inês Catry

No entanto, “normalmente uma espécie começa a ser problemática quando são apresentados estudos com resultados comprovados dos seus impactos a nível dos ecossistemas, a nível de saúde pública ou em prejuízos significativos nas atividades humanas”, explica este biólogo, ligado à Faculdade de Ciências da Universidade do Porto e à Universidade de East Anglia, no Reino Unido.

E a verdade é que, “apesar do evidente potencial impacto que o elevado número desta espécie possa já ter a estes diferentes níveis, atualmente não existe ainda nenhum indicador ou estudo que o demonstre.”

Bruno Martins espera aliás contribuir para um melhor esclarecimento dessa questão. Na tese de doutoramento em que está a trabalhar, procura compreender “quais são as consequências do aumento dos restos alimentares produzidos pelos humanos para os animais selvagens e para a biodiversidade em geral”.

Quase 60% de resíduos urbanos a céu aberto

Mas quais foram as causas principais para esta subida tão expressiva da população de cegonhas-brancas desde os anos 80? Desde logo, indica o investigador, “o aparecimento e crescimento da disponibilidade permanente e anual de grandes fontes alimentares de origem humana”.

Em primeiro lugar, não só em Portugal mas também noutros países, há uma elevada quantidade de alimento disponível nos aterros sanitários. De acordo com o relatório de caracterização e análise do sector, com os dados mais recentes da Agência Portuguesa do Ambiente (APA), consultado pela Wilder, o número de resíduos urbanos produzidos por habitante tem vindo a crescer de ano para ano.

Em 2019, cada habitante produziu em média 513 quilos de resíduos urbanos, o que se traduziu em 1,41 quilos por pessoa por dia – um aumento de 13% face aos valores de 2012, claramente em contradição com as metas do Plano Estratégico para os Resíduos Urbanos. Estas visavam uma redução mínima de 10% na quantidade de resíduos produzidos por habitante, entre 2012 e 2020, mas aconteceu o contrário.

Por outro lado, a maior fatia dos resíduos urbanos produzidos em 2019 – quase 40% – foram bioresíduos, que incluem os restos de alimentos que vão parar ao caixote do lixo em habitações, restaurantes e noutros espaços.

Cegonhas num aterro sanitário. Foto: Inês Catry

Ainda segundo os dados da APA, do total de resíduos urbanos produzidos ao longo de 2019, quase 60% foram parar a aterros sanitários, que somavam 32 unidades a funcionar ou em construção no final desse ano. Esses lixos – incluindo os bioresíduos – ficaram disponíveis nesses espaços em vez de serem tratados e reaproveitados em unidades de tratamento fechadas, ao contrário do que estava previsto como objectivo pela legislação europeia. São estes restos que as cegonhas e outras aves aproveitam depois como alimento.

Esta questão já tinha sido levantada em 2015 por investigadores ligados ao projecto Birds on the Move, que na altura avisaram que as cegonhas portuguesas se estavam a render ao ‘fast food’ disponível em aterros.

“Muito adaptável e oportunista”

“Enquanto não se resolver o problema complexo da gestão dos resíduos alimentares humanos e da sua acessibilidade às várias espécies que já exploram estes recursos activamente, como as cegonhas, as gaivotas e várias aves de rapina no nosso país, os seus números irão certamente continuar a aumentar até atingir o máximo da capacidade de carga”, avisa por sua vez Bruno Martins.

Foto: Inês Catry

“O sucesso reprodutor e a sobrevivência destas espécies têm sido bastante beneficiados ao conseguirem explorar efectivamente o alimento existente, principalmente em aterros sanitários, que está disponível durante todo o ano e é renovado diariamente em grandes quantidades.”

O investigador nota que a cegonha-branca é uma espécie “muito adaptável e oportunista”, pelo que aproveita a disponibilidade de alimento nos aterros a isso traduz-se num aumento de nascimentos e de aves que acabam por não migrar.

Os dados de seguimento das cerca de 60 cegonhas marcadas com emissores GPS que estão a ser seguidas pela equipa do projecto Birds on the Move “confirmam o uso anual dos aterros com regularidade por todos os indivíduos”, acrescenta o mesmo responsável. Nas visitas mensais que tem feito aos aterros durante os últimos anos, este investigador tem assistido a “milhares de cegonhas a alimentarem-se nestes locais por todo o país”.

Estas observações foram confirmadas pelos resultados do último censo de Inverno, realizado no final do ano passado, que apontou para que “mais de 90% dos indivíduos que passam o inverno em Portugal reúnem-se em aterros sanitários e arrozais”.

O contributo do lagostim-vermelho

Mas os alimentos que ficam disponíveis em aterros não são a única oportunidade aproveitada. O investigador destaca também o papel do lagostim-vermelho ((Procambarus clarkii), “introduzido e muito abundante nos arrozais”.

Lagostim-vermelho-do-Louisiana. Foto: Floma24/Wiki Commons

Esta espécie invasora, que entrou em Portugal em 1979, está actualmente espalhada por pelo menos 11 bacias hidrográficas de Norte a Sul: Douro, Leça, Vouga, Mondego, Lis, ribeiras do Oeste, Tejo, Sado, Mira, ribeiras do Algarve e Guadiana.

Está presente em praticamente todos os arrozais do país, onde se prevê que no futuro se alimente cada vez mais da vegetação aquática e das plantas do arroz, avisou em 2017 uma equipa de investigadores portugueses e suecos. Considera-se aliás que a erradicação deste lagostim é praticamente impossível.

E se o lixo diminuir nos aterros?

Já no que respeita aos aterros, a forte diminuição dos resíduos ali depositados continua a ser um objectivo palpável, mesmo que ainda distante, publicado em documentos nacionais e europeus. Para já, está em fase de elaboração o Plano Nacional de Gestão de Resíduos 2030, que define novas metas a serem alcançadas durante a próxima década.

E se esse objectivo for conseguido? “Certamente que com uma redução substancial do lixo disponível, juntamente com o acesso dificultado a este recurso, o impacto [nas cegonhas] iria ser elevado”, admite Bruno Martins.

Foto: Inês Catry

“Os principais efeitos esperados seriam uma redução grande do sucesso reprodutor da espécie, tanto a nível do número de crias por ninho como da diminuição da condição física das crias e dos progenitores”, explica o mesmo responsável.

Por outro lado, haver menos alimentos disponíveis “iria afectar as capacidades de sobrevivência e competição dos indivíduos, reduzindo o efectivo populacional”, acredita o investigador. Além disso, menos comida fácil durante o Outono e Inverno “provavelmente levaria à necessidade da população migrar novamente”.

Certo é que nos próximos anos a evolução da população de cegonhas-brancas em Portugal deverá continuar a ser estudada, quer se mantenha o actual crescimento ou quer este seja contrariado pela diminuição de alimentos disponíveis. O próximo censo de Primavera da espécie deverá realizar-se em 2024.

Inês Sequeira

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