A pandemia de Covid-19 trocou as voltas a muitos sectores de actividade e, em jeito de ciclo vicioso, não poupou sequer a agricultura. Normalmente, a Páscoa, o Verão e o Natal são as três épocas mais lucrativas para quem ainda se dedica à actividade. Contudo, os criadores transmontanos, a mais de um mês da quadra, tida por excelência para o consumo, começam a dar voltas à cabeça, procurando ideias para vender os animais, que podem ser levados a preço abaixo do real valor.
Criadores unidos e organizados
Tiago Melim tem 42 anos e é criador da afamada raça serrana. É natural de Murça e é novo nestas andanças, que abraçou pelos terrenos que foram ficando incultos e precisavam de vida. Tem 120 cabeças de gado e não tem dúvidas: “a Páscoa, este ano, vai ser difícil, com certeza”. Criador desde 2014, Tiago Melim é um dos 200 associados da Associação Nacional de Caprinicultores da Raça Serrana (ANCRAS). Foi através da entidade que no ano passado, apesar do cenário se ter afigurado bastante negro, conseguiu dar a volta à situação e vender o que havia para despachar.
Na Páscoa de 2020, depois de os criadores terem dado a saber que iam ficar com tudo por comercializar, através de uma onda solidária, a nível nacional, não havia depois cabrito que chegasse para tantas encomendas. Agora, Tiago Melim, acredita que será novamente por aqui a salvação. “Várias pessoas que nos encomendaram o cabrito continuaram a comprá-lo durante o ano e esperemos que assim aconteça também na Páscoa”, vincou. Apesar de tudo, o criador considera que o mais importante é que haja união. “Tenho esperança que, organizados e com esforço, consigamos vender. A associação ajudou e ajuda a colocar o produto nos grandes centros, pois sozinhos não conseguimos lá chegar. Temos que estar todos juntos na comercialização”, sublinhou Tiago Melim. Neste aspecto, 2020 foi um ano de desafios e se há coisa que o criador percebeu é que no meio da tempestade também se aprende alguma coisa. “Foi um ano extremamente criativo no que toca à venda de produtos, quer de cabritos, quer de queijos. Foi preciso puxar muito pela cabeça”, assinalou, explicando que foi assim que percebeu o valor da restauração, já que com ela fechada “é mesmo muito mais difícil vender o que quer que seja”.
Carlos Matias também é criador de raça serrana mas é da velha guarda. Tem quase 20 anos de actividade. Natural de Vilar Chão, no concelho de Alfândega da Fé, tem 146 cabeças adultas, 20 cabritas para produção e 80 “bebés”, nascidos há pouco mais de 15 dias. Com duas décadas de história, nunca se apanhou noutra situação igual à da pandemia, mas, apesar de os problemas serem “muitos”, “vender vende-se bem”. O criador de Alfândega não tem “queixas” e diz aquilo que “é a realidade”. “Tomara eu mais para vender”, assinalou, frisando ter sido a associação a ajudá-lo no ano passado. Já no que toca a preços, a associação pagou-os a um “valor justo” mas houve quem lhe mandasse 30 euros pelo cabrito. No Natal e no Verão, também foi a associação que lhe valeu. Levou-lhos, novamente, quase todos. Na Páscoa que se avizinha não deverá ser muito diferente. “Penso que vou vender tudo”, afirmou o criador. Carlos Matias, é pai de dois filhos, um de 16 anos e o outro tem tantos de vida como ele de actividade. Os jovens, que estudam e “hão- -de querer fazer a vida deles”, quando estão por casa “ajudam muito”, mas não vão dar continuidade a este legado. E é assim que o criador vê o resto, dizendo que não é fácil seduzir os mais novos, até porque os apoios “são poucos”.
Arménio Vaz é o presidente da direcção da ANCRAS, entidade a que este dois criadores estão associados. Depois de no ano passado se ter vendido “de norte a sul” e de algumas pessoas se terem fidelizado, comprando no resto do ano, o presidente da estrutura está confiante que a Páscoa há-de ir por bom caminho. “Supomos que não haja dificuldade em escoar o cabrito. As pessoas continuam a contactar-nos e acredito que não vamos ter qualquer problema em vender”, explicou, avançando ainda que tanto no Verão como no Natal “tudo correu normalmente”. Segundo o presidente da ANCRAS, o problema, se assim se pode apelidar, está no queijo, tudo por causa da restauração. “Vendíamos muito para este sector, tanto no distrito como fora dele. Com a restauração fechada, não há consumo”, vincou Arménio Vaz, para quem há um problema mais grave que, a longo prazo, se pode colocar. O desinteresse dos mais jovens pela actividade, uma vez que se trabalha de domingo a domingo e o maneio é idêntico ao que era há 50 anos, poderá comprometer algumas raças. “Ou há incentivos realmente interessantes ou então não vai haver quem queira pegar nisto”, terminou.
“Vai ser mais um ano complicado”
O cenário de vendas não se afigura positivo para todos. Andrea Cortinhas, secretária técnica da Associação Nacional de Criadores de Ovinos da Raça Churra Galega Mirandesa, está consciente de que “vai ser mais um ano muito complicado” e “terá que se gerir a situação de forma criativa”, uma vez que já no ano passado, “entre vender zero e vender alguma coisa”, a entidade reinventou-se e vendeu através da página de Facebook. Apesar de tudo, a perspectiva era vender uma tonelada de cordeiros e só se venderam 300 quilos. Assim, não há quem possa estar muito confiante. “Agora na Páscoa, uma vez que os restaurantes deverão estar fechados, vai ser dramático”, explicou Andrea Cortinhas, que garante que até 2020 a totalidade das encomendas feitas à associação partiam da restauração. Além das vendas terem sido poucas, sendo que no Verão animaram, o Natal trouxe um problema. Segundo Andrea Cortinhas, houve comercialização, mas não foi através da cooperativa. “Houve muita procura de negociantes externos”, mas os cordeiros foram levados “bastante pequenos” e acabaram por sair como animais correntes e não com Denominação de Origem Protegida, pois não tinham idade e tamanho, segundo os cadernos de especificações da raça. Jorge Laranjinha, director administrativo da Associação Nacional de Criadores de Ovinos da Raça Churra Galega Bragançana, também não está muito confiante. “Vai haver dificuldades, à semelhança do que aconteceu no ano passado. Vão vender-se, mas a percentagem de venda é muito baixa”, vincou.
No que toca ao ano passado, que pode ser, mais ou menos, o que verifique neste, “os animais, com o levantamento do confinamento, venderam- -se e espera-se que agora assim seja”. Apesar de tudo, os cordeiros não saem nem ao “preço desejável” nem na “altura adequada”. Segundo Jorge Laranjinha também no que toca a preços se tem verificado que nem tudo corre bem pois não é aquele a que se atribuí o “valor” do cordeiro. “Há muitos intermediários e o valor fica quase todo entre eles. Não havendo, ainda, uma estrutura forte a funcionar, de valorização, promoção e venda do cordeiro, o criador é 'obrigado' a entregar o cordeiro a um preço mais baixo”, explicou.
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