terça-feira, 2 de março de 2021

BRAGANÇA: ANOS DE 1700: QUADROS SOCIAIS- DEPÓSITO DOS BENS DE JOÃO DE LAFAIA

 Da família Lafaia aparece em Bragança, no século de 1500, o casal constituído por João de Lafaia, carpinteiro de profissão, que se apresentava como cristão-velho e Isabel Rodrigues, forneira, meia cristã- -nova e que tinha dois irmãos padres, um cura de Sezulfe e outro jesuíta. Isabel foi presa pela inquisição de Coimbra em 1597, no decurso de uma das maiores vagas que assolaram aquela cidade trasmontana. Nesta mesma vaga, foram também arrastados para as celas da inquisição, 3 filhos do casal: Catarina Rodrigues, Manuel de Lafaia e Pedro Lafaia. (1) Catarina era casada com Francisco Garcia, estalajadeiro e almocreve. Depois de processada pelo santo ofício, foi para o Brasil. 

Manuel era surrador e, quando foi preso, mantinha-se solteiro. Posteriormente fez-se mercador e casou com Leonor Nunes. Pedro era sacristão da igreja de S. João e certamente o seu objetivo era ascender ao sacerdócio, como os tios. Saiu condenado em confisco de bens e degredo de dois anos a remar nas galés. Tal como a irmã, acabou por rumar ao Brasil. Um quarto filho de João e Isabel chamou-se António Lafaia e casou com Brites Nunes, que também foi presa pela inquisição em 1601. (2) O casal estabeleceu-se na cidade do Porto, com loja de mercador. Dois de seus filhos (Roque e Pedro Lafaia) cedo fugiram para França. A filha, Isabel Nunes, casou em Bragança, com o seu parente Pedro Gonçalves e os filhos destes ligaram-se, pelo casamento, a outras históricas famílias cristãs-novas desta cidade, como os Ledesma, os Pissarro e os Costa Vila Real. Janeiro de 1661 abriu com mais um “tsunami” do santo ofício contra os judaizantes de Bragança. E vários membros da família Lafaia engrossaram as fileiras dos penitenciados em Coimbra. 

Foi o caso de 2 filhas, um filho e uma neta de Manuel e Leonor: Isabel Nunes, solteira, 47 anos, morreu no cárcere; Catarina Nunes e João de Lafaia, mercador, solteiro, de 37 anos e a neta Luísa da Mesquita, de 17 anos, solteira. (3) Olhemos um pouco para o inventário dos bens de Catarina, que então contava 43 anos e se mantinha solteira. Morava em uma casa sita na “Praça do Colégio dos Jesuítas”, casa de 2 sobrados, de que tinha a quarta parte. E tinha também a quarta parte de uma casa de sobrado sita da Rua do Cabo, que estava alugada para alojamento de soldados. Provavelmente os outros ¾ das casas pertenciam a seus irmãos. Da sua casa agrícola refiram- -se 4 vinhas, uma em Cabeça Boa, outra na Candaira e duas em Fonte Arcada. Não sabemos quanto vinho produziam, mas tinha 9 cubas para o meter, se bem que, quando a prenderam, apenas duas ficaram cheias, contendo uns 180 almudes de vinho e uma outra com 30 almudes de vinagre. 

Contava também umas terras em Vale de Álvaro e no Vilarinho, deixando em casa uns 500 alqueires de trigo que nelas colhera. Resulta, assim, que estamos perante uma verdadeira empresária agrícola, que produzia para vender e não apenas para consumo próprio. Catarina era também uma industrial da cera, fabricando velas e tochas. Aliás, se há uma profissão que possamos atribuir aos Lafaia era a de cerieiros, a mais frequente na família. Para além disso, Catarina era comerciante e na sua tenda encontramos produtos tão diversos como “2 arrobas de açúcar, alguns confeitos, uma arroba de amêndoa em casca, papel, atacas, agulhas e outras miudezas e adubos (…) uma arroba de pólvora, 2 arrobas de balas de várias formas”… Face a esta mesma onda de perseguições, 5 netos de António Lafaia e Brites Nunes, filhos de Isabel Nunes e Pedro Gonçalves, rumaram igualmente a Coimbra, para se apresentar na inquisição. Um deles chamava- -se António Lafaia, como o avô, cerieiro de profissão, casado com Clara Garcia. Penitenciado em 1662, voltaria a ser preso em 1667, saindo no auto-da-fé de 14.6.1671, queimado na fogueira, por “convicto, confitente, diminuto, impenitente e falsário” (4) E a tragédia continuou com os descendentes, (5) que, por várias gerações foram alimentando o “fero monstro” até aos anos em que aconteceu o terramoto de Lisboa que, para além das casas, também abalou os alicerces morais do santo ofício e da sociedade portuguesa, com as políticas pombalinas contrárias à inquisição. Voltemos atrás, à prisão de João de Lafaia, em 1661, e ao sequestro dos seus bens, cujo processo ainda não estava concluído em 1684. 

Com efeito, só nesta data parte do dinheiro que os seus bens renderam foi entregue a Gonçalo Pires, depositário do fisco na cidade de Bragança. Só então se deu inteiro cumprimento à sentença dos inquisidores que o condenaram em cárcere a arbítrio, penas espirituais e ao pagamento das custas, “não excedendo a terça parte de seus bens”. Vamos então ver um pouco do rumo que levaram os bens sequestrados e a entrega do dinheiro dos mesmos, ao depositário Gonçalo Pires: Antes de mais, diga-se que, em seguida à prisão, a responsabilidade da gestão dos bens do preso foi entregue pelo juiz de fora a João Gomes e, falecendo este, passou o encargo para a viúva, Francisca de Barros. Em poder desta “depositária dos bens” estavam 43 125 réis, provenientes de “arrematações do dito inventário”, os quais entregou ao “depositário do dinheiro” Gonçalo Pires. Obviamente que, tanto o inventário dos bens, como a sua venda e a entrega do dinheiro, tudo foi registado pelo escrivão do fisco, Francisco Correia. (6) A mesma viúva fez ainda entrega de 82 816 réis “de alguns bens de que não deu conta, por se terem perdido, e os pagou pelas avaliações do inventário, como consta dele”. Outros bens arrematados, não descritos no livro da receita, renderam 28 277 réis, que ficaram carregados no dito depositário. Outro lote de bens arrematados, fizeram-se 2 645 réis. 

Uma cuba e uma tina foram vendidas por 6 mil e 2 500 réis, respetivamente. A casa de morada de João seria logo vendida, em hasta pública, por 12 000 réis a Gaspar da Silva, dinheiro que foi entregue ao depositário pelo irmão daquele, Daniel da Silva, mercador de Macedo de Cavaleiros que também conheceu as celas da inquisição, condenado a degredo para África. Outra casa que estaria arrendada a Isabel Rodrigues, foi tomada pelo fisco mas continuou arrendada, rendendo 44 000 réis que a mesma Isabel entregou ao depositário Gonçalo Pires. Arrendadas foram também umas vinhas a Pedro Pascoal e renderam para o fisco 1 200 réis. 

Finalmente, do inventário dos bens de João Lafaia constavam umas cubas que foram vendidas em almoeda e renderam 16 400 réis. Deste dinheiro, o juiz de fora fez questão de logo receber 2 000 réis, em gratificação dos “dez dias que assistiu aos leilões”. No entanto, o fisco de Coimbra, decidiu que ele não tinha direito a receber nada e por isso devia repor o dinheiro. Não sabemos se o repôs, mas facto é que no livro da receita do fisco, foram carregados os 16 400 réis à viúva Francisca de Barros, que os entregou ao depositário Gonçalo Pires. 

Em próximo texto falaremos de abusos semelhantes, por parte de outros funcionários do fisco e da inquisição, que muitos comiam à custa dos bens dos prisioneiros do santo ofício.

António Júlio Andrade / Maria Fernanda Guimarães

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