quarta-feira, 24 de março de 2021

Eça de Queirós: "No Moinho"

 D. Maria da Piedade era considerada em toda a vila como «uma senhora modelo». O  velho Nunes, diretor do correio, sempre que se falava nela, dizia, acariciando com  autoridade os quatro pelos da calva:

— É uma santa! É o que ela é!

A vila tinha quase orgulho na sua beleza delicada e tocante; era uma loura, de perfil fino,  a pele ebúrnea, e os olhos escuros de um tom de violeta, a que as pestanas longas  escureciam mais o brilho sombrio e doce. Morava ao fim da estrada, numa casa azul de  três sacadas; e era, para a gente que às tardes ia fazer o giro até ao moinho, um encanto  sempre novo vê-la por trás da vidraça, entre as cortinas de cassa, curvada sobre a sua  costura, vestida de preto, recolhida e séria. Poucas vezes saía. O marido, mais  vélho que ela, era um inválido, sempre de cama, inutilizado por uma doença de espinha;  havia anos que não descia à rua; avistavam-no às vezes também à janela murcho e  trôpego, agarrado à bengala, encolhido na robe-de-chambre, com uma face macilenta, a  barba desleixada e com um barretinho de seda enterrado melancolicamente até ao  cachaço. Os filhos, duas rapariguitas e um rapaz, eram também doentes, crescendo  pouco e com dificuldade, cheios de tumores nas orelhas, chorões e tristonhos. A casa,  interiormente, parecia lúgubre. Andava-se nas pontas dos pés, porque o senhor, na  excitação nervosa que lhe davam as insônias, irritava-se com o menor rumor; havia  sobre as cômodas alguma garrafada da botica, alguma malga com papas de linhaça; as  mesmas flores com que ela, no seu arranjo e no seu gosto de frescura, ornava as mesas,  depressa murchavam naquele ar abafado de febre, nunca renovado por causa das  correntes de ar; e era uma tristeza ver sempre algum dos pequenos ou de emplastro  sobre a orelha, ou a um canto do canapé, embrulhado em cobertores com uma  amarelidão de hospital.

Maria da Piedade vivia assim, desde os vinte anos. Mesmo em solteira, em casa dos  pais, a sua existência fora triste. A mãe era uma criatura desagradável e azeda; o pai,  que se empenhara pelas tavernas e pelas batotas, já velho, sempre bêbedo, os dias  que aparecia em casa passava-os à lareira, num silêncio sombrio, cachimbando e  escarrando para as cinzas. Todas as semanas desancava a mulher. E quando João  Coutinho pediu Maria em casamento, apesar de doente já, ela aceitou, sem hesitação,  quase com reconhecimento, para salvar o casebre da penhora, não ouvir mais os gritos  da mãe, que a faziam tremer, rezar, em cima no seu quarto, onde a chuva entrava pelo  telhado. Não amava o marido, decerto; e mesmo na vila tinha-se lamentado que aquele  lindo rosto de Virgem Maria, aquela figura de fada, fosse pertencer ao Joãozinho  Coutinho, que desde rapaz fora sempre entrevado. O Coutinho, por morte do pai, ficara  rico; e ela, acostumada por fim àquele marido rabugento, que passava o dia arrastando-se sombriamente da sala para a alcova, ter-se-ia resignado, na sua natureza de  enfermeira e de consoladora, se os filhos ao menos tivessem nascido sãos e robustos.  Mas aquela família que lhe vinha com o sangue viciado, aquelas existências hesitantes,  que depois pareciam apodrecer-lhe nas mãos, apesar dos seus cuidados inquietos,  acabrunhavam-na. Às vezes só, picando a sua costura, corriam-lhe as lágrimas pela  face: uma fadiga da vida invadia-a, como uma névoa que lhe escurecia a alma.

Mas se o marido de dentro chamava desesperado, ou um dos pequenos  choramingava, lá limpava os olhos, lá aparecia com a sua bonita face tranqüila, com  alguma palavra consoladora, compondo a almofada a um, indo animar o outro, feliz em  ser boa. Toda a sua ambição era ver o seu pequeno mundo bem tratado e bem  acarinhado. Nunca tivera desde casada uma curiosidade, um desejo, um capricho: nada  a interessava na terra senão as horas dos remédios e o sono dos seus doentes. Todo o  esforço lhe era fácil quando era para os contentar: apesar de fraca, passeava horas  trazendo ao colo o pequerrucho, que era o mais impertinente, com as feridas que faziam  dos seus pobres beicinhos uma crosta escura: durante as insônias do marido não dormia  também, sentada ao pé da cama, conversando, lendo-lhe as Vidas dos Santos, porque o  pobre entrevado ia caindo em devoção. De manhã estava um pouco mais pálida, mas  toda correta no seu vestido preto, fresca, com os bandós bem lustrosos, fazendo-se  bonita para ir dar as sopas de leite aos pequerruchos. A sua única distração era à tarde  sentar-se à janela com a sua costura, e a pequenada em roda, aninhada no chão,  brincando tristemente. A mesma paisagem que ela via da janela era tão monótona como  a sua vida: em baixo a estrada, depois uma ondulação de campos, uma terra magra  plantada aqui e além de oliveiras e, erguendo-se ao fundo, uma colina triste e nua,  sem uma casa, uma árvore, um fumo de casal que pusesse naquela solidão de terreno  pobre uma nota humana e viva.

Vendo-a assim tão resignada e tão sujeita, algumas senhoras da vila afirmavam que ela  era beata: todavia ninguém a avistava na igreja, a não ser ao domingo, com o  pequerrucho mais velho pela mão, todo pálido no seu vestido de veludo azul. Com  efeito, a sua devoção limitava-se a esta missa todas as semanas. A sua casa ocupava- muito para se deixar invadir pelas preocupações do céu: naquele dever de boa mãe,  cumprido com amor, encontrava uma satisfação suficiente à sua sensibilidade; não  necessitava adorar santos ou enternecer-se com Jesus. Instintivamente mesmo pensava  que toda a afeição excessiva dada ao Pai do Céu, todo o tempo gasto em se arrastar pelo  confessionário ou junto do oratório, seria uma diminuição cruel no seu cuidado de  enfermeira: a sua maneira de rezar era velar os filhos: e aquele pobre marido pregado  numa cama, todo dependente dela, tendo-a só a ela, parecia-lhe ter mais direito ao seu  fervor que o outro, pregado numa cruz, tendo para o amar toda uma humanidade pronta.  Além disso, nunca tivera estas sentimentalidades de alma triste que levam à devoção. O  seu longo hábito de dirigir uma casa de doentes, de ser ela o centro, a força, o amparo  daqueles inválidos, tornara-a terna, mas prática: e assim era ela que administrava  agora a casa do marido, com um bom senso que a afeição dirigira, uma solicitude de  mãe provida. Tais ocupações bastavam para entreter o seu dia: o marido, de resto,  detestava visitas, o aspecto de caras saudáveis, as comiserações de cerimônia; e  passavam-se meses sem que em casa de Maria da Piedade se ouvisse outra voz estranha  à família, a não ser a do Dr. Abílio — que a adorava, e que dizia dela com os olhos  esgazeados:

— É uma fada! é uma fada...

Foi por isso grande a excitação na casa, quando João Coutinho recebeu uma carta de seu  primo Adrião que lhe anunciava que em duas ou três semanas ia chegar à vila. Adrião  era um homem célebre, e o marido de Maria da Piedade tinha naquele parente um  orgulho enfático. Assinara mesmo um jornal de Lisboa, só para ver o seu nome nas  locais e na crítica. Adrião era um romancista: e o seu último livro, Madalena, um estudo  de mulher trabalhado a grande estilo, duma análise delicada e subtil, consagrara-o como  um mestre. A sua fama, que chegara até à vila, num vago de legenda, apresentava-o  como uma personalidade interessante, um herói de Lisboa, amado das fidalgas,  impetuoso e brilhante, destinado a uma alta situação no Estado. Mas realmente na  vila era sobretudo notável por ser primo do João Coutinho.

D. Maria da Piedade ficou aterrada com esta visita. Via já a sua casa em confusão com a  presença do hóspede extraordinário. Depois a necessidade de fazer mais toilette, de  alterar a hora do jantar, de conversar com um literato, e tantos outros esforços cruéis!...  E a brusca invasão daquele mundano, com as suas malas, o fumo do seu charuto, a sua  alegria de são, na paz triste do seu hospital, dava-lhe a impressão apavorada duma  profanação. Foi por isso um alívio, quase um reconhecimento, quando Adrião chegou, e  muito simplesmente se instalou na antiga estalagem do tio André, à outra extremidade  da vila. João Coutinho escandalizou-se: tinha já o quarto do hóspede preparado, com  lençóis de rendas, uma colcha de damasco, pratas sobre a cômoda, e queria-o todo para  si, o primo, o homem célebre, o grande autor... Adrião porém recusou: 

— Eu tenho os meus hábitos, vocês tem os seus... Não nos contrariemos, hein?... O  que faço é vir cá jantar. De resto, não estou mal no tio André... Vejo da janela um  moinho e uma represa que são um quadrosinho delicioso... E ficamos amigos, não é  verdade?

Maria da Piedade olhava-o assombrada: aquele herói, aquele fascinador por quem  choravam mulheres, aquele poeta que os jornais glorificavam, era um sujeito  extremamente simples, — muito menos complicado, menos espectaculoso que o filho do  recebedor! Nem formoso era: e com o seu chapéu desabado sobre uma face cheia e  barbuda, a quinzena de flanela caindo à larga num corpo robusto e pequeno, os seus  sapatos enormes, parecia-lhe a ela um dos caçadores de aldeia que às vezes encontrava,  quando de mês a mês ia visitar as fazendas do outro lado do rio. Além disso não fazia  frases; e a primeira vez que veio jantar, falou apenas, com grande bonomia, dos seus  negócios. Viera por eles. Da fortuna do pai, a única terra que não estava devorada, ou  abominavelmente hipotecada, era a Curgossa, uma fazenda ao pé da vila, que andava  além disso mal arrendada... O que ele desejava era vendê-la. Mas isso parecia-lhe a ele  tão difícil, como fazer a Ilíada!... E lamentava sinceramente ver o primo ali, inútil  sobre uma cama, sem o poder ajudar nesses passos a dar com os proprietários da vila.  Foi por isso, com grande alegria, que ouviu João Coutinho declarar-lhe que a mulher era  uma administradora de primeira ordem, e hábil nestas questões como um antigo  rábula!...

—  Ela vai contigo ver a fazenda, fala com o Teles, e arranja-te isso tudo... E na questão  de preço, deixa-a a ela!...

— Mas que superioridade, prima! — exclamou Adrião maravilhado. — Um anjo que  entende de cifras!

Pela primeira vez na sua existência Maria da Piedade corou com a palavra dum homem.  De resto prontificou-se logo a ser a procuradora do primo...

No outro dia foram ver a fazenda. Como ficava perto, e era um dia de março fresco e  claro, partiram a pé. Ao princípio, acanhada por aquela companhia de um leão, a pobre  senhora caminhava junto dêle com o ar de um pássaro assustado: apesar de ele ser tão  simples, havia na sua figura enérgica e musculosa, no timbre rico da sua voz, nos seus  olhos pequenos e luzidios alguma coisa de forte, de dominante, que a enleava. Tinha-se- lhe prendido à orla do seu vestido um galho de silvado, e como ele se abaixara para o  desprender delicadamente, o contacto daquela mão branca e fina de artista na orla da  sua saia incomodou-a singularmente. Apressava o passo para chegar bem depressa à  fazenda, aviar o negócio com o Teles, e voltar imediatamente a refugiar-se, como no seu  elemento próprio, no ar abafado e triste do seu hospital. Mas a estrada estendia-se,  branca e longa, sob o sol tépido — e a conversa de Adrião foi-a lentamente acostumado à  sua presença.

Ele parecia desolado daquela tristeza da casa. Deu-lhe alguns bons conselhos: o  que os pequenos necessitavam era ar, sol, uma outra vida diversa daquele abafamento  de alcova...

Ela também assim o julgava: mas quê! o pobre João, sempre que se lhe falava de ir  passar algum tempo à quinta, afligia-se terrivelmente: tinha horror aos grandes ares e aos grandes horizontes: a natureza forte fazia-o quase desmaiar; tornara-se um ser  artificial, encafuado entre os cortinados da cama...

Ele então lamentou-a. Decerto poderia haver alguma satisfação num dever tão  santamente cumprido... Mas, enfim, ela devia ter momentos em que desejasse alguma  outra cousa além daquelas quatro paredes, impregnadas do bafo da doença...

—  Que hei de eu desejar mais? — disse ela.

Adrião calou-se: pareceu-lhe absurdo supor que ela desejasse, realmente, o Chiado ou o  Teatro da Trindade... No que ele pensava era noutros apetites, nas ambições do coração  insatisfeito... Mas isto pareceu-lhe tão delicado, tão grave de dizer àquela criatura  virginal e séria — que falou da paisagem...

— Já viu o moinho? — perguntou-lhe ela.

— Tenho vontade de o ver, se mo quiser ir mostrar, prima.

— Hoje é tarde.

Combinaram logo ir visitar esse recanto de verdura, que era o idílio da vila.

Na fazenda, a longa conversa com o Teles criou uma aproximação maior entre Adrião e  Maria da Piedade. Aquela venda que ela discutia com uma astúcia de aldeã, punha entre  eles como que um interesse comum. Ela falou-lhe já com menos reserva quando  voltaram. Havia nas maneiras dele, dum respeito tocante, uma atração que a seu pesar  a levava a revelar-se, a dar-lhe a sua confiança: nunca falara tanto a ninguém: a  ninguém jamais deixara ver tanto da melancolia oculta que errava constantemente na  sua alma. De resto as suas queixas eram sobre a mesma dor — a tristeza do seu interior,  as doenças, tantos cuidados graves... E vinha-lhe por ele uma simpatia, como um  indefinido desejo de o ter sempre presente, desde que ele se tornava assim depositário  das suas tristezas. 

Adrião voltou para o seu quarto, na estalagem do André, impressionado, interessado por  aquela criatura tão triste e tão doce. Ela destacava sobre o mundo de mulheres que até  ali conhecera, como um perfil suave de anjo gótico entre fisionomias de mesa redonda.  Tudo nela concordava deliciosamente: o oiro do cabelo, a doçura da voz, a modéstia na  melancolia, a linha casta, fazendo um ser delicado e tocante, a que mesmo o seu  pequenino espírito burguês, certo fundo rústico de aldeã e uma leve vulgaridade de  hábitos davam um encanto: era um anjo que vivia há muito tempo numa vilota  grosseira e estava por muitos lados preso às trivialidades do sítio: mas bastaria um sopro  para o fazer remontar ao céu natural, aos cimos puros da sentimentalidade...

Achava absurdo e infame fazer a corte à prima... Mas involuntariamente pensava no  delicioso prazer de fazer bater aquele coração que não estava deformado pelo espartilho,  e de pôr enfim os seus lábios numa face onde não houvesse pós de arroz... E o que o  tentava sobretudo era pensar que poderia percorrer toda a província em Portugal, sem  encontrar nem aquela linha do corpo, nem aquela virgindade tocante de alma  adormecida... Era uma ocasião que não voltava.

O passeio ao moinho foi encantador. Era um recanto de natureza, digno de Corot,  sobretudo à hora do meio dia em que eles lá foram, com a frescura da verdura, a sombra  recolhida das grandes árvores, e toda a sorte de murmúrios de água corrente, fugindo,  reluzindo entre os musgos e as pedras, levando e espalhando no ar o frio da folhagem,  da relva, por onde corriam cantando. O moinho era dum alto pitoresco, com a sua velha  edificação de pedra secular, a sua roda enorme, quase podre, coberta de ervas, imóvel  sobre a gelada limpidez da água escura. Adrião achou-o digno duma cena de romance,  ou melhor, da morada duma fada. Maria da Piedade não dizia nada, achando  extraordinária aquela admiração pelo moinho abandonado do tio Costa. Como ela vinha  um pouco cansada, sentaram-se numa escada desconjuntada de pedra, que mergulhava  na água da represa os últimos degraus: e ali ficaram um momento calados, no encanto  daquela frescura murmurosa, ouvindo as aves piarem nas ramas. Adrião via-a de perfil,  um pouco curvada, esburacando com a ponteira do guarda-sol as ervas bravas que  invadiam os degraus: era deliciosa assim, tão branca, tão loura, duma linha tão pura  sobre o fundo azul do ar: o seu chapéu era de mau gosto, o seu mantelete antiquado,  mas ele achava nisso mesmo uma ingenuidade picante. O silêncio dos campos em redor  isolava-os — e, insensivelmente, ele começou a falar-lhe baixo. Era ainda a mesma  compaixão pela melancolia da sua existência naquela triste vila, pelo seu destino de  enfermeira... Ela escutava-o de olhos baixos, pasmada de se achar ali tão só com aquele  homem tão robusto, toda receosa e achando um sabor delicioso ao seu receio... Houve  um momento em que ele falou do encanto de ficar ali para sempre na vila.

— Ficar aqui? Para quê? — perguntou ela sorrindo.

— Para quê? para isto, para estar sempre ao pé de si...

Ela cobriu-se de um rubor, o guarda-solinho escapou-lhe das mãos. Adrião receou tê-la  ofendido, e acrescentou logo rindo:

— Pois não era delicioso?... Eu podia alugar êste moinho, fazer-me moleiro... A prima  havia de me dar a sua freguesia...

Isto fê-la rir: era mais linda quando ria: tudo brilhava nela, os dentes, a pele, a côr do  cabelo. Ele continuou gracejando, com o seu plano de se fazer moleiro, e de ir pela  estrada tocando o burro, carregado de sacas de farinha. 

— E eu venho ajudá-lo, primo! — disse ela, animada pelo seu próprio riso, pela alegria  daquele homem a seu lado.

— Vem? — exclamou ele. — Juro-lhe que me faço moleiro! Que paraíso nós aqui ambos  no moinho, ganhando alegremente a nossa vida, ouvindo cantar estes melros!

Ela corou outra vez do fervor da sua voz, e recuou como se ele fosse já arrebatá-la para  o moinho. Mas Adrião agora, inflamado àquela idéia, pintava-lhe na sua palavra colorida  toda uma vida romanesca, de uma felicidade idílica, naquele esconderijo de verdura: de  manhã, a pé cedo, para o trabalho; depois o jantar na relva à beira de água; e à noite as  boas palestras ali sentados, à claridade das estrelas ou sob a sombra cálida dos céus  negros de verão... 

E de repente, sem que ela resistisse, prendeu-a nos braços, e beijou-a sobre os lábios,  dum só beijo profundo e interminável. Ela tinha ficado contra o seu peito, branca, como  morta: e duas lágrimas corriam-lhe ao comprido da face. Era assim tão dolorosa e fraca,  que êle soltou-a; ela ergueu-se, apanhou o guarda-solinho e ficou diante dele, com o  beicinho a tremer, murmurando:

— É mal feito... é mal feito...

Ele mesmo estava tão perturbado — que a deixou descer para o caminho: e daí a um  momento, seguiam ambos calados para a vila. Foi só na estalagem que ele pensou: 

— Fui um tolo !

Mas no fundo estava contente da sua generosidade. À noite foi a casa dela: encontrou-a  com o pequerrucho no colo, lavando-lhe em água de malvas as feridas que ele tinha na  perna. E então, pareceu-lhe odioso distrair aquela mulher dos seus doentes. De resto um  momento como aquele no moinho não voltaria. Seria absurdo ficar ali, naquele canto  odioso da província, desmoralizando, a frio, uma boa mãe... A venda da fazenda estava  concluída. Por isso, no dia seguinte, apareceu de tarde, a dizer-lhe adeus: partia à  noitinha na diligência: encontrou-a na sala, à janela costumada, com a pequenada  doente aninhada contra as suas saias... Ouviu que ele partia, sem lhe mudar a cor, sem  lhe arfar o peito. Mas Adrião achou-lhe a palma da mão tão fria como um mármore: e  quando ele saiu, Maria da Piedade ficou voltada para a janela, escondendo a face dos  pequenos, olhando abstratamente a paisagem que escurecia, com as lágrimas, quatro a  quatro, caindo-lhe na costura...

Amava-o. Desde os primeiros dias, a sua figura resoluta e forte, os seus olhos luzidios,  toda a virilidade da sua pessoa, se lhe tinham apossado da imaginação. O que a encantava nele não era o seu talento, nem a sua celebridade em Lisboa, nem as mulheres  que o tinham amado: isso para ela aparecia-lhe vago e pouco compreensível: o que a  fascinava era aquela seriedade, aquele ar honesto e são, aquela robustez de vida, aquela  voz tão grave e tão rica: e antevia, para além da sua existência ligada a um inválido,  outras existências possíveis, em que se não vê sempre diante dos olhos uma face fraca e  moribunda, em que as noites se não passam a esperar as horas dos remédios... Era como  uma rajada de ar impregnado de todas as forças vivas da natureza, que atravessava,  subitamente, a sua alcova abafada: e ela respirava-a deliciosamente... Depois, tinha  ouvido aquelas conversas em que ele se mostrava tão bom, tão sério, tão  delicado: e à força do seu corpo, que admirava, juntava-se agora um coração terno,  duma ternura varonil e forte, para a cativar... Este amor latente invadiu-a, apoderou-se  dela uma noite que lhe apareceu esta idéia, esta visão — Se ele fosse meu marido! Toda  ela estremeceu, apertou desesperadamente os braços contra o peito, como confundindo-se com a sua imagem evocada, prendendo-se a ela, refugiando-se na sua força... Depois  ele deu-lhe aquele beijo no moinho.

E partira! 

Então começou para Maria da Piedade uma existência de abandonada. Tudo de repente  em volta dela — a doença do marido, achaques dos filhos, tristezas do seu dia, a sua  costura — lhe pareceu lúgubre. Os seus deveres, agora que não punha neles toda a sua  alma, eram-lhe pesados como fardos injustos. A sua vida representava-se-lhe como  desgraça excepcional: não se revoltava ainda: mas tinha desses abatimentos, dessas  súbitas fadigas de todo o seu ser, em que caía sobre a cadeira, com os braços pendentes,  murmurando:

— Quando se acabará isto?

Refugiava-se então naquele amor como uma compensação deliciosa. Julgando-o todo  puro, todo de alma, deixava-se penetrar dele e da sua lenta influência. Adrião tornara-se,  na sua imaginação, como um ser de proporções extraordinárias, tudo o que é forte, e que  é belo, e que dá razão à vida. Não quis que nada do que era dêle ou vinha dele lhe fosse  alheio. Leu todos os seus livros, sobretudo aquela Madalena que também amara, e  morrera dum abandono. Estas leituras calmavam-na, davam-lhe como uma vaga  satisfação ao desejo. Chorando as dores das heroínas de romance, parecia sentir alívio  às suas.

Lentamente, esta necessidade de encher a imaginação desses lances de amor, de dramas  infelizes, apoderou-se dela. Foi durante meses um devorar constante de romances. Ia-se  assim criando no seu espírito um mundo artificial e idealizado. A realidade tornava-se-lhe odiosa, sobretudo sob aquele aspecto da sua casa, onde encontrava sempre agarrado  às saias um ser enfermo. Vieram as primeiras revoltas. Tornou-se impaciente e áspera.  Não suportava ser arrancada aos episódios sentimentais do seu livro, para ir ajudar a  voltar o marido e sentir-lhe o hálito mau. Veio-lhe o nojo das garrafadas, dos  emplastros, das feridas dos pequenos a lavar. Começou a ler versos. Passava horas só,  num mutismo, à janela, tendo sob o seu olhar de virgem loura toda a rebelião duma  apaixonada. Acreditava nos amantes que escalam os balcões, entre o canto dos  rouxinóis: e queria ser amada assim, possuída num mistério de noite romântica...

O seu amor desprendeu-se pouco a pouco da imagem de Adrião e alargou-se, estendeu-se a um ser vago que era feito de tudo o que a encantara nos heróis de novela; era um  ente meio príncipe e meio facínora, que tinha, sobretudo, a forma. Porque era isto que  admirava, que queria, porque ansiava nas noites cálidas em que não podia dormir — dois  braços fortes como aço, que a apertassem num abraço mortal, dois lábios de fogo que,  num beijo, lhe chupassem a alma. Estava uma histérica.

Às vezes, ao pé do leito do marido, vendo diante de si aquele corpo de tísico, numa  imobilidade de entrevado, vinha-lhe um ódio torpe, um desejo de lhe apressar a morte...

E no meio desta excitação mórbida do temperamento irritado, eram fraquezas súbitas,  sustos de ave que pousa, um grito ao ouvir bater uma porta, uma palidez de desmaio se  havia na sala flores muito cheirosas... À noite abafava; abria a janela; mas o cálido ar, o  bafo morno da terra aquecida do sol, enchiam-na dum desejo intenso, duma ânsia  voluptuosa, cortada de crises de choro...

A Santa tornava-se Vênus.

E o romantismo mórbido tinha penetrado tanto naquele ser, e desmoralizara-o tão  profundamente, que chegou ao momento em que bastaria que um homem lhe tocasse,  para ela lhe cair nos braços: — e foi o que sucedeu enfim, com o primeiro que a  namorou, daí a dois anos. Era o praticante da botica.

Por causa dele escandalizou toda a vila. E agora deixa a casa numa desordem, os filhos  sujos e ramelosos, em farrapos, sem comer até altas horas, o marido a gemer  abandonado na sua alcova, toda a trapagem dos emplastros por cima das cadeiras, tudo  num desamparo torpe — para andar atrás do homem, um maganão odioso e sebento, de  cara balofa e gordalhufa, luneta preta com grossa fita passada atrás da orelha, e  bonezinho de seda posto à catita. Vem de noite às entrevistas de chinelo de ourelo:  cheira a suor: e pede-lhe dinheiro emprestado para sustentar uma Joana, criatura obesa,  a quem chamam na vila a bola de unto.

 Nota:
Texto-fonte: Conto de Eça de Queirós, obra póstuma publicada em 1902

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